24 Fevereiro 2023
"O 'comunista' ainda é aplicado hoje para definir, de forma ridícula, tudo aquilo com o que 'pessoas de bem' não concordam, como ocorreu com a equipe do Estadão atacada por moradores de condomínio de luxo, mesmo autorizada por funcionários e outros residentes a realizarem a cobertura dos estragos da enchente na área", escreve Edelberto Behs, jornalista.
Quando realizavam a cobertura das cheias em São Sebastião, São Paulo, dia 21 passado, repórteres do jornal O Estado de S. Paulo foram agredidos ao filmar o alagamento no condomínio de luxo Villa de Anoman, em Maresias. Além da agressão foram chamados de “comunistas e esquerdistas”. Antes, do condomínio, reportaram a situação que encontraram na Vila Sahy, onde morreram mais de 30 pessoas pelas cheias.
Se adotado o critério que palavras ganham no uso popular, dicionários em português do Brasil terão que acrescentar novas, mas na verdade ultrapassadas, definições para o verbete “comunista”. É uma herança deixada pela ditadura militar, que caçou “comunistas” Brasil afora depois do golpe de 64, quando, na análise do jornalista Flávio Tavares, em Memórias do esquecimento (L&PM, 2012), nasceu um “enfermiço ‘anticomunismo’ fantasmagórico e onipresente”.
Tavares relata o que a ditadura militar entendia por comunismo. “Tudo aquilo com que o regime não concordava era rotulado de ‘comunista’, uma forma de prescrever e jogar ao lixo qualquer ideia nova ou mesmo a tradição antiga. Aos borbotões, como cogumelos na relva após a chuva, viam-se ‘comunistas’ por todos os lados”.
No pleito passado, esse foi um dos motes da campanha de um dos candidatos à presidência da República. Passados 58 anos, o “anticomunismo fantasmagórico” continua iludindo brasileiros e brasileiras que sequer sabem definir o que é comunismo, a não ser nominar de comunista quem não tem o mesmo pensamento, via de regra um lugar-comum sem qualquer substância.
É, por exemplo, a definição de comunista ditada pelo brigadeiro João Paulo Penido Burnier, então chefe do gabinete do ministro da Aeronáutica durante o governo militar. “Para simplificar, quem tenha profissão liberal – jornalistas, advogados, sociólogos, médicos, arquitetos, economistas etc., 90% são comunas”, definiu. Se a erudição de um brigadeiro chega a tal conhecimento, o que dizer daquelas, daquelas que jamais pegaram em mãos um livro de história!
Aliás, de algumas “otoridades” seria até surpreendente chegar a uma definição mais elaborada. Quando morava em Brasília e atuava como comentarista político do jornal Última Hora, Flávio Aristides Freitas Hailliot Tavares, natural de Lajeado, no Rio Grande do Sul, teve o seu apartamento revistado pela polícia.
Para gáudio dos policiais, encontraram um livro com a foice e o martelo na capa, “e resolveram apreender todos os demais”, conta o jornalista. “Eram volumes que o USIS, o serviço de imprensa da Embaixada dos Estados Unidos, enviava a jornalistas e – por serem propaganda anticomunista – traziam invariavelmente na capa os símbolos soviéticos ou a palavra ‘comunismo’”.
O ridículo não fica restrito ao passado. A recente exposição de Roberto Burle Marx provocou certa algaravia entre associados da FIESP, que entenderam tratar-se do autor do Manifesto comunista, o barbudo alemão Karl Marx. Ah, tem Marx no nome, mesmo que seja um artista plástico e paisagista, só pode ser comunista.
Então, o “comunista” ainda é aplicado hoje para definir, de forma ridícula, tudo aquilo com o que “pessoas de bem” não concordam, como ocorreu com a equipe do Estadão atacada por moradores de condomínio de luxo, mesmo autorizada por funcionários e outros residentes a realizarem a cobertura dos estragos da enchente na área. O repórter fotográfico foi obrigado a apagar as fotos que estavam na câmera fotográfica e a repórter, empurrada, caiu na água barrenta, pois tentaram arrancar o celular das mãos dela.
Para antecipar eventuais outros enganos, esse pessoal que logo apela ao comunismo, vale lembrar que além de Roberto Burle Marx também atuaram no teatro os irmãos Marx. Um deles, o Groucho, fazia humor com essa proximidade: “Sou marxista, da tendência Groucho”. E pasmem, até o papa Francisco se declarou comunista: “Se vejo o Evangelho apenas de maneira sociológica, sim, sou comunista, e Jesus também!”
O livro de Atos dos Apóstolos, no Novo Testamento, relata como viveram os cristãos primitivos: “Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum” (Atos 4, 32). Foram os primeiros comunistas!
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Comunismo ganha novas (velhas) definições. Artigo de Edelberto Behs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU