13 Janeiro 2023
A reportagem é de Karla Mendes, publicada por Mongabay, 10-01-2023.
“Nós, servidores, estamos reabrindo a Funai aos povos indígenas”, anunciou a antropóloga Janete Carvalho em ato recente na sede da Fundação Nacional do Índio (Funai). Durante os últimos quatro anos, ela disse que “a gente foi mesmo forçado a não cumprir nossa missão” sob o comando do ex-presidente Jair Bolsonaro. “Nós servidores, estamos reabrindo a Funai à sua missão institucional”.
O ato reuniu cerca de 300 pessoas em Brasília na manhã de 2 de janeiro, primeiro dia após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O evento também marcou o início de uma “nova era” para a instituição, cujo nome foi alterado naquele dia de Fundação Nacional do Índio para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, pleito de lideranças aceito por Lula e anunciado em seu primeiro dia de mandato.
“A gente passou quatro anos com um sentimento de ser sufocado, de estar sendo ocupado por pessoas com não legitimidade para trabalhar com a questão indígena, que se apoderaram da Funai para, de dentro da Funai, trabalhar contra os direitos indígenas”, disse Fernando Fedola, presidente da Indigenistas Associados (INA), a associação indigenista de funcionários da Funai.
“Para a gente é muito emocionante esse momento de retomada mesmo”, disse Fedola, pois os ataques aos povos indígenas e seus direitos sob o governo Bolsonaro “atacaram também os servidores”.
“É quase como uma catarse. Como no futebol comemorar o gol”, disse ele. “É um exorcismo. Nós temos aqui sal grosso para tirar as más energias do ambiente”.
Os participantes também vibraram com a presença da nova ministra dos povos indígenas, a ativista Sonia Guajajara, e a nova presidenta da Funai, Joenia Wapichana: “A Funai é nossa”.
“Hoje, sim começa um novo tempo”, anunciou Sonia Guajajara, que havia assumido como ministra no dia anterior, durante a posse de Lula. Sua nomeação foi um ato sem precedentes na história do Brasil, que nunca antes teve um Ministério dos Povos Indígenas.
“No dia que Bolsonaro assumiu, 1º de janeiro de 2019, a primeira coisa que ele fez foi querer acabar com a Funai. A primeira coisa”, disse a ministra, referindo-se a uma medida provisória que tirou a Funai do Ministério da Justiça e a colocou sob o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e transferiu a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura.
“A gente lutou, a gente lutou. E a gente não deixou a Funai se esfacelar daquele jeito”, disse Sonia Guajajara, destacando o papel de Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita deputada federal, para impedir que essa medida provisória fosse aprovada.
Apesar de ter sido a única representante indígena no Congresso Nacional durante o governo Bolsonaro, Joenia Wapichana teve sucesso contra a medida que colocou a Funai “na boca das raposas”. Ela disse que foi fundamental a articulação com outros partidos políticos que tinham mais representantes no Congresso e a presença constante de servidores da Funai e do movimento indígena nos salões do Congresso com placas que diziam “Funai inteira”.
“E hoje, a Funai está aqui, inteira, por mais que esteja em cacos”, disse Joenia Wapichana, a primeira indígena a chefiar a Funai. “Até hoje eu não entendo porque não se valoriza um órgão que cuida de 14% do território nacional”.
Antes de aceitar o convite do presidente Lula para um cargo tão “desafiador”, ela disse que pediu uma reunião com ele acompanhada por líderes indígenas. “Porque ele não vai estar se comprometendo só com a Joenia, ele vai estar se comprometendo com os povos indígenas”, disse Joenia Wapichana.
Um dos líderes presentes nesse encontro é o internacioanalmente reconhecido cacique Raoni Metuktire, do povo Kayapó. “Eu que pedi para [o Lula] colocar uma ministra e outra presidenta [da Funai]”, disse Raoni, referindo-se a Sonia Guajajara e Joenia Wapichana.
“Uma vez, eu falei com o Lula que ele ia ganhar. E eu sonhei com isso. Então, hoje está um dia muito bom pra nós. Eu participei da posse. Está um lindo dia para todos nós hoje”, acrescentou Raoni, fortemente aplaudindo.
Raoni Metuktire lembrou como Bolsonaro havia agido contra os povos indígenas: “Estava querendo acabar com [o nosso povo]. Querendo acabar com nosso território, com recurso do nosso território. Mas ele já foi embora”.
Durante seus quatro anos de mandato, Bolsonaro se recusou a demarcar qualquer terra indígena, cumprindo sua promessa de campanha durante as eleições de 2018. Durante o seu governo, houve uma escalada do desmatamento e da violência contra grupos indígenas, além de medidas para abrir terras indígenas para mineração e agronegócios, em clara violação à Constituição Federal.
“A última vez que estivemos aqui na Funai, fomos recebidas com spray de pimenta e balas de borracha”, disse Celia Xakriabá, deputada federal indígena eleita por Minas Gerais.
“[Podemos] dizer que hoje aqui, estão os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário”, disse ela. “Mas está aqui o poder maior. A luta é o quarto poder”. Celia Xakriabá lembrou as muitas vezes em faltaram microfones e as portas do Congresso foram fechadas para os povos indígenas. “E foi pelo canto ancestral que nós sustentamos muitas lutas”.
Ela disse que o Brasil estava “renascendo” naquele dia e que não havia solução para as mudanças climáticas sem os povos indígenas. “Falamos para o presidente Lula: ‘o Brasil só não perdeu o protagonismo e o prestígio internacional nas questões ambientais porque nós sustentamos o Brasil. Em quatro anos de ausência do Ministério do Meio Ambiente, nós fomos ministras do meio ambiente”.
Servidores e líderes indígenas também celebraram a nomeação de Weibe Tapeba, advogado e ativista indígena do Ceará, como o primeiro indígena nomeado secretário especial de saúde indígena junto ao Ministério da Saúde. Weibe Tapeba era um dos nomes da listra tríplice para o Ministério dos Povos Indígenas entregue ao presidente Lula, junto com Sonia Guajajara e Joenia Wapichana.
Ele disse que, ao contrário de rumores de que a lista representava uma “uma fissura do movimento indígena”, a presença dos três naquela mesa “ocupando os espaços mais estratégicos da política indigenista brasileira, representa a unidade do movimento indígena”.
“Nós somos capazes também de gerir a nossa política indigenista”, disse Weibe Tapeba. “Estaremos aí assumindo essa tarefa de coordenar a política de atenção à saúde indígena no Brasil de forma colaborativa”.
Usando um colar presenteado no Vale do Javari “como símbolo de responsabilidade” e “força”, Joenia Wapichana chorou ao falar sobre os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.
“Eu não consigo entender por que mataram uma pessoa cumprindo a obrigação”, disse Joenia Wapichana, autora do requerimento para a criação de uma comissão no Congresso para investigar os assassinatos. “O Bruno esteve na minha sala falando do perigo. Esse governo foi responsável, esse que passou, pelas mortes das pessoas. Não só do Bruno, mas dos Yanomami que estão morrendo por garimpos, os ataques ali nos Pataxó. Ali nos Guarani, que eu conheço, lá no Mato Grosso do Sul”.
Segundo ela, os apoiadores do governo Bolsonaro “também tiveram uma mão” na tragédia. “Porque quando você propaga o ódio, quando você propaga o racismo, quando você propaga fake news, você está sendo responsável também por todos esses crimes”.
Joenia Wapichana disse que chorou muito ao ver o cacique Raoni subir a rampa com o presidente Lula em sua posse, o que representou “a subida dos povos indígenas”.
“Só não chora quem não tem coração”, disse ela.
“Nós vimos como que o cacique Raoni, um senhor, uma liderança de 92 anos, foi maltratado por Bolsonaro. Quiseram tirar a legitimidade dele como liderança. Tentaram manchar a imagem dele, dizendo que não [nos] representava. Eu sou de Roraima, sou Wapichana. Mas eu me sinto representada toda vez que Raoni fala”.
Joenia Wapichana disse que os povos indígenas precisam aproveitar essa nova fase do Brasil, sob o presidente Lula, para fortalecer a causa indígena. Mas ela disse que não será uma tarefa fácil, dado o desmantelamento sistemático da Funai pelo governo anterior. Mas ela afirmou que advertiu Lula que não toleraria qualquer interferência política na Funai.
“A partir do momento também que começarem a querer negociar os nossos direitos, querer flexibilizar os nossos direitos, nós vamos repensar também. Porque pra mim, eu não sou presa a cargo não. O que eu estou é do lado dos povos indígenas”, disse ela, fortemente aplaudida.
Mas Joenia Wapichana acrescentou que o mais urgente agora é derrubar todos os atos anti-indígenas: “Abaixo a maldade”.
Com os povos indígenas unidos, disse Sonia Guajajara: “A partir de hoje, nós podemos dizer: ‘nunca mais um Brasil sem nós’”.
“A Funai é nossa! A Funai é nossa!”, gritou a multidão que também requereu demarcação de terras indígenas: “Demarcação já! Demarcação já!”
Em um ritual de limpeza com maracás e sal grosso, líderes indígenas e funcionários da Funai passaram pelos departamentos da instituição, incluindo a presidência, para “limpar” o espaço das más energias do governo anterior, como acompanhou a Mongabay. “Está carregado”, disse um dos manifestantes.
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‘A Funai é nossa’: Servidores e indígenas anunciam nova era para o órgão no governo Lula - Instituto Humanitas Unisinos - IHU