Na "Guerra Fria do Oriente Médio" conforme definido (Yemen's proxy wars explained | MIT Center for International Studies) pelos analistas Peter Krause e Tyler Parker, o Iêmen é caso paradoxalmente particular: o país mais pobre da região vive, segundo a ONU, a pior catástrofe humanitária do mundo em quase um século.
O trágico pardoxo reside em dois fatos: o Iêmen está completamente esquecido pela mídia global e pela comunidade internacional, ao mesmo tempo que a própria ONU tem sido extremamente ineficaz (para dizer o mínimo) no caso iemenita, relegando o país a esporádicas retóricas de mau gosto.
"A coalizão árabe liderada pela Arábia Saudita mentiu e ainda mente aos iemenitas, assim como para o mundo", afirma a jornalista iemenita premiada pela ONU Tawakkol Karman, direto da capital de seu país Sana'a, nesta entrevista a Edu Montesanti, na qual ela retrata a realidade cruel vivida por seu povo.
A entrevista foi enviada por Edu Montesanti ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Falta de alimentos, medicamentos e serviços de saúde, destruição da infraestrutura nacional e assustadoramente crescente morte de centenas de milhares de vidas humanas têm sido inimaginável no Iêmen desde que a coalizão liderada pela Arábia Saudita teve início há sete anos e meio, intitulada de Operação Tempestade Decisiva.
A Humanitarian Needs Overview (Yemen Humanitarian Needs Overview 2023 (December 2022) - Yemen | ReliefWeb) informa que cerca de 21,6 milhões de pessoas precisarão de assistência humanitária neste ano, incluindo cerca de 13,4 milhões em necessidades agudas.
Este mesmo órgão indica que há, no país da Ásia Ocidental, 12.900.000 de crianças necessitadas, aumento de 14% desde 8 de dezembro de 2021; 17 milhões de de pessoas vivem em crise alimentar emergencial e que o número de crianças com desnutrição aguda é de 2.165.000.
"A situação no Iêmen é péssima", observa Tawakkol na entrevista a seguir concedida por e-mail, pontuando que mal há serviços básicos em seu país atualmente.
De acordo com Yemen | OCHA (unocha.org), o Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês), 24 dos 29,8 milhões de habitantes do país do Sudoeste Asiático precisam de assistência humanitária imediata.
Mapa e situação geopolítica do Iêmen | Ilustração: Bahá’í International Community.
Segundo o Índice Global da Fome de 2022 (Yemen - Global Hunger Index (GHI) - peer-reviewed annual publication designed to comprehensively measure and track hunger at the global, regional, and country levels, GHI, na sigla em inglês), o nível de fome do Iêmen é "alarmante": o país ocupa a última posição, de um total de 121 países avaliados.
A UNICEF relata (Every 10 minutes a child dies in Yemen | UNICEF Global) que uma criança iemenita morre a cada dez minutos por causas evitáveis; mais de um milhão de mulheres grávidas sofrem de desnutrição.
Pelo menos 15,6 milhões de pessoas, diante de 29,8 milhões da população total, vivem em extrema pobreza hoje. O número de desnutridos segundo a ONU aumentaria para 9,2 milhões até 2030, e o de pessoas em extrema pobreza chegaria a 22 milhões, o que representaria 65% da população.
Enquanto a ONU reportou que o número de mortos esteve em torno de 377 mil no final de 2021, por causas indiretas e diretas, um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) estimou que 70% daqueles mortos foram crianças com menos de cinco anos de idade.
O relatório acrescentou que cerca de mais 1,3 milhão de pessoas morrerão até 2030: 70% dessas mortes seriam resultado de causas indiretas tais como falta de comida, aumento dos preços dos alimentos e deterioração de serviços básicos, como saúde e educação.
Em 26 de março de 2015, a Arábia Saudita, liderando coalizão de países regionais, deu início à intervenção militar do Iêmen para conter a guerra civil no país vizinho. Os houthis a norte e outras forças regionais, especialmente grupos secessionistas ao sul, haviam deposto o ex-presidente Abdrabbuh Mansur Hadi em janeiro daquele ano, logo exilado em solo saudita.
A coalizão árabe é responsável pela grande maioria das pesadas e assimétricas mortes de civis no Iêmen, usando armas inclusive para bloquear espaços vitais dos iemenitas por meio de ataques aéreos a aeroportos e portos, impedindo que as pessoas tenham acesso a remédios, alimentos e outros tipos de ajuda humanitária do exterior. Os ataques liderados pelos sauditas contra o país a sudoeste da Península Arábica também incluem bombardeio indiscriminado de hospitais, escolas, estradas e residências.
Tawakkol tem insistido no apelo internacional para que um tribunal especial seja estabelecido, a fim de julgar os crimes cometidos em seu país. "Caso contrário, a guerra no Iêmen traz ganhos para as partes neste conflito e para os atores regionais que interferem no Iêmen, a saber, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã", observa a jornalista iemenita.
Um chamado Grupo de Especialistas Eminentes foi formado em setembro de 2017 pela ONU para "investigar violações e abusos ao direito internacional cometidos por todas as partes no conflito, e fornecer recomendações gerais para melhorar a situação dos direitos humanos no Iêmen", o qual não foi eficaz e, no final do ano passado, acabou dissolvido.
"As forças estrangeiras e os houthis estão se unindo contra os iemenitas", denuncia Tawakkol. Segundo a jornalista, os interesses são "fragmentar o Iêmen para saquear seus recursos, as costas e as ilhas, aproveitando-se da ausência de uma autoridade nacional no país".
Em 2 de agosto, apoiadas pelas Nações Unidas as partes envolvidas no conflito no país do extremo sul da Península Arábica concordaram em estender a trégua de quatro meses por mais dois meses. Mas, durante todo aquele período, nenhuma parte respeitou o pedido de cessar-fogo. E a ONU e as potências ocidentais nada fizeram, de prático, para buscar solução ao pais médio-oriental mais arrasado nos dias de hoje.
"A trégua veio para fortalecer ainda mais as milícias armadas e encorajá-las a suprimir as vozes da oposição, e de outras opções e convicções políticas", lamenta Tawakkol Karman.
Questionada sobre a vida de jornalista em seu país, Tawakkol Karman afirma que áreas sob controle da milícia houthi fazem do profissional de imprensa um "potencial inimigo".
"O estado de impunidade continua em favor de todos os perpetradores de crimes contra a imprensa e jornalistas, e as várias autoridades ignoram a interação positiva para levar os infratores da imprensa à justiça e dissuadi-los", denunciou Yemen: YJS reports 20 media violations in the first quarter of 2022 - IFJ) o Sindicato dos Jornalistas do Iêmen em abril do ano passado.
Em 2011, aos 32 anos, Tawakkol Karman tornou-se a primeira iemenita, a primeira mulher árabe e a segunda mulher muçulmana a ganhar o Prêmio Nobel da Paz.
Nascida em 7 de fevereiro de 1979, Tawakkol lidera o grupo "Mulheres Jornalistas sem Correntes" (Women Journalists without Chains), o qual ela co-fundou em 2005. Ela tornou-se o rosto público internacional da revolta iemenita de 2011, parte das revoltas da denominada Primavera Árabe que sacudiu o Oriente Médio e Norte da África durante aquele periodo.
Naquele mesmo ano, Tawakkol foi chamada "Mulher de Ferro" e "Mãe da Revolução" por alguns iemenitas. Em seu país, a revolta derrubou o ex-presidente Ali Abdullah Saleh em fevereiro de 2012. Logo, sauditas e árabe-emiradenses intervieram indiretamente no Iêmen com o fim de abafar a insurreição local, com receio de que os protestos populares na nação vizinha contagiassem suas sociedades.
Retrato de Tawakkol Karman (2017), da exposição Hands of Peace (Mãos da paz) | Foto: Séverine Desmarest - Fonte: Unesco
Descreva como está a vida das pessoas no Iêmen. E diga o que mudou e como, se é que algo mudou na vida dos iemenitas com a última trégua, já expondo qual a perspectiva de paz no Iêmen.
A situação no Iêmen é péssima. Conforme descrito pelas Nações Unidas, o Iêmen sofre a pior crise humanitária do mundo, carecendo de um nível até mesmo razoável de serviços. Não há eletricidade, educação, nem salários. Quanto às liberdades e direitos humanos, não existem mais.
A trégua não trouxe nenhum benefício às pessoas, nem refletiu positivamente em suas vidas. Pelo contrário, a trégua veio para fortalecer ainda mais as milícias armadas e encorajá-las a suprimir as vozes da oposição além de de outras opções e convicções políticas. Você pode ouvir a trégua sendo elogiada por políticos dos Estados Unidos e da União Europeia, mas quando você olha de perto não encontra nada a favor do povo.
Nesta atmosfera, infelizmente a comunidade internacional parece não ter intenções sérias no sentido de estabelecer a paz no Iêmen. Os países que interferem no Iêmen devem assumir a responsabilidade pelo que está acontecendo no país.
Acredito ser importante começar a resolver a situação no Iêmen e acabar com a guerra, seguindo as resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Reitero meu pedido de um tribunal especial para o Iêmen. Na minha opinião, isso contribuirá para impulsionar a paz pois, neste caso, um sentimento de impunidade não estará com os que obstruem os esforços de paz.
Caso contrário, a guerra no Iêmen traz ganhos para as partes neste conflito e para os atores regionais que interferem no Iêmen, a saber, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã.
Como os iemenitas em geral veem a coalizão liderada pelos sauditas que atuam em seu país?
A coalizão árabe liderada pela Arábia Saudita mentiu, e ainda mente aos iemenitas, assim como para o mundo. Essa coalizão, que dizia ter vindo para ajudar os iemenitas a se livrar do golpe, acabou gerando dezenas de golpes e entidades armadas além de minar a legitimidade que anunciava vir apoiar.
Na verdade, a coalizão liderada pela Arábia Saudita fez muitas coisas vergonhosas no Iêmen, comportando-se como potência de ocupação irracional. Mas isso não vai durar muito tempo.
Você acredita que as forças estrangeiras são mais culpadas pela catástrofe do Iêmen que os houthis?
Nenhum lado é mais inocente que o outro. As forças estrangeiras, nomeadamente as forças sauditas e dos Emirados Árabes, estão fazendo o melhor que podem para financiar e apoiar as milícias, fragmentar o Iêmen para saquear seus recursos, as costas e as ilhas, aproveitando-se da ausência de uma autoridade nacional no país.
Já os houthis atuam como grupo extremista de natureza supremacista, praticam atividades criminosas como assassinatos, saques, roubos e buscam mudar a identidade social. Eles querem que a sociedade seja governada por uma ideologia fascista. Em essência, eles são hostis a valores básicos como cidadania, liberdade, direitos humanos, ciência e modernidade.
Na verdade, as forças estrangeiras e os houthis estão se unindo contra os iemenitas, não importando o quanto fora da realidade possam parecer.
Por que a comunidade internacional parece não ter intenções sérias de promover paz no Iêmen?
Apesar de as grandes potências e o Conselho de Segurança da ONU terem repetidamente apelado para o fim da guerra, seus apelos não refletem necessariamente uma vontade genuína neste sentido. Até agora, os países envolvidos no caso do Iêmen não fizeram nada que apontasse a gravidade que se vive aqui.
Não tenho ideia de por que esses poderes podem assumir tal posição. Isso pode ter a ver com o fato de o Iêmen não ser um país petrolífero, ou talvez essas partes não tenham interesses vitais no Iêmen. Alguns acreditam que esta política em relação ao Iêmen deve-se a entendimentos regionais e internacionais, em troca de se garantir alguns interesses mútuos.
Como você vê o fato de que, em 7 de outubro de 2021, o Conselho de Direitos Humanos da ONU não renovou o mandato do Grupo de Especialistas Eminentes no Iêmen em seu país, e quanto isso afeta a guerra e o povo iemenita?
Independentemente da nossa avaliação do desempenho do Grupo de Especialistas Eminentes no Iêmen, é perceptível que a lei da selva prevalece no Iêmen, tal como evidenciado pelo fato de que os perpetradores de crimes gozam de impunidade.
É por isso que pedi, há muito tempo, o estabelecimento de um tribunal penal internacional sobre os acontecimentos no Iêmen, com mandato para processar os envolvidos em violações dos direitos humanos, sejam eles iemenitas ou não.
Acredito que isso pode estar entre os passos necessários para deter a guerra, e trazer paz.
Como é ser jornalista no Iêmen durante estes anos de guerra?
De qualquer forma, um jornalista no Iêmen é suspeito. Ser jornalista em áreas sob controle da milícia houthi significa que você é potencial inimigo, e sua vida está em risco porque no dicionário houthi não existe liberdade de imprensa, jornalismo livre.
Por outro lado se, como jornalista, o profissional trabalha nas áreas supostamente controladas pela autoridade legítima, também está sujeito a processo se tiver suas próprias opiniões e ideias indesejáveis aos grupos apoiados pela Arábia Saudita, e pelos Emirados Árabes em particular .
Quanto tempo levará para que o Iêmen recupe-se desta tragédia social, econômica e política, e como, onde encontrar saída? Especialistas em todo o mundo enfrentam difículdades ao tentar encontrar uma solução.
Lamentavelmente, precisamos de muito tempo porque o nível de destruição do Iêmen é maior do que muitos imaginam. Bem, vamos começar com passos básicos no sentido de se deter a guerra e impor uma fórmula de paz sem afetar os ganhos históricos dos iemenitas, ou sua soberania e os territórios.
Um tribunal especial deveria ser estabelecido a fim de tratar das violações contra os iemenitas, mas o passo mais urgente agora é identificar com precisão os perpetradores desses crimes. Neste contexto, os relatórios relevantes dos especialistas do Conselho de Segurança poderiam contribuir muito para isso, e então os responsáveis seriam punidos.
O povo iemenita está farto da guerra, sonhando em poder trabalhar e viver em paz, com dignidade. Os maiores interesses dos iemenitas não devem ser comprometidos pois qualquer paz humilhante é rendição, e não dura muito.