A Igreja deve mudar, corremos o risco de falar com um homem que não existe mais. Entrevista com o Cardeal Hollerich

Cardeal Hollerich | Foto: Vatican Media

25 Outubro 2022

Em uma longa entrevista ao L'Osservatore Romano, o cardeal presidente da comissão que reúne os episcopados europeus fala sobre o quanto a fase de preparação para o próximo Sínodo está trazendo à tona a urgência de uma mudança na pastoral: embora firmes no Evangelho, devemos ser capazes de anunciá-lo ao homem de hoje, que na maioria das vezes o ignora e isso implica a disponibilidade de nós mesmos nos deixarmos transformar.

A entrevista é publicada por L'Osservatore Romano, 24-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Jean-Claude Hollerich, 64 anos, cardeal arcebispo de Luxemburgo, é presidente da Comissão das Conferências Episcopais da Comunidade Europeia e vice-presidente do Conselho das Conferências Episcopais Europeias, bem como relator geral do Sínodo sobre a sinodalidade.

Com a abertura da fase continental do Sínodo sobre a Sinodalidade, aceita de bom grado uma conversa com o L'Osservatore Romano sobre o andamento da consulta mais ampla da história da Igreja na Europa e sobre seu conteúdo.

Encontramos ele na igreja paroquial de Roma, de que é titular, enquanto conversa como um "bom pároco" com as crianças do curso de primeira comunhão. “A igreja não é este edifício, explica-lhes, igreja significa assembleia. Vocês são a Igreja. Porque, como diz o Papa Francisco, sem os jovens não há Igreja, porque Deus é jovem”. Depois vem ao nosso encontro “Estou muito feliz por ser o titular, não de uma das belas igrejas do centro histórico, mas desta paróquia da periferia; quando venho aqui encontro a alegria de ser sacerdote no meio das pessoas”.

 

Eis a entrevista.

 

No mês passado, o Cardeal Zuppi nos concedeu uma longa entrevista sobre o Sínodo da Igreja italiana, na qual, com muita honestidade, não escondeu o fato de ter registrado uma participação abaixo das expectativas, em quantidade e qualidade. Qual é a sua visão do andamento do Sínodo no panorama europeu?

Sim, li essa entrevista com grande interesse. Com igual honestidade, parece-me que as observações de Zuppi também possam se aplicar a outros países europeus, embora com as necessárias distinções entre país e país. Veja bem, acredito que hoje na Europa sofremos de uma patologia, ou seja, não conseguimos ver claramente qual é a missão da Igreja. Sempre falamos de estruturas, o que certamente não é ruim, porque as estruturas são importantes e certamente precisam ser repensadas. Mas não se fala o suficiente da missão da Igreja, que é anunciar o Evangelho. Anunciar, e sobretudo testemunhar, a morte e ressurreição de Jesus Cristo. Um testemunho que o cristão deve interpretar principalmente através do seu empenho no mundo pela salvaguarda da criação, pela justiça, pela paz.

O ensinamento do Papa Francisco é apenas e nada mais que a explicitação do Evangelho. Não é difícil de entender. No mundo secularizado de hoje, o anúncio direto nem sempre é compreendido, mas o nosso testemunho sim. Somos observados e avaliados no mundo pela forma como vivemos o evangelho. É um pouco como acontece com os professores na escola: certamente é importante o que eles dizem, mas ainda mais importante é o que eles comunicam sobre si mesmos. No nosso caso, o que importa é a coerência com o Evangelho. Tomem por exemplo a encíclica Laudato Si'. Muitos a leram, mesmo entre os não crentes, mesmo entre aqueles que não conhecem o Evangelho. E todos aqueles que a leram compartilharam seu valor, importância, urgência.

Recebi um feedback direto nos meus contatos cotidianos com os políticos do Parlamento e da Comissão Europeia em Bruxelas. Todo mundo já leu a Laudato Si' e a admira. E o mesmo se aplica para a Fratelli tutti. Em outras palavras, todos reconhecem ao Papa Francisco a paternidade da proposta de um novo humanismo. Que ele muitas vezes propõe em solidão entre os grandes líderes mundiais. Mas cabe a nós depois saber explicar que o humanismo de Francisco não é apenas uma proposta política, mas uma proclamação do Evangelho. Os que estão fora da Igreja às vezes entendem o Evangelho melhor do que os que estão dentro. O Papa Francisco indicou, portanto, essa modalidade de anunciar o Evangelho, que parte da realidade, aquela realidade que nos vê a todos como criaturas e filhos do mesmo Pai. Mas para responder à sua pergunta inicial: em todos os países europeus nos sínodos se falou muito de comunhão, de participação, mas muito pouco de missão.

Certamente as dificuldades registradas nos sínodos dos vários países foram influenciadas por uma certa defesa instintiva de próprio status por parte do clero e, por outro lado, por uma persistente atitude dos leigos em delegar.

O conceito de sinodalidade foi introduzido pelo Papa Paulo VI como exigência de colegialidade, de comunhão entre os bispos. O Concílio Vaticano II tinha a necessidade preliminar de completar o que havia ficado pendente com o Concílio Vaticano I, cujo foco estava inteiramente na figura e prerrogativas do pontífice romano. Assim, o esforço da assembleia foi, predominantemente, aquele de definir o papel do bispo. Mas na Lumen Gentium é introduzido pela primeira vez o conceito de "povo de Deus em caminho" e da Igreja como "templo do Espírito Santo", explicita-se o "sacerdócio universal" que diz respeito a todos os batizados. Pois bem, acho que essas gigantes intuições dos padres conciliares ainda não foram desenvolvidas adequadamente. Mas concordo muito com o Papa Francisco quando ele diz que são necessários cem anos para implementar um concílio. Apenas 60 se passaram... não estamos atrasados (diz ele rindo com vontade )! Mas brincadeiras à parte, devemos estar cientes de que o sacerdócio batismal não tira nada do sacerdócio ministerial. Aliás, todos nós padres devemos compreender que não há sacerdócio ministerial sem um sacerdócio universal dos cristãos, porque é deste que se origina.

Estou bem ciente de que a dificuldade de assimilar um conceito, basicamente tão elementar, é dificultada por uma formação presbiteral que ainda se atém a uma "diversidade ontológica" que não existe. Sobre isso os teólogos devem tratar de trabalhar e fornecer definições mais certas em torno do tema do caráter e da graça sacramental. Mas acima de tudo, os bispos devem empenhar-se seriamente e profundamente na formação dos futuros padres. Ainda hoje temos seminários que eu defino como "tridentinos liberalizados". Não devemos dar mais passos em direção à "liberalidade", mas seguir o caminho da "radicalidade". A formação deve consistir em pôr-se à prova sobre saber viver radicalmente o Evangelho hoje.

Aqui também olhamos para o Papa Francisco: na Europa, muitas vezes escuta-se dizer que Francisco é um Papa liberal. O Papa Francisco não é um liberal: ele é radical. Vive a radicalidade do Evangelho. É o paradigma integral não só de sua missão, mas de sua vida, porque internalizou a radicalidade do Evangelho. Pense na sua radicalidade na misericórdia, e também no anúncio do reino de Deus. Veja que não se pode manter um jovem separado do mundo em uma vida de tipo monástica por seis anos e depois reclamar que ele acaba pressupondo uma sua própria diversidade. Também neste caso não é um problema - repito - de estruturas, mas de missão. É preciso entender, ou melhor, voltar a entender, o que significa ser pastor hoje. Como, de fato, todos devemos nos perguntar o que significa ser cristão hoje. Essa é a questão. E essa pergunta é também a chave deste pontificado: aceitar a inadequação de uma pastoral filha de épocas já passadas e repensar a missão. Uma escolha que tem implicações teológicas pesadas e corajosas.

E a atitude dos leigos de delegar?

Penso que, tanto pelo resultado deste Sínodo como pela redução das vocações, o equilíbrio entre leigos e clero será no futuro muito diferente do atual. No entanto, há um obstáculo ao desenvolvimento de um diálogo construtivo que deve primeiro ser removido. Refiro-me ao fato de que o confronto muitas vezes gire apenas em torno do tema do "poder". O sínodo alemão, por exemplo, é muito influenciado por esse argumento. Acho que limitar o confronto intraeclesial à questão do poder é profundamente errado. Tanto por parte dos que "contestam" o poder como por parte dos que "defendem" o poder. A sinodalidade vai muito além do discurso sobre o poder. Se as pessoas percebem a autoridade do bispo ou do pároco como "poder", então temos um problema. Porque nós somos ordenados para um ministério, para um serviço. A autoridade não é poder.

O senhor fala de uma inadequação do cuidado pastoral em relação aos tempos. Por quê? Que tempos vivemos?

É muito interessante o que diz Zuppi na entrevista que mencionamos, quando trata do tema da mudança antropológica. E concordo com ele que esta seja a questão que mais deve nos desafiar. Veja, a minha geração experimentou e está experimentando mudanças que nenhuma geração experimentou antes. Eu diria as maiores desde a invenção da roda. Com a diferença de que hoje tudo muda com uma velocidade inusitada apenas algumas décadas atrás. Impressionante como, por exemplo, um garoto de 15 anos já seja radicalmente diferente de um jovem de 20. Hoje nem imaginamos, mas haverá transformações antropológicas muito, muito grandes. Na consciência de que o homem só pode influenciar parcialmente sua própria evolução. O ponto que abordaram e que deve ser desenvolvido mais ainda é que não estamos falando de antropologia cultural, mas de mudanças que também dizem respeito à esfera biológica, natural.

E, portanto, a pastoral também deve levar isso em conta...

Não gostaria de ser contundente, mas, com muita franqueza, a nossa pastoral fala a um homem que não existe mais. Devemos ser capazes de anunciar o Evangelho, e fazer entender o Evangelho, ao homem de hoje que na maioria das vezes o ignora. Isso implica uma grande abertura da nossa parte, e também a disponibilidade - ainda que firmes no Evangelho - de nos mesmos também nos deixarmos transformar.

Quando falamos de mudanças antropológicas, nosso pensamento vai de imediato ao da relação homem-mulher. A maior mudança. Paulo VI já a havia prefigurado.

Sim. Humanae Vitae é um texto maravilhoso. É realmente uma pena que tenha entrado na história apenas pelo juízo sobre os anticoncepcionais. Pense, por exemplo, na ideia que propõe do amor esponsal como imagem do Deus trinitário. Quando eu estava ensinando no Japão sobre esses temas, desenhava um triângulo explicativo cujos vértices eram: sexualidade, dom da vida e amor conjugal. Hoje as coisas no mundo mudaram radicalmente. Antes se separaram sexualidade e dom da vida, e agora também sexualidade e afetividade. Muitos jovens vivem a sexualidade de uma forma totalmente separada da afetividade. E eles não inventaram isso sozinhos, mas aprenderam com o mundo dos adultos. O casamento - não apenas o matrimônio sacramental - é uma prática já em desuso em grande parte da Europa. E o mesmo vale para a transmissão de herança, as pessoas na Europa agora sabem viver sem a herança cultural de seus pais. Cada geração é praticamente um novo começo. E o distanciamento demográfico dado por uma população cada vez mais envelhecida dificulta ainda mais essa transmissão.

Cardeal Hollerich, permanecendo nesse plano, há o tema da adequação da pastoral a essas mudanças antropológicas.

É claro. E é justamente a necessidade pastoral que suscitou uma reflexão sobre o tema dos gêneros, que suscitou algumas críticas. Veja, existe um pressuposto que me inspirou. Procuro, na medida do possível, nos esforços de minha função, manter viva uma relação pessoal com os jovens. Porque antes de ser cardeal sou padre; um pastor. E vejo constantemente que os jovens deixam de considerar o Evangelho, se têm a impressão de que estamos discriminando. Para os jovens de hoje, o maior valor é a não discriminação. Não só aquela de gênero, mas também de etnia, de origem, de classe social. Eles realmente ficam bravos com as discriminações! Há algumas semanas conheci uma jovem de 20 anos que me disse “quero deixar a Igreja, porque não acolhe os casais homossexuais”, perguntei-lhe “você se sente discriminada por ser homossexual?”, e ela “ Não, não! Não sou lésbica, mas minha melhor amiga é. Conheço o seu sofrimento e não pretendo fazer parte daqueles que a julgam”. Isso me fez pensar muito.

Mas cardeal, as igrejas protestantes que têm uma abordagem mais liberal, e abençoam os casais homossexuais, não parecem encontrar maior aprovação entre os jovens...

Claro que não. Porque não basta. É necessária uma mudança mais profunda de paradigma cultural e uma conversão do espírito. Não é um problema de direito canônico, normas ou estruturas. Isto é o que o Papa disse à Igreja alemã. “Cuidado para não começar pelas estruturas; partam primeiro da vida do povo de Deus, da missão, da evangelização”. Anunciar o Evangelho hoje significa anunciar a alegria da vida em Deus, encontrar o sentido da vida em Jesus Cristo. O que não é um clichê, porque devemos ser capazes de comunicar que viver nas pegadas de Cristo significa viver bem, significa aproveitar a vida. Somos chamados a anunciar uma boa notícia, não um conjunto de regras ou proibições.

Onde a boa notícia é o kerigma original...

Sim, claro. Veja a pós-modernidade, da mesma forma que o racionalismo que a precedeu, colide com um limite insuperável. Que é a percepção angustiante da finitude humana. Quanto mais cresce a capacidade intelectual e cognitiva do homem, mais resulta evidente a sua incapacidade de responder à pergunta que o acompanha - racionalmente, mas também inconscientemente - ao longo de toda a sua existência: "por que a vida acaba?", "por que esse meu ‘eu’ que ninguém mais conhece em sua profundidade, está destinado a morrer?”. A jogada experta da civilização consumista em que vivemos é ocultar e exorcizar a pergunta, com o engano do mito de uma eterna juventude. Então, a "nova evangelização" hoje é mostrar uma hóstia elevada dizendo: "Quem come este pão não morre mais".

Uma ética de amor - e de misericórdia - é, portanto, um substituto para a revelação de que "Não se morre mais". Devemos gritar isso nas praças e dos terraços "Não se morre mais!". E se não o gritamos, limitando-nos a propor uma ética do bem viver, não podemos reclamar depois que não há mais crentes! Acreditar na vida eterna, no entanto, significa acreditar que a vida eterna já está aqui, agora. E como tal deve ser vivida e desfrutada. Fico muito assustado nesse sentido por uma crescente concepção funcionalista da vida, segundo a qual se não funciona se joga fora. Fiquei apavorado ao ver nos Países Baixos a extensão da prática da eutanásia também aos doentes psicológicos. Isso também é resultado da invasiva ideologia consumista: uma vez, se a televisão estragava, você a levaria para o conserto e os sapatos para o sapateiro; hoje se jogam fora. E gostariam de fazer o mesmo com a vida, se não "funciona", se você se torna um fardo para a sociedade te jogam fora. O mesmo vale para o início da vida: preocupa-me ouvir no Parlamento Europeu quem invoca a atribuição do status de "direito fundamental" ao aborto, porque se é um direito fundamental então é um direito absoluto e, portanto, não admite mais uma recusa de consciência. Isso também é um absurdo. Lembremo-nos sempre que a vida, mesmo que limitada, é bela”.

Então, recomeçar de um túmulo vazio em uma manhã de domingo de primavera em Jerusalém.

Certo. Essa é a boa notícia! E quero acrescentar: todos são chamados. Ninguém é excluído: também os divorciados e recasados, também os homossexuais, todos. O Reino de Deus não é um clube exclusivo. Abre suas portas a todos, sem discriminação. A todos! Às vezes a Igreja discute a acessibilidade desses grupos ao Reino de Deus, e isso cria a percepção de uma exclusão de uma parte do povo de Deus. Sentem-se excluídos e isso não está certo! Aqui não se trata de sutilezas teológicas ou dissertações éticas: aqui trata-se simplesmente de afirmar que a mensagem de Cristo é para todos!

No entanto, um problema teológico objetivamente existe. O senhor mesmo se referiu a ele em entrevistas anteriores, almejando um repensamento da doutrina.

O Papa Francisco lembra muitas vezes a necessidade de que a teologia saiba se originar e se desenvolver a partir da experiência humana, e não permaneça fruto apenas da elaboração acadêmica. Muitos de nossos irmãos e irmãs nos dizem que, qualquer que seja a origem e a causa de sua orientação sexual, certamente não a escolheram. Não são "maçãs podres". Eles também são o fruto da criação. E em Bereshit lemos que a cada passo da criação Deus se compraz com sua obra dizendo "...e viu que era bom". Dito isso, quero ser claro: não creio que haja espaço para um matrimônio sacramental entre pessoas do mesmo sexo, porque não há um fim de procriação que o caracteriza, mas isso não significa que sua relação afetiva não tenha nenhum valor.

No entanto, os bispos da Bélgica se manifestaram a favor da possibilidade de abençoar essas uniões.

Francamente, a questão não me parece decisiva. Se nos atermos à etimologia de “bem – dizer”, você acha que Deus poderia “dizer – mal” sobre duas pessoas que se amam? Eu estaria mais interessado em discutir outros aspectos do problema. Por exemplo: o que determina o crescimento vistoso da orientação homossexual na sociedade? Ou porque a porcentagem de homossexuais nas instituições eclesiais é maior do que na sociedade civil.

Cardeal Hollerich o senhor é o presidente da Comissão das Conferências Episcopais da Comunidade Europeia. Vivemos um momento dramático. Depois de quase 80 anos, a guerra reapareceu na Europa. Inacreditavelmente, a ameaça nuclear se tornou mais atual do que nunca. Diante disso, a presença ativa da Europa política, promotora eficaz de paz, parece fraca, débil, ignorada.

Temos que alcançar a paz. Alcançar a paz entre as nações é como alcançar a paz entre os homens: é sempre necessário um compromisso entre as respectivas razões alegadas. Todos devem tentar se identificar com as razões dos outros, mesmo que não as compartilhem. E a partir daí encontrar um compromisso. Caso contrário, podemos ter uma trégua do conflito armado, mas não uma verdadeira paz. A história nos ensina que os conflitos latentes mais cedo ou mais tarde explodem em guerras. Este também era um conflito que se arrastava há tempo, mas ninguém queria realmente atuar pela paz. Dito isto, confirmo o que você diz: a Europa política é muito fraca. É assim porque a prioridade política da Europa é manter os países que a compõem unidos às suas instituições, e que apresentam grandes diversidades entre si, principalmente após a ampliação para 27.

Obviamente, focando mais nas dinâmicas internas, se enfraquece a projeção externa, seu protagonismo político. Mas os líderes europeus deveriam entender que o equilíbrio não é alcançado ad intra, mas ad extra, por meio de políticas de confronto e de proposição original com as demais potências. E isso constitui hoje uma grave vulnerabilidade nos equilíbrios mundiais porque a Europa tem no seu DNA a inspiração para a paz. Também acredito que as forças que se inspiram no popularismo deveriam se empenhar a redefinir sua própria identidade. Atualmente "popular" no léxico europeu comum se identifica com "conservador", e isso não é bom. É, portanto, necessário especificar o "popular" na tradição dos democratas-cristãos, que tem tanto significado em muitos países europeus. Ou seja, recuperar aquele perfil “social” dos populares que o liberalismo acabou ofuscando um pouco. Também porque o popularismo é o único antídoto sério para o populismo.

Mas o populismo ainda parece estar crescendo em muitos países europeus.

Onde o populismo vence, deve enfrentar o desafio do governo. O problema do populismo é que ele fornece respostas simplificadas para as questões cada vez mais complicadas que o mundo atual nos apresenta. Pensemos, por exemplo, nas receitas soberanistas propostas a um mundo cada vez mais inextricavelmente conectado. Causa-me preocupação o que pode acontecer se os populistas falharem no desafio do governo. Iriam irremediavelmente culpar algum outro: migrantes, refugiados, Bruxelas. Exacerbando ainda mais as tensões sociais. E isso realmente não é necessário.

Mas o senhor acredita que derivas autoritárias ainda possam funcionar hoje na Europa, ou como dizem hoje, autocratas?

Não sei. Espero que não. Mas acredito que todos devemos começar a refletir sobre as condições da democracia. Pensávamos até agora que a democracia fosse a única forma política possível no Ocidente. Mas mesmo no Ocidente percebe-se alguns rangidos.

Precisamos pensar no que significa ser hoje um país, um continente democrático. Aguarda-nos um inverno rigoroso, no qual muitos sofrerão com o frio, a pobreza, o desemprego: será um teste para a estabilidade da democracia. Até agora, a democracia se sustentava com o bem-estar da maioria, hoje isso não basta. É fácil ser amigos e democráticos no rico almoço de domingo, mais complicado no dia de jejum.

Uma última pergunta cardeal. Como imagina a Igreja na Europa daqui a 20 anos?

Será muito menor. A maioria dos europeus não conhecerá Deus e seu evangelho. Menor, mas também mais viva. Acredito que essa redução nos números seja, no plano de Deus, necessária para adquirir um novo impulso. Em algumas partes do norte da Europa será predominantemente uma igreja de migrantes; os ricos nativos são os primeiros a abandonar o barco, porque o Evangelho colide com seus interesses. É o desejo do Papa Francisco: uma igreja pobre, uma igreja viva.

 

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