“Não há somente a necessidade de responder aos desafios globais que exigem respostas globais, mas há a necessidade de ampliar o constitucionalismo”, defende o jurista italiano
“A paz não é um fato natural; o que é natural é a guerra”, disse o jurista italiano Luigi Ferrajoli, fazendo referência ao texto “À paz perpétua”, de Kant, na videoconferência intitulada “O futuro da paz e da democracia. Por uma Constituição da Terra”, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A paz, sublinhou, “deve ser instituída por um pacto de convivência” e o mesmo pode ser dito em relação às democracias. “Natural é o autoritarismo, o despótico, a força política, a ditadura, e o que é artificial é a democracia. O natural são as desigualdades, as doenças. A democracia é, então, uma construção nacional e, nessa perspectiva, não pode não ser uma construção global”.
Na conferência, que integra a programação do XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e do XXI Simpósio Internacional IHU, Ferrajoli propôs uma Constituição da Terra como alternativa aos desafios do século XXI, como a guerra nuclear, a emergência climática e o aumento das desigualdades sociais. “Diante dessas tragédias, a cultura jurídica precisa indicar uma perspectiva de um constitucionalismo global enquanto salto civilizacional”, destaca. A constituição, o pacto de convivência, esclarece, “precisa consistir não somente na garantia dos direitos individuais, mas também dos bens fundamentais, começando pelos bens comuns. Isto é, construir um domínio público planetário que possa garantir, preservar e excluir a apropriação exclusiva da devastação do ar, da água potável, das grandes florestas, das grandes geleiras, que deveriam ser bens fundamentais”. E conclui: “Um constitucionalismo do futuro, se quisermos levar a sério os direitos fundamentais e, sobretudo, pensar na sobrevivência da humanidade, deve ser um constitucionalismo não apenas estatal, mas também em relação aos poderes privados. Não somente liberal, mas também social, não somente de direito público, mas também de direito privado, que proteja os direitos fundamentais, mas também os bens fundamentais contra os bens letais”.
A seguir, publicamos a conferência no formato de entrevista.
Luigi Ferrajoli
Foto: Reprodução
Luigi Ferrajoli é um jurista italiano e um dos principais teóricos do garantismo, definindo-se a si próprio como um juspositivista crítico. Graduou-se em Direito pela Universidade de Roma “La Sapienza”. É autor de “Direito e razão: teoria do garantismo penal” (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002). É professor emérito de Filosofia do Direito na Universidade Roma Tre.
A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 21-10-2022.
IHU – Por que o senhor defende uma Constituição da Terra e em que consiste essa proposta?
Luigi Ferrajoli – Uma Constituição da Terra pode parecer uma utopia, mas vou tentar demonstrar como é a única alternativa realista à catástrofe que ameaça o futuro da humanidade. Temos desafios globais que não fazem parte da agenda dos governos, mas que dizem respeito às condições básicas da sobrevivência humana. Por exemplo, o perigo dos conflitos nucleares.
Pensemos na guerra em andamento na Ucrânia, que foi provocada de forma criminosa pela Rússia de Putin e que pode se tornar um conflito nuclear. Na ausência de uma resposta adequada a essas situações, propus várias vezes uma conferência internacional sobre a paz como uma sessão permanente no Conselho de Segurança da ONU, até que se encontre uma solução para as questões atuais porque o pesadelo nuclear é um pesadelo horrível que pode gerar milhões de mortes. Esse tipo de irresponsabilidade, essa atitude completamente parada que o Ocidente está tendo, não é tolerável.
IHU – Quais as outras catástrofes que poderiam ser gerenciadas a partir de uma Constituição da Terra?
Luigi Ferrajoli – A segunda catástrofe, ou desafio, é o aquecimento global. Todo ano, colocamos na atmosfera muito mais gases de efeito estufa do que no ano anterior. Dessa forma, são inevitáveis o crescimento progressivo da inabitabilidade de partes crescentes da Terra e a impossibilidade de habitar o planeta no futuro. Está cada vez mais difícil viver neste planeta, e há uma ausência de políticas que enfrentem os desafios. Estamos destruindo a natureza da qual depende o futuro da humanidade. Não esqueçamos que nós fazemos parte da natureza. Existe um nexo intenso entre a saúde do ser humano e a saúde do nosso planeta. A emergência climática não era pensável no passado, mas está explodindo de forma dramática agora. Tendencialmente, ela é irreparável se não ocorrer uma intervenção urgente.
O terceiro desafio diz respeito ao direito internacional, que está carregado de cartas sobre direitos humanos e a paz, como a Carta da ONU, que não foram implementadas. Formular um direito fundamental, como direito à saúde, significa introduzir uma obrigação a cargo da esfera pública de garantir o acesso à saúde a todos os seres humanos. Os direitos universais são direitos fundamentais que exigem uma garantia universal. Não podemos continuar declamando direitos de igualdade entre as pessoas enquanto esses princípios continuarem sendo violados ou não implementados.
Há também o desafio em relação ao crescimento da exploração do trabalho. Nos países ricos, estamos testemunhando uma concorrência entre 500 milhões de trabalhadores europeus e americanos desprovidos de garantias e 1,5 bilhão de trabalhadores que trabalham em condição quase de escravidão. Isso está levando a uma destruição das garantias do trabalho. O trabalho é cada vez mais destruído por causa de políticas irresponsáveis que destruíram a igualdade dos trabalhadores, aumentaram a precariedade das relações de trabalho e colocaram em crise todo o sistema de garantias.
Tem ainda o drama dos migrantes. Cada migrante está fugindo de uma dessas tragédias. Não podemos esquecer que o direito de migrar foi formulado na origem da civilização jurídica moderna por Francisco de Vitória [teólogo espanhol neoescolástico], em 1539. Vitória criticou as formas de legitimação antigas, que dividiam o mundo entre espanhóis e portugueses e afirmava que a fonte de legitimação da ocupação do continente americano, por parte dos espanhóis, era o direito de migrar. Trata-se, portanto, de um direito assimétrico porque antes era um direito que poderia ser exercido somente pelos europeus. Ele acrescenta que, no caso de resistência ilegítima do exercício desse direito fundamental, por parte dos espanhóis haveria o direito de guerra, algo que aconteceu pois os povos indígenas foram, dentro de um século, aniquilados. Sempre lembro aos estudantes essa origem não nobre dos direitos fundamentais.
Mas os migrantes tentam chegar aos nossos países onde encontram a rejeição e, em muitos casos, a violência e a morte. Quando conseguem chegar, eles também encontram a falta de integração e, em muitos casos, um não acolhimento, o racismo latente dos nossos povos. Estas são as grandes urgências globais: catástrofe climática, guerras, o uso de armas nucleares, o crescimento das desigualdades, que são cada dia mais visíveis e intoleráveis, a exploração do trabalho e o drama dos migrantes. Como vamos quantificar esses fatos? Não são fatos que podem ser tratados pelo direito penal.
IHU – Como essas questões são e poderiam ser tratadas à luz do direito?
Luigi Ferrajoli – Gostaria de levantar uma questão, aquela da subalternidade do debate político, mas também do debate jurídico, por parte da criminologia em relação ao direito penal. Isto é, a ideia de que tudo aquilo que não é tratado ou tratável pelo direito penal é permitido ou, até mesmo, considerado justo.
É evidente que o aquecimento global, a produção de armas, na ausência de normas que os disciplinem, não são tratáveis pelo direito penal. O mesmo vale em relação à violação dos direitos humanos, à exploração do trabalho. São todos fenômenos que não têm uma previsão normativa determinada de forma taxativa e, então, não são tratáveis pelo direito penal. Porém, não são fenômenos naturais nem de injustiça, mas violações massivas dos direitos e do direito que precisamos denominar crimes. São o que chamo de “crimes praticados pelo sistema”, estendendo a noção de crime, ou seja, crimes praticados pelo sistema porque dependem de razões e de mecanismos políticos do sistema capitalista, do mercado sem regras e existem como fruto de uma falta de responsabilidade política.
Falando sobre os “remédios”, que é a questão de fundo, as soluções para essa questão podem ser aquelas que a nossa tradição nos dá em termos de limites e controles dos poderes selvagens, tanto dos Estados soberanos armados das grandes potências quanto dos mercados. Trata-se da antiga resposta hobbesiana das constituições contra a sociedade selvagem. Mas precisamos reconhecer que, apesar de a Carta da ONU prometer paz e justiça, numa sociedade de 196 estados soberanos, dez estão dotados de armamentos nucleares. Isso em um contexto de globalização e crescimento da interdependência, que se manifestou pela pandemia, pela transmissão de um vírus que desconhece fronteiras e que foi enfrentado de forma diferente nos vários países.
No mundo globalizado, caracterizado por Estados soberanos e mercados globais, é absolutamente impensável que a humanidade possa sobreviver e não ir ao encontro de desastres e catástrofes, a holocaustos nucleares, crescimento do aquecimento climático, crescimento das desigualdades, cujo efeito é o crescimento dos fundamentalismos, dos fanatismos, do terrorismo, do crime organizado. Evidentemente, a parcela da população mundial que não goza dos direitos proclamados tem um ódio em relação ao Ocidente, ódio que aumenta e depende das promessas não mantidas, formuladas nas constituintes após a Segunda Guerra Mundial.
Não há somente a necessidade de responder aos desafios globais que exigem respostas globais, mas há a necessidade de ampliar o constitucionalismo. Esta é uma proposta para a expansão do constitucionalismo à altura dos poderes selvagens dos mercados, poderes que se deslocaram para além das fronteiras, que são globais, e, em seu caráter global, reverteram essa relação com a economia.
Não é mais a política que coloca em concorrência as empresas, mas são as grandes empresas que colocam em concorrência os Estados, seguindo uma lógica segundo a qual os países podem explorar de forma máxima o trabalho, o ambiente, corromper os governos e não pagarem impostos. Esta é a situação do mundo: a geografia do mundo mudou de forma profunda. O crescimento das desigualdades também não era tão visível na década de 1970, nem a exploração do trabalho. Naqueles anos, ao contrário, nasceram o estado social e as garantias dos trabalhadores. Mas hoje estamos diante de desafios globais dos quais depende o futuro da humanidade.
O que isso exige? Uma ampliação do paradigma constitucional à altura dos poderes. O que isso quer dizer? Que é preciso um sistema de limites e vínculos entre os poderes políticos e econômicos como garantia de direitos. A mudança da geografia dos poderes, das agressões e dos direitos exige uma única resposta racional, ou seja, a ampliação do paradigma constitucional, uma ampliação em nível universal.
Gostaria de fazer uma observação teórica e conceitual em relação ao conceito de constituição e de constitucionalismo. Na nossa tradição filosófica e constitucionalista ainda pesa uma noção de constituição elaborada por Carl Schmitt. Não esqueçamos que ele foi um juiz nazista da década de 1920, que afirmava a existência do nexo entre constituição, Estado e povo. Ele acrescentava que o povo alemão, a quem ele se referia, era concebido enquanto entidade homogênea no sentido de que a minoria estava obrigada a aceitar a opinião da maioria. Essa concepção identitária nacionalista é horrível e está em completa oposição à ideia de constituição expressada pelas muitas cartas dos direitos humanos e pelas constituições italiana, alemã, brasileira e por todas as constituições avançadas que são caracterizadas pela afirmação do princípio de igualdade dos seres humanos enquanto pessoas.
O que princípio de igualdade quer dizer nesse sentido? Quer dizer que temos um valor igual associado a todas as diferenças que fazem com que cada pessoa seja um indivíduo diferente do outro e que cada indivíduo seja igual aos outros. Ou seja, uma igualdade que implica no respeito e no valor igual das diferenças, de forma oposta à constituição de Schmitt.
O constitucionalismo moderno é universalista, pois os direitos fundamentais ou são universais ou não o são. Todos os direitos de liberdade outra coisa não é senão direitos à afirmação, à proteção e à manifestação das diferenças: liberdade cultural, religiosa, de pensamento, de associação etc. Mas igualdade significa também redução das excessivas desigualdades materiais e este é o segundo objetivo. Se a igualdade das diferenças está garantida pelos direitos de liberdade, a redução das desigualdades está garantida pelos direitos sociais, direito à saúde, à educação, à assistência, direitos que exigem uma implementação.
A construção da democracia consiste na criação de instituições que possam funcionar como garantias dos direitos fundamentais, pois, diferentemente dos direitos patrimoniais, os direitos fundamentais não nascem junto com suas garantias. Os direitos fundamentais são diferentes. O direito à vida, à liberdade, à saúde, exige leis de implementação. Não é suficiente estabelecer esse direito para que tenhamos hospitais. Aquele direito implica na obrigação de construir hospitais abertos a todos. Até mesmo o direito à vida exige uma lei de implementação.
As constituições permitem uma leitura da realidade existente como um conjunto de violações ou por comissões, violações da vida e do direito de liberdade e regimes despóticos, ou por omissão, como vemos, em nível internacional, com as muitas cartas por direitos que não foram seguidas por leis de implementação que introduzissem, por exemplo, uma organização mundial da saúde. O mesmo pode ser dito em relação aos direitos para a educação. Mas não só isso. A novidade dessas grandes urgências acrescentou à linguagem do direito aquela dos méritos. A constituição, o pacto de convivência, precisa consistir não somente na garantia dos direitos individuais, mas também dos bens fundamentais, começando pelos bens comuns. Isto é, construir um domínio público planetário que possa garantir, preservar e excluir a apropriação exclusiva da devastação do ar, da água potável, das grandes florestas, das grandes geleiras, que deveriam ser bens fundamentais.
Bens comuns é uma categoria renomada desde o direito romano: res communes. Os bens comuns incluem o ar, os rios, as grandes florestas, que não podem ser de apropriação privada. É preciso um constitucionalismo à altura dos desafios globais que envolva a proibição dos bens letais contrários aos bens vitais. Quais são os bens letais? São as armas. No mundo ainda existem 15 mil ogivas nucleares e poderíamos calcular que 50 delas seriam suficientes para destruir a humanidade inteira. Estamos diante de uma ameaça construída por nós mesmos e que precisa ser proibida. O pacto de convivência precisa proibir as armas nucleares, como o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares tinha começado a fazer, passando de 70 mil para 15 mil o número das ogivas. Mas o processo foi interrompido por iniciativa do ex-presidente Donald Trump. É preciso recomeçá-lo, ainda mais em um momento como este, de ameaça a uma guerra nuclear. Isso deveria ser o objeto principal de uma conferência de paz.
Então, o constitucionalismo não deve ser estatal, mas supranacional, segundo a lógica das constituições. Nesse sentido, temos uma concretização do constitucionalismo e da sua lógica universalista e internacionalista, um constitucionalismo que não diz respeito somente aos poderes estatais, mas aos poderes dos mercados. Na nossa tradição, é sintomático o uso da palavra “estado de direito”, ou seja, a ideia de que somente o Estado seja o local de poder. Estado de direito significa que os poderes estatais precisam estar submetidos ao direito.
Um constitucionalismo do futuro, se quisermos levar a sério os direitos fundamentais e, sobretudo, pensar na sobrevivência da humanidade, deve ser um constitucionalismo não apenas estatal, mas também em relação aos poderes privados. Não somente liberal, mas também social, não somente de direito público, mas também de direito privado, que proteja os direitos fundamentais, mas também os bens fundamentais contra os bens letais.
IHU – Que objeções são feitas a essa proposta?
Luigi Ferrajoli – A objeção feita contra essa proposta é a seguinte: o seu caráter irrealista. Mas eu gostaria de fazer uma distinção mais de fundo. Temos aqui dois tipos de realismo. Um realismo que chamo de vulgar, que é um realismo ideológico, que consiste na naturalização do direito, da política, da economia, ou seja, na ideia de que não há alternativas ao que está acontecendo agora. Essa é uma tese repetida por muitos governantes. Se não há alternativa, estamos à deriva, a qual está levando o mundo à autodestruição. Esse é um tipo de idealismo ideológico de legitimação do que existe, pois naturaliza uma realidade que é artificial e tira a responsabilidade da política ao dizer que é natural algo que, na realidade, é produto dos homens, das nossas políticas, das nossas escolhas de caráter econômico, das nossas desigualdades. Ou seja, de tudo que é produzido e moldou o sistema político das relações internacionais na maneira que todos conhecemos, produzindo os desafios e as catástrofes globais que querem destruir o futuro da humanidade.
Outro tipo de realismo é o crítico, racional, que consiste considerar os problemas, elaborar as soluções necessárias para enfrentar esses problemas. Isso foi proposto por Thomas Hobbes como alternativa à guerra de todos contra todos. Ou seja, paradoxalmente o constitucionalismo de todas as constituições – que são um conjunto de leis dos mais fracos – e todos os direitos fundamentais são as leis dos mais fracos, em garantia à sua sobrevivência em relação aos poderes dos mais fortes, que se afirmariam na sua ausência.
Kant trata bem desse realismo em “À paz perpétua”: a paz não é um fato natural; o que é natural é a guerra. A paz deve ser instituída por um pacto de convivência. Podemos dizer o mesmo para as democracias: o natural é o autoritarismo, o despótico, a força política, a ditadura, e o que é artificial é a democracia. O natural são as desigualdades, as doenças. A democracia é, então, uma construção nacional e, nessa perspectiva, não pode não ser uma construção global. Então precisamos reconhecer, nesse realismo racionalista, aquele racionalismo que, apesar do pessimismo que podemos ter atualmente, representa a única resposta possível diante de um futuro de desastre. Na história humana, tivemos grandes tragédias, horrores – pensemos no holocausto, no autoritarismo nazista e fascista, nos horrores das guerras. Mas tudo isso é bem menos do que a destruição da humanidade, algo que uma guerra nuclear pode provocar.
Diante dessas tragédias, a cultura jurídica precisa indicar uma perspectiva de um constitucionalismo global enquanto salto civilizacional. Depois do salto de civilização que foi realizado com a instituição do estado de direito em relação aos antigos estados absolutos, tivemos um constitucionalismo rígido após a Segunda Guerra Mundial. Dizer “nunca mais” a esses horrores, hoje, é insuficiente porque eles são formulados por constituições nacionais cujo âmbito de validade é apenas nacional. Nenhum Estado sozinho pode enfrentar emergências críticas globais desse tamanho. Mesmo querendo, os Estados democráticos são formados por contingentes eleitorais afetados pelos presentismos e localismos. Então, mesmo querendo, os Estados, por si sós, não podem responder a esses desafios. Nenhum Estado vai abrir, sozinho, suas fronteiras, nem desarmar ou enfrentar o aquecimento global climático.
Diante dessa impotência, a única resposta racional é a ampliação e concretização do constitucionalismo. A sua garantia, em nível universal, consiste em levar a sério as tantas cartas de direitos já existentes, implementando-as na própria lógica do constitucionalismo. É claro que precisamos ter consciência dos obstáculos que temos nesse caminho e contra essa perspectiva. Porém, o primeiro passo – eis o meu objetivo – é mostrar que uma alternativa é possível.
Escrevi uma constituição composta por cem artigos com um objetivo só: mostrar que é possível, para além do nosso pessimismo e dos obstáculos que são contra essas transformações. Não há nada impossível no plano teórico. É um texto constitucional que pode ser melhorado, alterado, mas que mostra que é possível, superando os limites da Carta da ONU. A Carta da ONU promete a paz, mas resguarda a soberania dos Estados, a soberania armada, e não prevê instituições de garantia que são os pontos que mais contam em nível internacional. Não precisamos de um governo, de um leviatã, de um político mundial. As funções políticas precisam estar a cargo dos Estados, das províncias, das regiões, pois são mais legítimas nas suas funções quanto mais forem representativas e próximas dos eleitores. Mas o que se exige, no nível internacional, é o que eu chamo de instituições de garantias dos direitos fundamentais e dos bens comuns.
É a igualdade que está no centro porque garante os direitos a todos, mesmo àqueles que não compartilham desses valores. Isso implica uma redefinição da soberania. A soberania, enquanto propriedade absoluta, está em contradição com a ideia de estado de direito. Essa soberania que pertence ao povo, tal como escrito nas constituições, quer dizer que pertence ao povo e a mais ninguém. Esta é a tese que sustento. Mas como o povo não existe enquanto entidade unitária, sendo um conjunto de milhões e bilhões de pessoas, a soberania não é outra coisa que a soma daqueles poderes e contrapoderes – começando pelo direito de voto, de liberdades, direitos sociais – que cada um de nós detém. É a soma daqueles direitos fundamentais que faz com que cada um de nós seja soberano e detentor de um fragmento de soberania. Essa soberania pertence ao povo e não pertence aos Estados ou presidentes ou parlamentos, mas pertence a todos os seres humanos.
Também é necessário haver uma redefinição de cidadania. Precisamos dizer que a cidadania é o último acidente de nascimento que diferencia as pessoas devido ao seu status de nascimento. Tenho consciência do caráter utópico, mas gosto de dizer, repito, que o objetivo é mostrar o caráter possível. Depois de estabelecermos que é possível, precisamos afirmar que é um dever nosso, pois se levarmos a sério os direitos fundamentais, a eles correspondem obrigações a cargo da esfera pública. Então é preciso introduzir essas obrigações e proibições na forma de instituição de garantias. A proibição das armas e dos bens letais, sobretudo, é um dever necessário e urgente, pois a novidade desses desafios em relação aos desafios do passado é que as catástrofes já estão em andamento e podem produzir danos irreversíveis. Há o perigo de que não teremos mais tempo para formular os nossos “nunca mais” constitucionais. Então há uma urgência em estipular e refundar a Carta da ONU e estipular uma Constituição da Terra.
IHU – O senhor é otimista acerca do futuro?
Luigi Ferrajoli – Gostaria de concluir com otimismo em um quadro que é pessimista, indicando alternativas possíveis: o lugar universalista das constituições e um pacto de convivência já estipulado pela Carta da ONU, que é imperfeita, mas que precisamos garantir com a introdução de instituições de garantias.
O otimismo consiste no fato de que não só a geografia dos poderes mudou, mas mudou o gênero humano. Todos nós somos um povo do mundo interconectado. Existe uma comunicação universal, estamos expostos aos mesmos desafios, perigos, catástrofes, que dizem respeito a todas as potências, tanto ricas quanto pobres, pois este é o único planeta que temos. É interesse de todos superar a miopia miserável e ligada aos poderes locais que defendem as soberanias locais e que estão em contradição com os direitos e, sobretudo, com os grandes desafios que ameaçam o futuro da humanidade: o nuclear e o econômico.
O outro elemento de otimismo não é apenas a existência de um povo da Terra, mas de um interesse público, um novo interesse: a necessidade de redefinir o interesse público que não se identifica mais com o interesse nacional, mas levando a sério as constituições vigentes – por isso a constituição da Terra propõe a sucessão do caráter rígido. Esse é o verdadeiro interesse público que reúne todos os povos da Terra, para além das diferenças culturais, que são sinais de riqueza com base no princípio de igualdade.
O futuro deve ser uma humanidade mestiça na qual convivem todas as religiões no respeito dos direitos individuais porque os direitos também estão ligados às próprias culturas, às mulheres.
Pensemos nas mulheres que vivem no Irã e estão lutando neste momento. O interesse público, nesse sentido, equivale sempre – e cada vez mais – ao interesse universal da humanidade.
Claro que tem um pessimismo de fundo porque estamos no momento mais dramático da história, com uma possível guerra nuclear, mudanças climáticas. Existem várias razões para sermos pessimistas, mas acredito que mostrar a possibilidade de uma alternativa é o primeiro passo que confere à ciência jurídica um fascínio novo em relação ao passado. No passado era a política o lugar do progresso, e as ciências jurídicas eram o lugar da conservação. As constituições e os direitos fundamentais desenharam um horizonte do direito que nunca será perfeitamente realizável, mas em relação ao qual a constituição das democracias permite realizar.