14 Outubro 2022
"O voto religioso (incluindo os sem religião) continua importante na definição da política brasileira", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e pesquisador de meio ambiente, em artigo publicado por EcoDebate, 12-10-2022.
O Brasil foi concebido no seio das conquistas das grandes navegações da Europa cristã. A ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da expansão comercial da Europa. Mas, além dos interesses econômicos, cabe destacar que o Brasil nasceu e cresceu umbilicalmente ligado à religião católica, especialmente o catolicismo da Península Ibérica.
O projeto colonizador português estabeleceu como uma de suas metas prioritárias a conquista espiritual do Novo Mundo. As velas das naus de Pedro Alvares Cabral estampavam a Cruz de Malta (cruz de oito pontas na forma de quatro “Vs”, cujo desenho é baseado em cruzes usadas desde a Primeira Cruzada). O primeiro nome do Brasil foi Ilha de Vera Cruz. Após novas explorações, descobriu-se que se tratava de um continente e o nome foi alterado para Terra de Santa Cruz. Foi também aos pés de uma cruz que foi oficializada a Primeira Missa, rezada por Frei Henrique de Coimbra, no domingo, 26 de abril de 1500 (ALVES, 2022).
O catolicismo se tornou uma das principais marcas identitárias do Brasil. A Igreja Católica era a única instituição religiosa reconhecida oficialmente até o início da República e se manteve amplamente hegemônica durante a maior parte do século XX. Brasileiro era, praticamente, sinônimo de católico.
O primeiro censo demográfico ocorrido no Brasil foi realizado em 1872 (cinquenta anos após a Independência) e indicou que 99,7% da população de 9,9 milhões de habitantes eram católicas. Nota-se que a maioria dos escravos e dos indígenas foi classificada como católicos. Apenas 0,1% (cerca de 10 mil pessoas) foram registradas como evangélicas (especialmente migrantes europeus que vieram para o Brasil originários de países protestantes).
Nos 98 anos seguintes, a população total brasileira deu um salto para 93,1 milhões de habitantes em 1970, sendo 85,5 milhões de católicos (91,8%), 4,8 milhões de evangélicos (5,2%), 2,1 milhões de outras religiões (2,3%) e 702 mil de sem religião (0,8%). Todavia, a lenta redução do percentual de católicos brasileiros se acelerou bastante nas décadas seguintes. O número de católicos era de 121,8 milhões (83%) em 1991, passou para 124,9 milhões (73,6%) em 2000 e diminuiu para 123,3 milhões em 2010. Percebe-se que o número absoluto de católicos atingiu o valor máximo no ano 2000 e, pela primeira vez na história brasileira, o número absoluto de católicos caiu na década inaugural do século XXI.
Além disto, o decrescimento relativo dos católicos que estava em 1% por década, passou para 1% ao ano. Concomitantemente, entre 1991 e 2010, os evangélicos passaram a crescer 0,7% ao ano, as outras religiões cresceram 0,1% ao ano e os sem religião cresceram 0,17% ao ano.
Portanto, o Brasil está ficando mais diversificado em termos religiosos e o monopólio católico está sendo substituído, pelo menos por enquanto, por uma maior pluralidade. Portanto, o século XXI, em termos da configuração religiosa, será completamente diferente dos 500 anos anteriores.
Fica evidente que o Brasil está passando por um processo de transição religiosa que se desdobra em quatro movimentos: declínio absoluto e relativo das filiações católicas; aumento acelerado das filiações evangélicas; crescimento do percentual das religiões não cristãs; aumento absoluto e relativo das pessoas que se declaram sem religião, conforme mostra o gráfico abaixo.
Foto: Reprodução EcoDebate
Infelizmente o IBGE não incluiu o quesito religião em nenhuma de suas pesquisas domiciliares na década de 2010 e a lacuna de dados se agravou com adiamento do censo demográfico para o segundo semestre de 2022. Sem embargo, existem outras pesquisas, tais como aquelas do Latinobarômetro, Pew Research Center e Datafolha, que fornecem pistas sobre o ritmo da transição religiosa no Brasil.
Assim, com base nas evidências disponíveis entre 2010 e 2022, realizamos uma projeção cobrindo o período 2010 a 2032, assumindo os seguintes pressupostos: continuidade da queda das filiações católicos no ritmo de 1,2% ao ano e aumento anual de 0,8% dos evangélicos, de 0,17% das outras religiões e 0,23% das pessoas autodeclaradas sem religião.
O resultado desta projeção está apresentado no mesmo gráfico que mostra os católicos com 49,9% das filiações religiosas em 2022 (pela primeira vez abaixo de 50%) e com 38,6% em 2032, e os evangélicos apresentando percentuais de 31,8% e 39,8% no mesmo período. Ou seja, os evangélicos devem ultrapassar os católicos nos próximos 10 anos e contribui para isto o fato de estarem mais bem posicionados, em termos de dinâmica demográfica, na população urbana, pobre, jovem e feminina. As demais religiões devem passar de 5,2% em 2010 para 8,5% em 2032 e o grupo sem religião deve passar de 8% para 13,1% no mesmo período. Sendo assim, haverá mudança na hegemonia entre os dois grandes grupos cristãos, em um quadro de maior concorrência e pluralidade religiosa.
Projeções são sempre sujeitas a revisões, mas o cenário religioso brasileiro na primeira metade do século XXI apresenta uma grande novidade em relação aos 500 anos anteriores, pois o monopólio de um grupo foi substituído por um maior equilíbrio entre as diversas alternativas de crenças. Já não existe nenhuma maioria absoluta, sendo que católicos e evangélicos devem ficar, cada um, com cerca de 40% das filiações em 2032.
As outras religiões e as pessoas sem religião devem ter, em conjunto, um peso acima de 20% na mesma data. Sem dúvida é um panorama mais plural e democrático, como mostrado no livro “Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI” (Alves, 2022).
Foto: Reprodução EcoDebate
Na falta de dados do censo demográfico sobre a evolução das filiações religiosas, uma maneira de avaliar as alterações no panorama religioso do país é acompanhar o crescimento da abertura de templos nas últimas décadas. Matéria publicada no jornal O Globo (18/09/2022), por Bernardo Mello e Natália Portinari, acompanhando os CNPJs cadastrados, mostra que foram abertos 9.320 templos evangélicos de 1973 a 1982, passando para 18.175 templos entre 1983-1992, para 37.907 templos de 1993-2002, deu mais um salto para 63.808 em 2003-2012 e atingiu o valor máximo na década 2013-2022, com 71.745 templos (embora os dados não cubram todo o ano de 2022).
A abertura de templos é fundamental para fidelizar os simpatizantes de cada igreja. Como mostramos no artigo “A transição religiosa brasileira e o processo de difusão das filiações evangélicas no Rio de Janeiro” (Alves et al. 20124) a expansão das igrejas evangélicas no Rio de Janeiro avançam com mais velocidade onde há grandes rotas viárias (BR 101 e Dutra), pois isto facilita a abertura e o contato entre os templos e as pessoas tendem a frequentar os espaços religiosos mais próximos de suas residências. O crescimento da bancada evangélica é outra indicação de que o processo de transição religiosa está se acelerando no Brasil. O fato é que existem várias pistas que reforçam as projeções apresentadas no gráfico acima.
Evidentemente, o futuro concreto da transição religiosa está em aberto e os números exatos vão depender de uma multiplicidade de fatores. O ritmo pode variar, mas a tendência geral é de continuidade do declínio absoluto e relativo das filiações católicas e o aumento absoluto e relativo dos evangélicos, das outras religiões e das pessoas que se declaram sem religião.
Com certeza, na primeira metade do século XXI, o Brasil vai apresentar uma configuração religiosa mais plural do que aquela que prevaleceu nos 500 anos do país ou nos 200 anos da Independência.
Como mostrei no artigo “Os votos em Lula e Bolsonaro por região e religião no primeiro turno das eleições de 2022” (Alves, 03/10/2022), no Portal Ecodebate, o voto religioso (incluindo os sem religião) continua importante na definição da política brasileira.
Mas, acima de tudo, é fundamental que se garanta a prevalência do Estado Laico no país e se evite sempre a “guerra santa”, em especial no período eleitoral.
ALVES, J. E. D; NOVELLINO, M. S. F. A dinâmica das filiações religiosas no Rio de Janeiro: 1991-2000. Um recorte por Educação, Cor, Geração e Gênero. In: Patarra, Neide; Ajara, Cesar; Souto, Jane. (Org.). A ENCE aos 50 anos, um olhar sobre o Rio de Janeiro. RJ, ENCE/IBGE, 2006, v. 1, p. 275-308. Disponível aqui.
ALVES, JED, BARROS, LFW, CAVENAGHI, S. A dinâmica das filiações religiosas no brasil entre 2000 e 2010: diversificação e processo de mudança de hegemonia. REVER (PUC-SP), v. 12, p. 145-174, 2012. Disponível aqui.
ALVES, JED, CAVENGHI, S. BARROS, LFW. A transição religiosa brasileira e o processo de difusão das filiações evangélicas no Rio de Janeiro, PUC/MG, Belo Horizonte, Revista Horizonte – Dossiê: Religião e Demografia, v. 12, n. 36, out./dez. 2014, pp. 1055-1085 DOI–10.5752/P.2175-5841.2014v12n36p1055. Disponível aqui.
ALVES, JED. A vitória da teologia da prosperidade, Folha de São Paulo, 06/07/2012. Disponível aqui.
ALVES, JED. Os Papas, os pobres e a perda de hegemonia dos católicos no Brasil, Ecodebate, RJ, 31/07/2013. Disponível aqui.
ALVES, JED. “A encíclica Laudato Si’: ecologia integral, gênero e ecologia profunda”, Belo Horizonte, Revista Horizonte, Dossiê: Relações de Gênero e Religião, Puc-MG, vol. 13, no. 39, Jul./Set. 2015. Disponível aqui.
ALVES, JED, CAVENAGHI, S, BARROS, LFW, CARVALHO, A.A. Distribuição espacial da transição religiosa no Brasil, Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 2, 2017, pp: 215-242. Disponível aqui.
Bernardo Mello e Natália Portinari. Salto evangélico: 21 igrejas são abertas por dia no Brasil; segmento é alvo de Lula e Bolsonaro, O Globo, 18 setembro 2022. Disponível aqui.
ALVES, JED. Os votos em Lula e Bolsonaro por região e religião no primeiro turno das eleições de 2022, Ecodebate, 03/10/2022. Disponível aqui.
ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI, Escola de Negócios e Seguro (ENS), (com a colaboração de Francisco Galiza), maio de 2022. Disponível aqui.
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A aceleração da transição religiosa no Brasil: 1872-2032. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU