05 Outubro 2022
Investigação da ‘Repórter Brasil’ mostra relação entre biodiesel feito com sebo de boi exportado para bloco europeu por empresas como JBS e destruição da Amazônia e o aquecimento global.
A reportagem é de Naira Hofmeister e Isabel Harari, publicada por Repórter Brasil, 03-10-2022.
A União Europeia (UE) está importando biodiesel brasileiro para reduzir as emissões de gases de efeito estufa de seu setor de transportes. No entanto, a compra de combustível fabricado com sebo de boi vem produzindo o efeito oposto e contribuindo com o aquecimento global. É o que revela a mais recente investigação da Repórter Brasil, publicada no relatório “O combustível verde que desmata”, com versões em inglês e português.
Isso porque ao importar esse tipo de biocombustível – foram mais de 10 milhões de litros nos últimos dois anos –, a UE acaba incentivando justamente o setor que mais contribui para as emissões no Brasil: a pecuária.
Em abril de 2020, a JBS enviou 3,6 milhões de litros de biodiesel para a Europa – tudo produzido com sebo dos mesmos bois que a companhia abate para a fabricação de carne. Com frequência, órgãos públicos ou investigações jornalísticas demonstram que a empresa compra animais criados em fazendas desmatadas.
No Brasil, a principal fonte de carbono emitido na atmosfera é o desmatamento. E a pecuária está no centro do problema: 90% das árvores derrubadas são substituídas por pastagens.
Em outubro de 2021, quase 5 milhões de litros de biodiesel foram enviados pela empresa gaúcha BSBios para a Bélgica, adquiridos pelo braço local da gigante do agronegócio Cargill – foi o maior volume de biodiesel exportado pelo Brasil desde 2015 em uma única operação. Pouco tempo antes, entre agosto e setembro de 2021, mais de 2 milhões de litros de biodiesel também foram destinados pela BSBios à Clover Energy, uma trading de commodities sediada na Suíça.
Segundo apuração da Repórter Brasil, ambas cargas podem ter o sebo de boi como um de seus componentes.
A União Europeia (UE) adota medidas para evitar que a produção de biocombustíveis tome lugar da vegetação nativa. “Como as árvores absorvem CO2 da atmosfera, removê-las para a produção de biocombustíveis pode resultar em um aumento dos gases de efeito estufa ao invés de uma diminuição”, justifica o bloco em sua página dedicada ao tema.
No entanto, o International Sustainability & Carbon Certification (ISCC), responsável por garantir que isso não ocorra, certificou a JBS e a BSBios para exportarem para a Europa, apesar da relação existente entre pecuária e desmatamento. O regulamento estabelece que as matérias-primas dos combustíveis verdes não podem incentivar a destruição de biodiversidade, mas isso não é aplicado às empresas que utilizam o sebo de boi na produção porque este material é considerado um resíduo do abate, e não um ingrediente primário.
Questionada pela Repórter Brasil, o ISCC afirmou que, para evitar o descarte, “é desejável que resíduos possam ter um uso posterior, por exemplo, com a produção de biocombustíveis” (leia a resposta na íntegra). No entanto, o órgão não respondeu sobre o fato de certificar uma atividade que está contribuindo para o aquecimento global, apenas confirmou que um de seus princípios “se refere à biomassa agrícola e não se aplica no caso de resíduos ou desperdícios, tais como gorduras animais”.
A JBS também defende o reaproveitamento do sebo bovino para a produção energética: “não fosse essa utilização [biodiesel], esses resíduos seriam descartados, com prejuízo para a sociedade”, argumenta o frigorífico, que acrescenta ainda que “conta com uma política de compra responsável de matéria-prima”.
A BSBios não respondeu quais são seus fornecedores do sebo bovino, mas diz que a certificação europeia atesta que o seu biodiesel reduz de 86% a 90% a emissão de gases do efeito estufa em comparação ao diesel fóssil. A Cargill tampouco informou a origem do produto que importou, mas garantiu aplicar “os mais altos padrões de certificação de sustentabilidade e rastreabilidade para todas as matérias-primas”. A íntegra das manifestações pode ser lida neste link. A Clover preferiu “não fornecer nenhum detalhe” sobre o negócio envolvendo seu nome.
Os certificados emitidos pela ISCC garantem que “a biomassa não é produzida em terras com alta biodiversidade e alto estoque de carbono” – um critério que poderia ser aplicado à Amazônia, a maior floresta tropical do planeta, onde a JBS tem mais de 30 plantas de abate, cujos raios de compras representam risco para 4,6 milhões de hectares de vegetação nativa.
De fato, o Ministério Público Federal revelou em outubro do ano passado que, entre 2018 e 2019, a JBS abateu no Pará 285 mil cabeças de gado que haviam sido criadas em propriedades que desmataram a Amazônia de forma ilegal – é um terço de todos os animais que a empresa processou neste estado brasileiro, no período.
Em 2020, a Repórter Brasil mostrou evidências de que a própria companhia transportava gado de fazendas que estavam embargadas pelos órgãos ambientais para outras sobre as quais não recaía nenhuma irregularidade – para então, comprar e abater os bois, ignorando sua relação com a destruição da floresta.
Sobre a BSBios, o fato de estar localizada no Rio Grande do Sul, onde há rebanho bovino, não afasta a possibilidade de que a empresa compre também de fornecedores da Amazônia – região que concentra mais de 40% do rebanho de gado brasileiro. Isso porque entre as instalações produtoras de biodiesel autorizadas a operar no Brasil que utilizam o sebo bovino como matéria-prima, a BSBIOS é a que tem o maior potencial de produção, de 2.600 m3/dia.
De acordo com relatório de sustentabilidade de 2018 da empresa, as gorduras animais processadas vêm de diferentes regiões. E a empresa vai longe para buscar a matéria-prima. A distância média entre a unidade de extração da gordura animal até a unidade de produção de biodiesel é de 700,36 km, segundo dados de um programa brasileiro de estímulo aos biocombustíveis. A empresa utiliza outros ingredientes para fabricar seu biodiesel, e o principal deles é a soja, embora a gordura animal venha ganhando importância em sua linha de produção.
O negócio do biodiesel também tem trazido bons frutos para a JBS e a empresa já iniciou a construção de sua terceira fábrica de biodiesel no país, em Santa Catarina. As outras duas estão em Lins (SP) e no Mato Grosso, em uma região conhecida como o arco do desmatamento da Amazônia. Com a nova unidade, a empresa espera dobrar a produção de biodiesel, atingindo 1 bilhão de litros anuais.
A operação também valorizou a matéria prima. Segundo Sérgio Beltrão, secretário executivo da União Brasileira do Biodiesel e Bioquerosene, o quilo do sebo de boi valia menos de R$ 2 em 2007; no ano passado foi negociado a mais de R$ 6.
O ISCC observa que, embora o princípio nº 1 da auditoria não seja aplicável ao sebo de boi ou outros resíduos, há outras duas obrigações que empresas como a JBS precisam cumprir para receber certificação: rastrear totalmente sua cadeia de fornecimento e provar que há redução efetiva nas emissões de gases de efeito estufa comparando o biocombustível com seu “irmão” fóssil.
Ambos critérios, ao invés de dificultar, facilitam os negócios das exportadoras brasileiras. Como o sebo é um resíduo, a rastreabilidade da cadeia não retrocede até o pasto, que é o equivalente ao cultivo agrícola, no caso da soja ou do milho que geram biocombustíveis. “No caso dos resíduos, o processo de certificação começa no ponto em que o resíduo ou material residual é gerado. No caso, é geralmente a unidade de transformação”, explica a ISCC.
Por ter a cadeia produtiva verificável mais curta, o cálculo de emissões do sebo de boi também fica restrito à etapa industrial, o que traz vantagens para o fabricante. O biodiesel produzido com sebo de boi vai proporcionar uma economia de gases de efeito estufa na atmosfera (em relação ao diesel fóssil) muito maior que o produto cuja matéria prima exige verificação desde o cultivo. No Brasil, essa diferença permite que a JBS gere mais créditos de carbono, proporcionalmente, que outros participantes de um programa do governo brasileiro desenhado para reduzir as emissões no transporte.
A Cargill diz que este é inclusive um critério que adota na seleção do seu combustível verde: “Estamos priorizando ativamente os biocombustíveis produzidos a partir de fontes renováveis ou de resíduos, como óleos de cozinha usados, sebo e terra de branqueamento usada. Essas matérias-primas têm uma maior contribuição para as reduções de emissões certificadas”, afirma a Cargill.
A JBS já renovou duas vezes seu certificado ISCC depois da venda de 2020. No espaço destinado a detalhar as certificações que possui, em sua página na internet, a JBS diz ao público que o selo “reconhece a responsabilidade das empresas na redução da emissão de gases do efeito estufa (GEE), na utilização sustentável do solo, na proteção de biosferas naturais e no aumento da sustentabilidade social”.
A empresa também salienta o segmento em seu relatório de sustentabilidade. No capítulo sobre mudanças climáticas, o negócio é apresentado da seguinte forma: “Entre os destaques de redução de emissões [de gases de efeito estufa] estão as operações da JBS Biodiesel”. O documento diz que a JBS Biodiesel é “a maior produtora mundial verticalizada de biodiesel, a partir de sebo bovino e óleo de cozinha usado, e a primeira no Brasil”.
O ISCC informa que seu trabalho de verificação das cadeias produtivas de biocombustíveis vai além do que é exigido pela União Europeia. A certificadora checa se o fabricante toma medidas para proteger o solo, o ar e as águas, e ainda se respeita os direitos humanos e trabalhistas.
Se ampliasse o olhar a toda a cadeia produtiva do gado, o ISCC talvez tivesse vetado a certificação da JBS por comprar animais de um pecuarista que utilizava mão de obra escrava em sua fazenda. Em abril de 2018, autoridades brasileiras encontraram 30 funcionários de Maurício Pompeia Fraga transportando gado a pé em um trajeto de 900 quilômetros: quatro meses sem folga, sem local apropriado para dormir, sem água potável ou banheiro nem contrato formal de trabalho. Havia um adolescente de 16 anos entre os trabalhadores. A JBS só interrompeu a relação com o fazendeiro depois que seu nome foi inscrito na lista suja do Ministério do Trabalho, em 2021, embora a fiscalização tenha ocorrido em 2018. Neste intervalo de tempo, um dos diretores da JBS fez um elogio público a Fraga na televisão.
Enquanto BSBios e Cargill não prestam esclarecimentos sobre a origem do biodiesel que estão negociando na Europa, o que a JBS prefere manter em segredo é a empresa e país compradores da sua carga de 2020. Só disse que chegou no porto de Roterdã, na Holanda – o local é a principal porta de chegada de mercadorias para a Europa.
A reportagem questionou a JBS e o ECB Group, responsável pela logística da operação, sobre qual foi o destino final, mas ambas alegaram sigilo empresarial para negar a informação. A íntegra das manifestações pode ser lida aqui.
Em 2014, a JBS tornou pública a negociação de 6,7 milhões de litros de biodiesel com a companhia holandesa Argos. “É a maior distribuidora independente de combustíveis do norte da Europa. O combustível será utilizado na mistura com o diesel convencional para, posteriormente, ser distribuído”, informou o relatório de sustentabilidade da companhia na época. A certificação foi dada pela ISCC.
A Argos pertence ao grupo Varo, o mesmo que vendeu, em 2019, sua subsidiária no Brasil para o ECB Group – que agora intermediou o negócio da JBS com a União Europeia. A operação da holandesa no Brasil, por sua vez, foi a responsável pela logística de exportação em 2014. O ECB Group também é o controlador da BSBios.
Diante das coincidências, a Repórter Brasil questionou a Varo se havia feito, novamente, a compra do biodiesel da JBS, em 2020, mas a companhia informou que “por uma questão de princípios, não fornece informações sobre quaisquer atividades comerciais ou contrapartes com as quais se envolva”. Apesar disso, salientou que “aplica uma política de compras muito rigorosa”, que inclui o monitoramento da origem dos combustíveis que distribui. A íntegra das respostas pode ser lida aqui.
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Europa compra ‘combustível verde’ do Brasil mas ignora ligação com desmatamento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU