Transição humanística. Entrevista com Gaël Giraud

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03 Outubro 2022

 

 

Para um mundo mais justo e um ambiente mais saudável, os códigos do capitalismo devem ser repensados. "Como? Eu tenho uma ideia”, diz Gaël Giraud, economista e jesuíta.

 

O exercício poderia parecer estranho, mas experimentem. Oponham o adjetivo "doce" ao cenário catastrófico do aquecimento global. Agora, superado o incômodo inicial do curto-circuito linguístico, comecem a pensar na transição ecológica: não como a última via de saída de um planeta em queda rumo à devastação, mas como um percurso doce por ser espiritual. Doce porque imagina uma sociedade de relações em que os bens (água, energia, terra) são compartilhados. “Há quem pense que seja uma mudança traumática, mas eu de traumático só vejo as consequências do neoliberalismo e da crise climática: em 2040 na Itália faltará 40% de água potável e uma parte do país será inabitável. É por isso que a transição não deveria assustar”.

 

E para isso Gaël Giraud, economista e jesuíta com um currículo impressionante (ensino, livros e cargos), intitulou seu novo ensaio, publicado pela Lev, La rivoluzione dolce della transizione ecológica [A revolução doce da transição ecológica, em tradução livre]. Um texto concreto e visionário, radical - basta ler seus comentários sobre finanças e bancos - e profundamente cristão. Giraud, em conexão de Washington, responde em italiano, uma das sete línguas que fala: “Está se espalhando a ideia de que a transição é um osso duro de roer, mas discordo. É uma estrada fácil de percorrer. Muito mais simples do que sobreviver em um mundo terrível”.

 

A entrevista é de Annachiara Sacchi, publicada por la Lettura, 02-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Eis a entrevista. 

 

Seu livro começa analisando os erros da ciência econômica. Por que ainda damos tanto crédito, especialmente às finanças?

 

É um mistério para mim também, mas conheço suas origens. Nos anos 1970 a direita era fascinada pelos mercados financeiros, via-os como uma possibilidade para destruir o estado intervencionista de esquerda, como aconteceu na zona euro: um estado que não imprime cédulas de dinheiro tem dificuldade para influenciar a economia, só pode agir sobre a dívida pública favorecendo as finanças. A esquerda, por outro lado, via os mercados financeiros como uma alternativa ao dualismo trabalhadores/capitalistas. É claro que com Jacques Delors e Tommaso Padoa-Schioppa, nutria-se o sonho de um mundo sem luta social. Mas era uma armadilha.

 

Estamos a tempo para mudar?

 

Sim, lutando contra as finanças desreguladas, um monstro que vive porque desregulamos os mercados financeiros.

 

E estamos a tempo da transição?

 

É mais difícil porque as mudanças climáticas estão em andamento e não podemos evitar todas as consequências. Perdemos 80% dos insetos na Europa, 50% dos manguezais do mundo, 90% do plâncton no Atlântico equatorial. Não há como voltar atrás, mas podemos evitar o pior.

 

É preciso uma sociedade mais inteligente ou mais solidária para entender isso?

 

Ambas as coisas. É preciso uma sociedade inovadora e educada que acolha a transformação. Nos Estados Unidos não é possível falar em transição porque os estadunidenses têm uma abordagem doida em relação ao consumo de energia. Não é o caso na Europa - em particular da Itália, para mim é um consolo falar com vocês – e nem no Japão, onde, no entanto, a deflação é deletéria. A única região do mundo que pode iniciar a transição ecológica é a Europa.

 

Quanto custa a transição?

 

Publicamos este ano o relatório sobre o caminho para a descarbonização da França até 2050. O custo: 2% do PIB por ano para o Estado, não é grátis, mas não é muito. E 20 bilhões por ano para o setor privado. Estou trabalhando com 70 engenheiros para fazer o mesmo cálculo na zona euro.

 

Transição e decrescimento são coisas diferentes?

 

Depende do que entendemos por decrescimento. Se falamos de decrescimento universal, então as duas palavras não convergem porque precisamos de trabalho verde e decente para todos. Se, por outro lado, se trata de decrescimento dos bancos, dos lucros financeiros e das desigualdades, os conceitos concordam. A transição implica o crescimento do bem-estar, da saúde, da educação.

 

No livro você critica o PIB, por quê?

 

Sempre foi uma medida estúpida, mas hoje é pior porque é distorcida pelas finanças. E não diz nada sobre as desigualdades e o impacto ecológico. Em 2009, o relatório elaborado pelos Prêmios Nobel Amartya Sen e Joseph Stiglitz para o governo francês apontava uma centena de alternativas ao PIB: nada foi feito. Seria bom discutir sobre isso na Europa. Ursula von der Leyen em vez de dar lições poderia abrir o debate e escolher uma alternativa ao PIB.

 

Por que você defende o protecionismo?

 

Não todo. Apenas aquele social e ecológico. Se há duas fábricas, uma verde e outra não, é mais fácil para a "suja" produzir a preços baixos: é concorrência desleal. O imposto sobre o carbono na zona euro é protecionismo ecológico.

 

A transição só quer sacrifícios?

 

Não, não existe transição sem bem-estar. Sabemos que há 30% de bullshit jobs, como escreveu David Graeber, "empregos de merda". Quem os desempenha sabe que não valem nada e são inúteis para a sociedade e seria melhor não os fazer. Com a transição ecológica, por outro lado, se criam empregos que fazem sentido para o futuro da sociedade e do planeta, que geram bem-estar. Sem eles, a economia italiana não poderia sobreviver nos próximos 30 anos.

 

Quem são os inimigos da transição?

 

Os bancos: existem ativos ligados diretamente às energias fósseis no equilíbrio de orçamento das instituições bancárias. Escrevi isso no ano passado: quando olhamos para os onze maiores bancos da zona euro, temos que contar cerca de 30 bilhões de ativos fósseis que representam 95% dos fundos de private equity. Isso significa que se dissermos amanhã que carvão, petróleo e gás são stranded asset, "bens encalhados", os bancos entram em falência. É por isso que a transição é tão malvista.

 

Solução?

 

Se o Banco Central Europeu diz: organizemos um bad bank em cada país que compre os ativos fósseis e enfrente o custo da falência como fizemos em 2009 com as hipotecas subprime, esse banco, ao comprar ativos que não valem nada, perde tudo, mas desta forma o custo da operação pesa sobre o déficit público e no final o contribuinte paga pelos erros dos bancos como aconteceu com o Monte dei Paschi. A alternativa então é pedir ao Banco Central que desempenhe o papel de bad bank, que compre os ativos fósseis com perda, com a diferença de que o Banco pode se recapitalizar porque não lhe custa nada. Quando expus essa teoria me chamaram de louco, até que o Banco de Compensações Internacionais de Basileia disse que de fato, sim, o Banco Central pode perder tudo e se recapitalizar... Nesse ponto os colegas me deram meia razão: é possível tecnicamente, mas não politicamente.

 

E por quê?

 

Dizem que isso prejudicaria a credibilidade do euro. E eu: mas o euro está abaixo do dólar de qualquer maneira. E eles: mas poderia fazer disparar a inflação. E eu: já é assim. Dito isso, a melhor proteção contra a inflação é a transição ecológica e para fazê-la precisamos do sistema bancário.

 

Como? Você está agora defendendo os bancos?

 

Não sou marxista, precisamos dos bancos. Mas bancos verdes sem green washing, sem operações de salvação dos ativos fósseis que são um câncer.

 

Por onde começar?

 

Um caminho é o de uma sociedade descentralizada com produção descentralizada de energia renovável e uma democracia descentralizada: se eu posso produzir minha própria energia e compartilhar bens comuns, então também deveria ter a possibilidade de contribuir no debate político. A alternativa é o oposto: uma sociedade centralizada com um estado dirigista aliado ao setor privado. É o caminho chinês, mas é também o de Macron...

 

O que Jesus tem a ver com a transição ecológica? E por que insiste nos bens comuns?

 

Está escrito nos Atos dos Apóstolos: na primeira comunidade cristã todos os bens eram partilhados. Mesmo no direito romano a res communis conta mais do que a propriedade privada, o mesmo vale para São Tomás de Aquino. O primeiro que definiu a propriedade privada ius naturale é o anglicano John Locke. Filósofo, não teólogo... Também a partir dessa premissa penso que os cristãos terão que favorecer o caminho da transição organizando os bens comuns, negociando a democracia descentralizada: para isso precisamos de energia espiritual. E os cristãos podem oferecer esse patrimônio, os budistas também, como os ateus, na Europa há um humanismo leigo muito profundo, e podemos trabalhar juntos para organizar os bens comuns da Europa do amanhã.

 

O Islã também?

 

É claro que existe uma tradição sufi de que a jihad não é a guerra santa contra os inimigos, mas contra os impulsos violentos do homem.

 

A Igreja não é uma ONG nem um partido. Você mesmo escreve isso...

 

Mas pode contribuir para a transformação das democracias porque não é possível ser cristão sem entrar no debate político. Todos sabemos que Cristo foi morto por seu papel político.

 

Você está cansado de ser chamado de louco? No livro você menciona o ignorado Professor Mindy de "Não olhe para cima".

 

Quando vi o filme pensei: sou eu!

 

 

Também fala de revolução espiritual.

 

Sim, de uma mudança da civilidade rumo uma nova antropologia relacional. A razão mais profunda da crise ecológica é uma falsa antropologia, na qual o homem está isolado da natureza e da alteridade. Devemos mudar de perspectiva para entrar em uma dimensão relacional, como fala o Papa Francisco na Laudato sì' e Fratelli tutti. O único chefe de Estado que o fez em nível mundial.

 

 

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