18 Agosto 2022
"Argumentos falaciosos têm sido usados para expandir a pecuária no Pantanal, como as declarações do presidente Jair Bolsonaro de que o gado ajuda a evitar incêndios. Tais alegações não têm base científica, em contraste com os danos bem documentados causados pelo gado. A presença de gado em áreas protegidas mata árvores, fragmenta habitats e causa erosão que resulta em assoreamento de corpos d’água", escrevem Lucas Ferrante, doutor em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e Philip M. Fearnside, doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA), pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM) e membro da Academia Brasileira de Ciências, em artigo publicado por Amazônia Real, 16-08-2022.
Publicamos uma carta na prestigiada revista Science [1] em 12 de agosto de 2022, disponível aqui, sobre uma nova lei aprovada pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso, com graves implicações para o Pantanal. Segue uma tradução do conteúdo:
A região do Pantanal do Brasil é Patrimônio Mundial designado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e é conhecido pela sua espetacular vida selvagem [2]. Esta vasta área úmida enfrenta ameaças que vão desde recordes de focos de incêndios [3] a planos hidroviários que dragariam o seu rio principal e reduziriam os níveis de água no ecossistema [2]. A pecuária é uma ameaça cada vez maior para o Pantanal [4, 5], e um novo projeto de lei acaba de ser aprovado pelo estado de Mato Grasso que abrirá as porções protegidas de fazendas dentro do Pantanal para uso pecuário. Se as políticas deste projeto forem implementadas, as mudanças serão devastadoras para a biodiversidade e os ecossistemas do Pantanal.
Em 29 de junho, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 561/2022 [6], que permitiria o gado nas “áreas de preservação permanente” (APPs) e “reservas legais” (RLs) exigidas pelo código florestal (Lei 12.727/2012), bem como em todas as demais áreas do Pantanal destinadas à conservação permanente. Anteriormente, o gado só era permitido em pastagens sazonalmente inundadas nesta parte do Mato Grosso [7]. A abertura de terras protegidas para o gado é incompatível com os objetivos do status de proteção. A pecuária é extremamente prejudicial às terras protegidas, com capacidade de alterar a composição e riqueza de espécies [8].
Argumentos falaciosos têm sido usados para expandir a pecuária no Pantanal, como as declarações do presidente Jair Bolsonaro de que o gado ajuda a evitar incêndios. Tais alegações não têm base científica, em contraste com os danos bem documentados causados pelo gado. A presença de gado em áreas protegidas mata árvores, fragmenta habitats e causa erosão que resulta em assoreamento de corpos d’água [8]. A degradação da vegetação nessas áreas as torna mais suscetíveis a incêndios [9]. Esses incêndios devem aumentar ainda mais com o aquecimento global e podem levar o Pantanal além de seu limite para tolerar a degradação, resultando no colapso dos serviços ecossistêmicos desta importante região [3].
O Pantanal também abriga povos indígenas que seriam afetados pela lei recém-aprovada [7]. Essas pessoas têm direito à consulta livre, prévia e informada sobre atividades que possam impactar seu território e modo de vida, conforme estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Embora o Brasil tenha assinado e ratificado essa convenção, as violações são frequentes [10].
Esta lei sacrifica o povo e os ecossistemas do Brasil em nome dos lucros. O país possui áreas ociosas com capacidade para expandir sua produção pecuária sem utilizar outras áreas protegidas com vegetação nativa [11]. Além disso, a expansão da pecuária permitida por essa lei aumentaria as exportações em vez da carne disponível para consumo interno [12].
Foi protocolada uma reclamação no Ministério Público Federal recomendando a suspensão imediata do PL nº 561/2022 [13]. Os tribunais brasileiros devem basear sua decisão em informações técnicas e científicas e suspender imediatamente esta nova lei. Além disso, os países que importam commodities do Brasil precisam avaliar os impactos desse projeto de lei e rever suas importações de carne bovina brasileira.
[1] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2022. Brazil’s Pantanal threatened by livestock. Science 377: 720-721.
[2] Coelho-Junior, M.G., L.M. Diele-Viegas, D.F. Calheiros, E.C. da Silva Neto, P.M. Fearnside & L. Ferrante. 2022. Pantanal port license would threaten the world’s largest tropical wetland. Nature Ecology and Evolution 6: 484–485.
[3] Ribeiro, A.F.S., P.M. Brando, L. Santos, L. Rattis, M. Hirschi, M. Hauser, S.I. Seneviratne & J. Zscheischler. 2022. A compound event-oriented framework to tropical fire risk assessment in a changing climate. Environmental Research Letters 17: art. 065015.
[4] Dick, M., M.A. da Silva, R. Rodrigues, F. da Silva, O.G.L. Ferreira, M.S. Maia, S.F. de Lima, V.B. de Paiva Neto & H. Dewes. 2021. Environmental impacts of Brazilian beef cattle production in the Amazon, Cerrado, Pampa, and Pantanal biomes. Journal of Cleaner Production 311(6): art. 127750.
[5] Guerra, A., F.O. Roque, L.C. Garcia. J.M. Ochoa-Quintero. P.T.S. de Oliveira. R.D. Guariento & I.M.D. Rosa. 2020. Drivers and projections of vegetation loss in the Pantanal and surrounding ecosystems. Land Use Policy 91: art. 104388.
[6] Garcia, F. 2022. Deputados aprovam projeto que altera política de proteção da bacia pantaneira. Diário de Caceres, 30 de junho de 2022.
[7] Esquer, M. 2022. Deputados aprovam projeto que libera uso de áreas protegidas no Pantanal mato-grossense. OEco, 12 de julho de 2022.
[8] Ferrante, L., F.B. Baccaro, E.B. Ferreira, M.F.O. Sampaio, T. Santos, R.C. Justino & A. Ângulo. 2017. The matrix effect: How agricultural matrices shape forest fragment structure and amphibian composition. Journal of Biogeography 44: 1911-1922.
[9] Ferrante, L. 2020. Passando a boiada no Pantanal, o boi não é “bombeiro” é ameaça ao bioma. OEco, 14 de outubro de 2020. Disponível aqui.
[10] Terra de Direitos 2021. The Brazilian Government systematically violates Convention 169, as denounced by organizations to the ILO. Terra de Direitos, 16 de julho de 2021.
[11] Strassburg, B.B.N., A.E. Latawiec, L.G. Barioni, C.A. Nobre, V.P. da Silva, J.F. Valentim, M. Vianna & E.D. Assad. 2014. When enough should be enough: Improving the use of current agricultural lands could meet production demands and spare natural habitats in Brazil. Global Environmental Change 28: 84-97.
[12] Hecht, S., M. Schmink, R. Abers, E. Assad, D.H. Bebbington, E. Brondizio, F. Costa, A.M.D. Calisto, P.M. Fearnside, R. Garrett, S. Heilpern D. McGrath, G. Oliveira, H.S. Pereira G. Oliveira & M. Pinedo-Vazquez. 2021, Amazonia in Motion: Changing politics, development strategies, peoples, landscapes and livelihoods. Chapter 14 In: C. Nobre, A. Encalada et al. (eds.) Amazon Assessment Report 2021. Science Panel for the Amazon (SPA). United Nations Sustainable Development Solutions Network, New York, E.U.A.
[13] Esquer, M. 2022. Cientista denuncia projeto que flexibiliza Lei do Pantanal. OEco, 20 de julho de 2022.
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Pantanal brasileiro ameaçado pela pecuária - Instituto Humanitas Unisinos - IHU