09 Agosto 2022
Ticiano quis a luz da aurora tão clara e pura quanto a do primeiro dia do mundo: para dizer que o Cristo ressuscitado fazia novas todas as coisas, em uma primavera da vida destinada a nunca acabar.
O comentário é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 05-08-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os pés, sobretudo: imersos na cor pastosa como os de um banhista na água transparente do mar quente do verão. Os pés, com as solas na sombra, mas exibidos como perfeitas peças de anatomia. Essa ressurreição é do corpo, nenhuma dúvida é possível.
Ticiano, “Ressurreição de Cristo”, óleo sobre tela, 1542-44, Galleria Nazionale delle Marche, Urbino, Itália
Foto: Wikimedia Commons
Mesmo que, ao vê-lo de longe, o Cristo pareça uma estátua de madeira colorida de procissão (e esse linho pintado no fundo não seria talvez um estandarte de procissão?): com a bandeira que o vento desdobra de um lado e a tanga-lençol que vai embora, de outro, com soberano desprezo pela credibilidade naturalista.
Ticiano quis a luz da aurora tão clara e pura quanto a do primeiro dia do mundo: para dizer que o Cristo ressuscitado fazia novas todas as coisas, em uma primavera da vida destinada a nunca acabar. E é precisamente isso, se poderia dizer, que aterroriza a todos nós: representados perfeitamente pelos soldados romanos que formam a base densa e escura de onde brota esse fogo de artifício de vida e cor. Quem dorme, quem se cobre os olhos, quem empunha a lança: ai de quem se abandona à vida, à pele, às sensações. Poderíamos até correr o risco de viver, de renascer: de ressuscitar.
Parece que só uma vez essa bandeira de vida saiu em procissão, pelas ruas de Urbino. Imaginemos esse Cristo que voa – quase mais uma ascensão do que uma ressurreição – enquanto balança, avançando lentamente, com aqueles pés nus muito sensuais sobre a cabeça das mulheres e dos homens.
Vamos imaginá-lo contra o céu de verdade, com o seu céu mais verdadeiro. Imaginemos o sol batendo sobre nós, refletido por aquele elmo, colocado no centro, como um espelho. Devia passar como uma visão, um milagre, um sopro vital: até porque as pessoas o viam como um “verso” depois de terem admirado o “recto”, ou seja, a sua outra metade (depois dividida) também pintada por Ticiano, com a Última Ceia.
(Foto: Reprodução | Aleteia)
No fundo, sempre se falava do Corpus Domini: aquele, presente realmente no pão consagrado; este, triunfante em uma carne deslumbrante, ressuscitada e mais leve do que o ar.
De Velázquez a Manet, sentiu-se isto animalisticamente: Ticiano é a própria pintura, não se pode ir além senão refazendo-a, de mil maneiras diferentes que, no fim, são a mesma coisa. Ou seja, pondo em conexão o nosso corpo com o corpo das coisas, por meio do corpo da pintura: um feitiço, uma fórmula mágica, um jogo de espelhos. Mas tangível, sensual, crível: vivo mais do que o vivo.
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O Cristo de Ticiano é mais vivo do que o vivo. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU