Disrupção política: a destruição e construção de mundos a partir da guerra contra os insetos. A conferência de Juliana Fausto

Na última conferência do Ciclo de Estudos Decálogo sobre o Fim do Mundo, a professora apresenta sua tese acerca da cosmopolítica dos animais e atualiza sua reflexão sobre bichos que se envenenam para sobreviver num mundo intoxicado

Foto: PxHere

Por: Edição: João Vitor Santos | 09 Agosto 2022

 

Bicho faz política? Segundo a professora Juliana Fausto, bicho faz, sim. E não só eles, mas também plantas e todas as formas de vida. “Embora a política tenha sido exclusiva daqueles propriamente humanos, ela está no mundo. Há muito mais agentes envolvidos, embora eles estejam excluídos desse pensamento majoritário ou dessas definições”, pontua, na sua conferência “Cosmopolítica dos animais: por uma concepção política para além do humano”, realizada no dia 27 de julho. A atividade marcou o encerramento do Ciclo de Estudos Decálogo sobre o Fim do Mundo, realizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em parceria com a Unidade Acadêmica de Pós-Graduação da Unisinos.



Em sua tese, recuperada na conferência, Juliana defende que “a política diz respeito a muito mais agentes, muito mais seres do que se costuma afirmar”. Seu objetivo é “retrabalhar a noção de política, pensando que existem outros humanos e outros seres, prestando atenção aos animais na construção dessas políticas”. Para tanto, sai da ideia deleuziana de devir animal, que é quando algo passa do animal ao humano e/ou do humano ao animal, para a perspectiva da filósofa Vinciane Despret. “O ‘devir com animais’, no conceito da Despret, que é desenvolvido pela Donna Haraway, é a ideia de que você não ‘devém’ de um animal, ou seja, não gera algo a partir dele, mas sim ‘com’ o animal”, explica.



E a professora não para de pensar e alargar tal perspectiva. Isso é o que tem feito ela, atualmente, olhar para os insetos. Ou melhor, como os insetos sobrevivem em mundo destruído pelos humanos que seguem acreditando na cantilena da produção de alimentos através de transgênicos. A história é velha, mas não custa lembrar: sob o argumento de que precisa de comida, se planta com transgênicos e ainda se brada que com isso se usará menos veneno para matar as pragas. Só que o que acontece é exatamente o contrário. Por isso, Juliana olha para a cosmopolítica dessas ditas pragas que se tornam cada vez mais fortes e resistentes, vivendo em verdadeiros desertos de monoculturas. “A primavera silenciosa é conhecida por qualquer um que já foi a um campo de soja. Num campo de soja só se ouve vento; não tem mais nada num latifúndio de soja”, ilustra.

 

Esse cenário monocromático de morte produzido pelo ser humano nas lavouras de soja não tem sido páreo para dois bichinhos que insistem em sobreviver e têm despertado o interesse de Juliana: a Broca das Axilas e a Falsa-Medideira. Esses insetos, apesar de todos os agrotóxicos incorporados nos genes das plantas de soja e, também, de todo o veneno ainda despejado em cima da lavoura, estão lá. “São animais que conseguem criar um corpo de veneno e viver no meio deste. Será que um dia a gente vai se tornar resistente? Esses animais conseguem, e quem são eles dentro da cultura da soja? Certamente são terroristas, ou, possivelmente, são terroristas dessa cultura da soja”, reflete.



A seguir, apresentamos a transcrição da conferência de Juliana com todas as suas provocações acerca dessa destruição e construção de mundos. “Se a política é um modo das criaturas entrelaçadamente criarem mundos, o agronegócio e a monocultura são a disrupção disso. É a declaração de guerra contra uma espécie e a insistência nessa guerra mesmo quando quem está morrendo são seres que supostamente estariam do seu lado. É a insistência dessa guerra para a produção de comida envenenada, para o assassinato de diversos outros animais e para a contaminação de solo e água”, pontua.

 

Juliana Fausto

Foto: Reprodução | Youtube - IHU

 

Juliana Fausto possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC–Rio e doutorado em Filosofia também pela PUC-Rio. Atualmente é pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná, com bolsa PNPD/CAPES, onde atua como professora visitante, ministrando disciplinas nos níveis de Graduação e Pós-Graduação em Filosofia. Desenvolve pesquisa na área de Filosofia e Questão Ambiental, com ênfase na relação dos animais outros que humanos com a política, e na área de estudos feministas, com ênfase em epistemologias feministas e nos conceitos de mulheres, natureza e monstruosidade.

 

É autora do livro “Cosmopolítica dos animais” (São Paulo: Editora N-1, 2020).

 

Confira a transcrição da íntegra da conferência.

 

O livro “Cosmopolítica dos animais” é uma edição modificada de minha tese de doutorado defendida em 2017 e que tem um objetivo simples, pelo menos dizendo assim. O objetivo é argumentar e defender que a política não é só humana, embora na história da Filosofia e da Teoria Política a política tenha se focado exclusivamente nos humanos, por exclusão deliberada não só dos animais, mas de tudo que se chama natureza. E, além da natureza, também, quase toda parte do tempo, por exclusão de quem não é considerado cidadão ou humano – e isso vai variar, podem ser mulheres, podem ser escravos, pessoas de outros povos.

 

Livro de Juliana é uma versão de sua tese defendida em 2017 

Imagem: divulgação

 

Assim, embora a política tenha sido exclusiva daqueles propriamente humanos, a ideia era argumentar que ela está no mundo. Há muito mais agentes envolvidos, embora eles estejam excluídos desse pensamento majoritário ou dessas definições. A ideia era demonstrar que a política diz respeito a muito mais agentes, muito mais seres do que se costuma afirmar.

 

 

Será só o homem um animal político?

 

Começo o livro com a clássica sentença de Aristóteles: “o homem é, por natureza, um animal político”. Para o próprio Aristóteles, quem vai exercer essa política não são nem todos os humanos, muito menos um outro que não humano. A partir do que chamei de situações conceituais, me baseando em epistemologias feministas e sobretudo num artigo da Donna Haraway, conhecido no Brasil como “Saberes localizados” [abaixo], passo a pensar não a política em geral, mas em situações conceituais em que essa política aparece.

 

 

Embora faça parte do que chamamos de animal studies, não é uma reflexão de ética ou direitos dos animais. O que não significa que não tenha essas coisas em vista e não pense a respeito delas. Mas essa não é uma reflexão desse tipo porque muitas vezes, quando se diz política animal, está se pensando nos modos pelos quais essas questões éticas podem fazer parte do ordenamento jurídico. Por exemplo, questões importantes como qual é o estatuto dos animais no Código Civil ou de bem-estar animal. São questões importantes, mas não são o foco desse estudo. O foco é tentar pensar uma questão alargada de política. Ou seja, retrabalhar a sua noção, pensando que existem outros humanos e outros seres, prestando atenção aos animais na construção dessas políticas.

 

Para fazer isso, dividi o texto do livro em alguns capítulos, que são o que chamei de situações conceituais. Eles se chamam Errantes, Confinados, Experimentais, Desaparecidos e Outsider.

 

 

Errantes

 

Em Errantes, partia da situação dos animais citadinos que vivem em situação de errância. Parti, na verdade, de minha situação absolutamente pessoal e de minha experiência com gatos que acabaram aparecendo em minha vida e com os quais mantenho uma relação até hoje. Atualmente, vivem comigo, mas viviam na rua. Assim, começava a pensar na possibilidade de eles serem refugiados políticos, porque a cidade é hostil à presença desses animais.

 

Essa, aliás, era uma hipótese: será que são refugiados políticos ou não? Para sustentar ou não essa hipótese, tratava de parte da constituição da cidade moderna, sobretudo Rio de Janeiro e Curitiba. Isso porque Rio de Janeiro é a cidade onde nasci e Curitiba é a cidade onde vivo hoje. Pensava nessa constituição da cidade moderna e em como os animais são expulsos dela e quais são as políticas animais que estão envolvidas na questão.

 

Confinados

 

O segundo capítulo se chama Confinados. E nesse ponto penso nos animais que estão em situação de confinamento, principalmente animais de zoológico. Todos esses capítulos dialogam com a História da Filosofia, e no capítulo Confinados, inspirada pelo Brian Massumi, buscava um contraponto ao que Giorgio Agamben fala a respeito da política e da questão da exclusão e inclusão dentro dela. Assim, deslocava o paradigma da política moderna do campo de concentração para o zoológico, mostrando como todas essas situações que se dão no campo de concentração, na colonização, diziam respeito a uma indiferenciação entre animais outros que humanos e humanos considerados não humanos, humanos a quem se retira sua humanidade.

 

Brian Massumi é filósofo e cientista social canadense, professor no departamento de Comunicação da Université de Montréal

Foto: Wikipedia

 

Experimentais

 

Em Experimentais, que é o terceiro capítulo, pensava a partir da experimentação com animais em duas dimensões diferentes. A experimentação animal que se dá na ciência e na arte. Na ciência, pensava também a partir de uma diferença, com ajuda da filósofa Vinciane Despret, em como existem práticas científicas nas quais os animais são meramente objeto e outras que os convidam a participar dessas produções de conhecimento. Tratei desde práticas de experimentação biomédicas, que são absolutamente cruéis, até casos de psicologia comportamental ou de ciência de bem-estar animal nas quais há uma abertura a eles. E eles, por sua vez, são sujeitos e coautores dessas pesquisas.

Vinciane Despret, filósofa belga que trabalha com Filosofia da Ciência na Universidade de Liège 

Foto: CCCB/ Liège

 

Na questão arte, pensei em como alguns autores da literatura tratavam os animais e o que podemos pensar a partir daí. Obviamente passava por Deleuze e Guattari, por Kafka, por Ursula K. Le Guin, e refletia como esses animais entram pela literatura e o que significam essas suas entradas. Justamente quando os animais entram na política e os pensamos dentro desse espaço, temos uma outra ideia de política quando temos essa relação. Eu pensava até numa cosmoliteratura, também inspirada por Le Guin e por Gary Snyder; pensava numa literatura produzida pelos animais.

 

 

Desaparecidos

 

O capítulo Desaparecidos é muito duro, pois é um capítulo sobre extinção, sobre a sexta grande extinção, os seus modos acelerados e sobre como os modos favorecidos pela política humana incitam ou provocam essas extinções. E, também, como os animais e seus aliados resistem ou podem resistir. Inclusive, terminava concluindo que a extinção é o fim da política.

 

Outsider

 

Tem ainda esse epílogo que se chama Outsider, que é inspirado em Virginia Woolf, para pensar possibilidades de saídas. Embora em todos os capítulos eu tente sempre pensar saídas animais ou políticas animais, nesse último capítulo tento levar isso ao limite. Portanto, nesse livro, em cada capítulo, tentava terminar com inspiração numa autora que aparece bastante no meu livro, a bióloga Lynn Margulis, que com Dorion Sagan, seu filho, usava muito esse recurso na obra “O que é vida?”.

 

Obra de Lynn Margulis e seu filho Dorion Sagan, “O que é vida?” (Zahar, 2002) 

Foto: divulgação

 

Esse recurso consiste em, no final de cada capítulo, tentar dar uma resposta. No caso deles, era responder “o que é vida?”. Assim, dão uma resposta provisória a partir do que foi discutido até ali. E provisória no sentido de não terminada e não no sentido de quem em cada capítulo vai desmentindo essas respostas. As respostas vão sendo, na verdade, uma acumulação de ideias a respeito do que é a vida.

 

No meu caso, no final de cada capítulo, buscava dar uma pequena definição a partir do que havia sido dito naquele capítulo a respeito do que seria a política animal. Por exemplo, no final do primeiro capítulo, dizia:

 

“então, o que é política? É um modo de interação no que qual resulta não apenas sujeitos, mas espaços coabitados. É abrir-se as intrusões do fora, é sair das dualidades que articulam seus termos por denegação e hierarquização, é coconstituir mundos conjuntamente por entrelaçamento situados, é dar voz a quem historicamente não a teve e examinar os próprios olhos, é cosmopolítica, é um tipo de feitiçaria cósmica que ao transformar locais de habitação visa transformar modos de habitar, é arriscar-se em arranjos provisórios, é compreender que tudo isso pode ainda falar e começar de novo”.

 

Tudo isso tem relação com o que havia sido discutido conceitualmente no capítulo. E é importante pois destaca que, quando falo essas coisas aqui, estou considerando que os seres humanos são animais como quaisquer outros. Ainda no final desse segundo capítulo, eu seguia:

 

“Então, o que é política? É uma multiplicidade irredutível de modos de coabitar e coconstituir o mundo diferente e assimetricamente. É compreender que só existem políticas cósmicas, ainda que em negação. Isto é, que toda a política diz respeito a mais do que um grupo, mais que um povo ou espécie. Mesmo que se denegue nela a participação ativa ou passiva desses outros. É a saída do instinto, é um jogo, uma brincadeira não inocente que diz respeito à diferença entre fair play e bullying, é habitar o perigo em que essa brincadeira se torne combate, é evitar tomar por objetos, brinquedos seres que poderiam agir como sujeitos jogadores. É um modo mutante de criação e uso de mundos no sentido de mapa e território que depende sempre de mais de um para que se entre nua zona de indiscernibilidade que gesta consequência concreta para todos os envolvidos.”

 

Significa que a política é esse modo pelo qual diferentes seres, e não simplesmente diferentes espécies, possuem seus modos de coabitar e coconstituir o mundo diferente e assimetricamente. Não é que o mundo já esteja dado e a política seja algo que surja nele, mas ela é, segundo essa hipótese, a ideia de que os mundos são coconstituídos não só interespécies, mas também entre povos e disso resulta o que experimentamos como mundo. É partir de uma ideia pragmatista de que o mundo não está terminado, pronto de uma vez, mas que está sempre em processo de feitura e que a política participa disso na medida em que esses diferentes seres vivem de modos entrelaçados, e entrelaçados de várias formas.

 

 

Política cósmica

 

E, também, essa ideia de que toda política é uma política cósmica, mesmo que esteja em negação. Quero dizer que toda essa teoria política, História da Filosofia que trata e pensa a política como sendo exercida apenas no nível institucional – pois quando se chega no nível institucional só se tem certos humanos, aqueles que podem participar dessa institucionalidade – diz respeito a outros povos humanos e não humanos, ainda que se coloque em negação em relação a isso. Ou seja, é a ideia de que o problema não é exatamente exclusão dos outros da política, mas sua imediata captura. E essa captura pode ser tanto como escravos ou como animais, pois os animais são sempre como menos que humanos.

 

Tenho uma inspiração de Isabelle Stengers e sua cosmopolítica nessa ideia de que a arena política é povoada por muito mais do que a gente pode até imaginar. Ela diz que a arena política é povoada também por aquele que não tem voz, não quer ter voz ou não pode, e as decisões políticas, isso no nível institucional, devem ser tomadas diante desses outros.

 

Olhemos para as perspectivas experimentais, quando abordava a relação de ciência e arte. Termino esse capítulo dizendo que: “...então, a política é a arte de criar saídas”. Isso é justamente criar saídas para essa prisão do que a gente tem chamado de política humana, mas é a arte de criar saídas em diversos tipos de situação. “É devir animais e com animais.” O devir animal é o conceito deleuziano em que se estabelece uma zona de indiscernibilidade entre o humano e o animal, em que algo de um passa a outro. O devir com animais no conceito da Despret, que é desenvolvido pela Donna Haraway, que é a ideia de que você não “devém” de um animal, ou seja, não gera algo a partir dele, mas sim “com” o animal.

 

Ou seja, tornamo-nos outros com outros. O encontro proporciona essa transformação mútua. E é justamente o resultado desta que leva as essas criações de mundo. “É fabular de e diante de povos menores”. Isso também é um conceito deleuziano, tem essa ideia da fabulação, da imaginação simpática, que é de algo de um uso que o Massumi faz no sentido de uma ação de se aproximar de outro.



Encontro de espécies e mortes



“É não aspirar a inocência, mas pensar em agir responsavelmente.” Não aspirar a inocência porque pensava em certas correntes de pensamento acerca dos animais que creem que é possível que a gente aceda a uma inocência. É, por exemplo, na medida em que seria possível, viver sem matar. Nesse capítulo, eu falo que não é possível viver sem matar, baseado em algo que a Donna Haraway diz num livro que se chama “Quando as espécies se encontram” (Ubu Editora, 2022), e busca levar a sério a ideia de que não existe um modo de viver que não seja um modo de algum outro morrer.



Edição em português de “Quando as espécies se encontram” está em pré-venda e chega às livrarias no final de agosto

Imagem: divulgação

 

É claro que podemos ter um modo absolutamente destrutivo, e isso não significa que vale tudo, não é uma defesa da destruição total, mas é uma defesa justamente da responsabilidade de sabermos quando estamos matando, que não se trata de um sacrifício ou abate ou mesmo manejo. São assassinatos. Por isso não existe inocência.



Nesse meu livro, “A cosmopolítica dos animais”, não penso só nas políticas entre humanos e animais. Penso também as políticas animais, e muitas vezes, nos discursos de ética, encontramos quem defende que estes devem fazer parte de nossa comunidade de ética, mas os animais são colocados como pacientes e não como agentes. Isso porque se acredita que eles não podem agir eticamente. E não podem agir eticamente porque, por exemplo, se matam uns aos outros para comer. Eu acho isso balela, porque não existe um modo de viver que não seja um modo de algum outro morrer.



Para mim, a questão é como no nosso mundo nós objetificamos, normalizamos e tornamos insensíveis essas mortes. Nós até as escondemos e não as tratamos como mortes. Usamos uma série de eufemismos para dizer que não é uma morte. O que é pensar que a vida supõe a morte? A vida supõe a morte, mas na sua infinita metamorfose na medida em que morte também faz parte do processo de estar vivo. Não estou defendendo e sou absolutamente contra o sistema de produção industrial de animais. Não se trata disso, mas sim de tomar cuidado para que quando a gente vá criticar esses sistemas de produção animal não acabe também criticando populações tradicionais que se alimentam de caça ou os próprios animais que também são populações em que muitos se alimentam de caça. Tudo para não cairmos nesse moralismo.

 

 

Parentesco e afinidade



O que é pensar politicamente e não moralmente? “É interessar-se pelo mundo estando aberto e disponível, afetando e sendo afetado pelo outros, é inventar famílias e comunidades monstruosas, é se sujar em admiração.” Inventar famílias e comunidades monstruosas é a ideia de que a gente pode pensar num parentesco e afinidade. É, também, uma ideia que Donna Haraway traz como um modo de agir responsavelmente no agir politicamente; é a gente pensar seriamente no nosso parentesco com outras formas de vida. E esse parentesco pode ser lateral, pode ser uma afinidade, entre outras. E terminava justamente falando sobre a extinção.



“Então, o que é a política? É o desejo da vida, em suas aventuras e experiências de diferença, mistura, morte, descontinuidade, continuidade. É contar, herdar, abandonar histórias que articulam passados, presentes e futuros novos. É um espaço cheio de sangue e fantasma. É aliança e fluência entre escombros”.

 

Pensava, inclusive, num termo de Anna Tsing, a ideia de mundo danificado. Continuar a se aliançar e continuar a produzir essa fluência entre escombros.

 

 

Assim, pensamos que política “é a invenção e sustentação do mundo por seus seres”. “Não é a barragem de fluxos, não é a uniformização do planeta, não, definitivamente, a provocação do desaparecimento em massa de outros povos e espécies. A extinção é seu aniquilamento.” Pensava a extinção nos termos da antropóloga Deborah Bird Rose, que foi alguém que falou sobre a dupla morte. Como falava antes, a morte faz parte da vida e temos essa morte que faz parte da infinita metamorfose da vida e como esta se arranja e rearranja e junto vai formando o mundo, que é isso, uma série de relações que produzem novos seres, que produzem mundo.

 

 

Temos por outro lado esses processos de extinção que Deborah Bird Rose vai chamar de dupla morte, porque são a morte da morte. É a impossibilidade dessa morte que diz respeito a vida. Você arranca a vida da morte e se tem nesse lugar um vazio. Não é mais essa morte que diz respeito a vida, mas essa morte que é, digamos, para sempre, uma morte que não devolve nada para a vida. Essas extinções provocadas são mortes que não devolvem nada para a vida.

 

Deborah Bird Rose (1946-2018) foi uma etnógrafa australiana. Sua pesquisa se concentrou na justiça social e ecológica entrelaçada, com base em trabalho de campo de longo prazo com aborígenes na Austrália 

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Lembrava, inclusive, que, na Austrália, essas populações compreendem que toda a guerra que é feita contra os cães nativos é feita contra os próprios povos. São os dingos, e eles têm uma relação ancestral com diversos povos aborígines. Bird Rose falava a respeito de alguns amigos dela que tiveram seus cães assassinados pela polícia. Isso é um modo de terror e percebemos que o terror contra os animais também é o terror contra populações nativas na medida em que todos, tanto animais quanto humanos, que não são os humanos do capitalismo tardio, se configuram sob o mesmo ataque.

 

 

Começava a pensar, a partir dessa lógica de parentescos, na ideia de comunidades animais que incluem animais e humanos. Então, dizia: “enquanto enterravam seus cães assassinados pelo Estado, os aborígenes com quem Rose conversou olhavam para o vazio que costumava ser ocupado pelos cães. E esse vazio não era uma partida do que costumava ser retorcido e levado de volta em direção a vida, mas antes uma viagem sem volta em direção ao nada”. Assim, então, não é mais essa morte que devolve para a vida, mas uma viagem sem volta. “E esse vazio carregava uma outra mensagem, poderia haver outro vazio que costumava ser gente e enquanto as pessoas choravam por seus cães talvez não sobrasse ninguém para chorar por elas.” Talvez não sobrasse ninguém porque já tivessem todos sido dizimados.



Política está e é do mundo



E concluo esse livro, “A cosmopolítica dos animais”, com uma tentativa de sumarização disso tudo que diz que:

 

“a política está no mundo, ela é do mundo e não se ergue a partir dele por um poder mágico. Ela é o conjunto do modo de habitar e fazer mundos, de mantê-los de pé, é um devir com outras criaturas. E não se faz isso só, individualmente. Uma comunidade, uma cidade são resultado de múltiplas relações travadas por diferentes entes, orgânicos e inorgânicos. Uma das lições que o antropoceno ensina é aquela a respeito das consequências catastróficas de se considerar esses outros entes como meros recursos. Política é, portanto, geopolítica, no sentido de política da terra. Teriopolítica, fitopolítica, em uma palavra, é cosmopolítica. A máxima de Aristóteles, portanto, deveria ser reescrita. ‘O homem, por natureza um animal, é político’”.

 

Assim, encerro o livro falando sobre modos de resistência animal, destacando projetos com humanos em instituições de ensino ou de conservação, mas também os modos como os próprios animais conseguem rearranjar seu mundo.



Porém, não tratei no livro, por exemplo, dos animais sinantrópicos, que são esses que vivem com os humanos sem terem sido convidados por eles. É o caso de baratas e ratos, por exemplo. Fazia várias menções sobre ratos, mas não pensava nessa condição de alguém que divide o espaço.



Os insetos e sua resistência na destruição e concepção de mundos



Trago agora uma nova pesquisa que estou realizando que se estende para além do que está no livro “A Cosmopolítica dos Animais” e que diz respeito aos insetos e à lavoura, que têm relação, sobretudo, ao uso de agrotóxicos. No livro, dizia numa certa altura, junto com Brian Massumi, que a política humana é antidevir, ela é antivida. Isso era baseado nos escritos do Gregory Bateson e da ideia de que essa separação entre humanidade e animalidade é tal que não permite o surgimento de paradoxos.



Gregory Bateson (1904 —1980) foi um antropólogo, cientista social, linguista e semiólogo inglês, cujo trabalho abarcou diversos campos do sabe

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Se temos esses seres absolutamente separados, só conseguimos dois tipos de relações, que é a soberania e uma certa indistinção. Essa indistinção se dá entre aqueles humanos que não podem fazer parte da política e os animais, e que vem no sentido de indiferença, indiferenciação e, por outro lado, a criação dessas categorias duras, como humanidade de um lado e animalidade de outro. Daí, decorria essa ideia de que a política humana é antidevir, porque ela não permite a criação dessas zonas de indissibilidade ou esses “devires com”, que é o modo pelo qual a vida acontece, que é tornar-se outro com o outro. Na medida em que a vida e a criação são uma só, seguindo com Massumi, como a política humana é antidevir, ela impede a criação evolutiva da vida ao manter essas categorias separadas.

 

 

Quero começar a falar dessa nova pesquisa lendo a abertura do livro de 1962 da Rachel Carson chamado “Primavera Silenciosa”. Ela diz:



“Uma fábula para amanhã. Houve outrora uma cidade no coração da América onde a vida toda parecia viver em harmonia com o ambiente circunstante. A cidade ficava em meio a uma espécie de tabuleiro de xadrez, composta de fazendas prósperas com campos de trigo e encostas de pomares nos quais na primavera nuvens brancas de flores oscilavam por cima das campinas verdejantes. No outono, os carvalhos, os gordons e os vidoeiros punham um fulgor de colorido que flamejava e trimbolava de través sobre um fundo de pinheirais. Depois, as raposas uivavam nas colinas e as renas cruzavam silenciosamente os campos meio ocultas pelas brumas das manhãs de outono. Ao longo das estradas, loureiros, viburgos e amieiros, grandes fetos e flores silvestres encantavam os olhos dos viajantes na maior parte do ano. Até mesmo no inverno, as margens das estradas eram locais de beleza para onde convergiam pássaros inúmeros a fim de se alimentar de amoras e semestres de ervas secas que apontavam em cima da neve. A zona rural gozava com efeito de fama pela abundância e variedade de suas aves. Quando as ondas de aves migradoras passavam por ali na primavera e outono, o povo para ali fluía procedendo de longas distâncias para as observar. Outras pessoas para ali se dirigiam a fim de pescar nos rios, cujas águas fluíam claras e frescas emergindo das colinas e formavam lagunas ensombradas onde as trutas se criavam. Assim as coisas tinham sido desde ocorrido de muitos anos, quando os primeiros colonizadores ergueram suas casas, perfuraram seus poços e construíram seus celeiros.



Depois, uma doença estranha das plantas se espalhou pela área toda e tudo começou a mudar. Algum mal olhado fora atirado naquela comunidade. Enfermidades misteriosas varreram os bandos de galinhas. As vacas e os carneiros adoeciam e morriam. Por toda a parte se via uma sombra de morte. Os lavradores passaram a falar de muitas doenças em pessoas de suas famílias. Na cidade, os médicos se sentiam cada vez mais intrigados por novas espécies de doenças que apareciam em seus pacientes. Registraram-se várias mortes súbitas e inexplicadas não somente entre os adultos, mas também entre as crianças. Adultos e crianças sentiam males repentinos enquanto caminhavam ou brincavam e morriam no cabo de poucas horas. Havia ali um estranho silêncio. Os pássaros, por exemplo, para onde é que haviam ido? Muita gente falava deles. Os postos de alimentações nos quintais estavam desertos, os poucos pássaros que de qualquer lado que vissem estavam moribundos, tremiam violentamente e não podiam voar. Àquela era uma primavera sem vozes. Pelas manhãs que outrora vibraram pelo canto dos patos roxos, dos remendos dos pombos, dos galhos das corruíras e dos vintenos de outras aves canouras não havia agora som algum, somente o silencio pairava sobre os campos, as matas e os pantanais.



Nas fazendas, as galinhas chocavam, mas nenhum pintinho nascia. Os lavradores queixavam-se por não conseguirem mais criar porco algum. As crias eram pequenas e os leitõezinhos sobreviviam apenas uns poucos dias. Mas macieiras atingiam a fase da florada, mas nenhuma abelha zumbia por entre suas flores, de modo que não ocorria a polinização e não poderia haver frutos. As margens das estradas, outrora tão atraentes, apresentavam-se agora por uma vegetação amarronada e murcha como se houvesse sido bafejada pelo fogo. Também aquelas margens estavam silenciosas, desertadas que haviam sido por todas as formas de vida. Até mesmo os rios se mostravam agora destituídos de vida. Os pescadores já não mais visitavam seus cursos d’água, por quanto todos os peixes tinham morrido.



Nas calhas, por entre os beirais e nas telhas dos telhados um pó branco, ainda granulado, formava umas poucas faixas. Algumas semanas antes, esse pó tinha caído como se fosse a neve por cima dos telhados, dos relvados, bem como por cima dos campos e dos rios. Nenhuma obra de feitiçaria, nenhuma ação de inimigo havia silenciado o renascer de uma nova vida naquele mundo golpeado pela morte. Fora o povo, ele próprio, que fizera aquilo.



Essa cidade não existe concretamente, mas ela poderá facilmente encontrar milhares de suas semelhantes pelos Estados Unidos e por outras partes do mundo. Não sei comunidade nenhuma que tenha sofrido todos os infortúnios que descrevo. Contudo, cada um dos tais desastres já aconteceu efetivamente em algum lugar. E muitas comunidades verdadeiras já sofreram de fato um número substancial dessas desgraças. O espectro sombrio se espalmou sobre nós, quase sem ser notado, e essa tragédia imaginada poderá facilmente se tornar dura realidade de que todos nós deveremos ter conhecimento, que foi que silenciou as vozes da primavera em diversas cidades dos Estados Unidos. Esse livro constitui uma tentativa de uma explicação.”

 

Silent Spring, obra de 1962 de Rachel Carson, foi traduzida e publicada no Brasil como “Primavera Silenciosa”.

Uma das edições mais atuais é da Editoria Gaia, de 2010

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A maioria das pessoas deve saber que esse é um livro contra o uso indiscriminado de agrotóxicos, sobretudo de DDT, e é considerado um livro fundamental no surgimento do movimento ambiental nos Estados Unidos e em outros lugares. É por aí que estou tentando pensar: é uma guerra contra a vida.



Uma guerra contra insetos



Estava lendo um livro que se chama The War on Bugs, de um norte-americano chamado Will Allen, que nasceu em 1936, no campo, e viveu a vida toda lá. A vida no campo nos Estados Unidos já era muito ligada aos agrotóxicos e aos venenos usados na lavoura. Entre as décadas de 1960 e 1970, ele faz um doutorado no Peru e descobre que lá as pessoas e muitas comunidades tradicionais praticavam outro tipo de agricultura que não usava esses venenos, um tipo de agricultura que tinha bicho, e essas comunidades conseguiam boas safras.



E ele se torna um proponente da agricultura orgânica depois que volta aos Estados Unidos, numa postura que é dele até hoje. E esse livro é muito interessante porque tenta mapear, e vai muito longe, essa ideia da destruição das pestes. Ou seja, como certa humanidade resolveu destruir as pestes e a que ponto foi essa destruição. Conta, por exemplo, que quando era criança, no final da II Guerra, apareceu no rancho que ele morava (eram pequenos agricultores e ele busca contar como a agricultura familiar foi colonizada a acreditar que só é possível plantar com veneno, agindo contra os insetos), um local muito cheio de moscas, um vendedor da loja de produtos agrícolas com uma lata de DDT. E o homem diz: “esse é um herói de guerra”. Quando estudamos a história do DDT, sabemos que, embora tenha sido sintetizado pela primeira vez em meados do século XIX, se descobre que ele é um inseticida e vai ter um papel importante na II Guerra matando mosquitos da malária e do tifo, despiolhando prisioneiros (existem fotos de soldados aliados jogando produtos na cabeça das pessoas que estavam sendo libertadas dos campos de prisioneiros).



Pois ao esse homem, conta o autor, simplesmente ao abrir o frasco de DDT, as moscas que estavam em volta começaram a cair mortas. Não precisou nem aspergir nada, elas começaram a cair. E o sujeito ainda disse: “e o melhor: isso não faz mal algum ao ser humano”. Então, Allen e a família ficaram fascinados. Ele, principalmente, porque, conta o autor, lembrou que era o fim de uma coisa tão insuportável que é ficar lidando com moscas. Assim, passam a usar DDT em casa, nas plantações, nos animais, nas próprias crianças. Ele conta que a própria mãe aspergia eles com DDT e não gostava porque ficava com a pele pegajosa.



No entanto, a partir de certo momento, esse DDT já não funciona mais para as moscas domésticas e aí vem o homem da loja novamente dizendo que se tem que juntar o DDT com outro veneno e que assim as moscas vão desaparecer. Esse livro é muito interessante porque ele é cheio de ilustrações, e são ilustrações que vêm de boletins rurais que vão mostrando como essa colonização do imaginário dos pequenos agricultores passou muito por esses boletins e seus editoriais que elogiavam essas substâncias.

Will Allen e seu livro The War on Bugs (Chelsea Green Publishing, 2007)

Foto: divulgação



O deserto dos campos de soja



No Brasil, a história é um pouco diferente. A primavera silenciosa é conhecida por qualquer um que já foi a um campo de soja. Num campo de soja só se ouve vento; não tem mais nada num latifúndio de soja. Se fala muito do aumento de agrotóxicos a partir da Revolução Verde, justamente o fim da II Guerra, com a entrada do DDT e tudo mais. Mas Will Allen vai mais atrás no tempo, mostrando como isso é mais pervasivo. No Brasil, o boom dos agrotóxicos, sua entrada efetiva nas lavouras acontece em 1965, com a criação do Sistema Nacional de Crédito Rural. E veja, 1965, segundo ano da ditadura militar.



Esse sistema vinculava a obtenção de crédito agrícola à obrigatoriedade da compra de insumos químicos pelos agricultores, os chamados pacotes. Ou seja, o crédito vem com o que na época se chamava de defensivo agrícola. Outro elemento chave foi a criação, em 1975, também durante a ditadura, do Programa Nacional de Defensivos Agrícolas no âmbito do segundo plano de desenvolvimento PND, que proporcionou recursos financeiros para a criação de empresas nacionais e a instalação no país de subsidiárias de empresas transnacionais de insumos agrícolas. Um outro fato ainda a colaborar de forma marcante para a disseminação do uso dos agrotóxicos no Brasil foi o marco regulatório defasado e pouco rigoroso que vigorou até 1989, que facilitou o registro de centenas de substâncias tóxicas, muitas das quais já proibidas nos países desenvolvidos.



Sabemos que hoje, ainda, muitos agrotóxicos que são proibidos nos países desenvolvidos são liberados no Brasil e sabemos que na atual gestão da presidência houve a liberação de uma quantidade massiva de agrotóxicos. E isso sem contar todas as isenções fiscais, tributárias e todos os subsídios ligados aos agrotóxicos.

 

 

Guerra contra os insetos é guerra contra o mundo



Por que estou falando disso? Quero pegar a questão dos insetos, dos inseticidas e como a guerra contra os insetos é uma guerra contra o mundo, contra o planeta. Observe que o uso maior de agrotóxicos se dá em países menos desenvolvidos, com impacto não somente sobre esses animais, mas também envenenando a água, o solo, os corpos de criaturas humanas e não humanas.



Sabemos dos perigos dos agrotóxicos e qualquer um que quiser estudar a esse respeito vai encontrar uma série de materiais na internet produzidos por entidades muito sérias. Há, ainda, por exemplo, dois filmes da FioCruz, dirigidos pelo Beto Novaes, que são muito interessantes. É o “Nuvem de Veneno”, de 2013, e “O Diagnóstico”, de 2019.

 

 

 



Fora uma quantidade de livros e publicações, como o livro “Desastres sócio-sanitário-ambientais do agronegócio e resistências agroecológicas no Brasil” (Expressão Popular, 2022), que foi organizado por Jorge Mesquita Huet Machado, Luís Henrique da Costa Leão, Marcia Leopoldina Montanari Corrêa, Marta Gislene Pignatti e Wanderlei Antonio Pignati.

 

Desastres sócio-ambientais do agronegócio e resistências agroecológicas no Brasil reúne uma série de artigos acerca dos usos de agrotóxicos

Foto: divulgação



A partir disso, trato de alguns insetos que são resistentes aos agrotóxicos e que levam ao fim certos tipos de monoculturas. Esses dias, estava lendo a respeito do Bicudo do Algodoeiro, que é um besouro que acabou com a monocultura do algodão no Nordeste. Há até um artigo interessante do Gabriel Holliver, na revista Ilha, que trata de como um inseto foi capaz de desfazer um mundo.

 

Quando penso em política, penso nisso, como um inseto é capaz de fazer e desfazer um mundo. E no caso desse inseto, ao destruir essa monocultura de algodão no Nordeste, abriu-se espaço para outro tipo de prática, uma transição para práticas agroecológicas que não são práticas de destruição do mundo. Pensando bem, não se trata de uma guerra contra um inseto. O Bicudo do Algodoeiro chegou no Nordeste e destruiu tudo em 1983. Hoje em dia, as monoculturas de algodão estão em outros lugares no Brasil, como Centro-Oeste, e ele ainda é uma praga muito poderosa e existem mil formas de manejo que, inclusive, dizem respeito ao uso de agrotóxicos.



O Bicudo do Algodoeiro

Foto: Instituto Agro



Um dos agrotóxicos que se usava até ser proibido pela Anvisa, em 2013, era o Endosulfan, que é um disruptor do sistema endócrino, causando vários problemas reprodutivos para humanos e animais. Hoje em dia se usa Malathion e Fipronil, e se usa entre dez e 25 pulverizações por safra. O algodão é a quarta cultura em termos de uso de agrotóxicos no Brasil. Lembrando que o Malathion é carcinogênico e o Fipronil mata absolutamente todos os insetos, a tal ponto que em Santa Catarina, no ano passado, foi proibido depois de um desastre em que 50 milhões de abelhas morreram.

 

 

Insetos resistentes



Quando se fala desses insetos que são resistentes à monocultura, fala-se também da Vassoura de Bruxa, que é uma praga importante na monocultura do cacau. Mas gostaria de destacar duas lagartas que aparecem nas plantações de soja aqui no Paraná. É a Falsa-Medideira e a Broca das Axilas. O que elas têm de especial é que são resistentes à tecnologia BT, que são sementes desenvolvidas pelo melhoramento genético da biotecnologia.



Falsa Medideira

Foto: irac.org



Essa soja tem seu código genético modificado e recebe genes da bactéria BT, que é o Bacillus thuringiensis que se encontra no solo. Essa bactéria produz proteínas tóxicas específicas para algumas pragas que atacam as lavouras da soja, como é o caso da lagarta da soja. Se tem várias sementes BT no Brasil, de soja, de milho etc. e elas vão sendo atualizadas. A introdução dos genes BT na planta leva ela a expressar essas proteínas inseticidas. Isso é o que diz o agronegócio. Em linguagem popular, podemos dizer que essas plantas passam a exsudar inseticida.



Broca das Axilas atacando a planta de soja

Foto: acervo Fepagro



Quando essas lagartas se alimentam dessas plantas, ingerem a proteína inseticida e morrem. Essas proteínas, supostamente, não exercem qualquer malefício sobre outros organismos vivos e sobre o homem.



E qual é a grande defesa dessas sementes transgênicas e dessa tecnologia BT? É a ideia de que se plantar essas sementes se poderá usar pouco agrotóxico, pois já vai ter matado essas terríveis lagartas. Só que o que se observou é que o uso de transgênicos não diminuiu o uso de agrotóxicos, pelo contrário. Uma pesquisa mostra que desde 2003, quando a cultura geneticamente modificada foi oficialmente autorizada no Brasil (dados do artigo Usos de Sementes Geneticamente Modificadas e Agrotóxicos no Brasil, Cultivando Perigos, 2013), até 2012 o uso de agrotóxicos no Brasil aumentou 1,6 vezes.



É o caso do Glifosato, por exemplo, um agrotóxico considerado de pouco risco, mas para uma intoxicação crônica ele é carcinogênico. Conversando com pessoas que trabalham com isso e estudam essas questões, soube que, em relação ao Glifosato, a estratégia da indústria é simplesmente negar que ele seja carcinogênico. Como outrora foi feito com o tabaco e com o amianto. Digo isso porque o Glifosato, sendo um dos agrotóxicos mais usados no Brasil, é considerado leve.



Cito o que está no artigo “As lavouras transgênicas e uma ciência cidadã para mostrar os riscos à vida e os mitos do agronegócio”, escrito por Leonardo Melgarejo [que compõe o livro "Desastres sócio-sanitário-ambientais do agronegócio e resistências agroecológicas no Brasil" (Expressão Popular, 2022)], que diz assim:



“essas tecnologias engendram a seleção negativa dos ‘insetos indesejáveis’ que pretendem controlar, levando a emergência de populações mais agressivas e de difícil controle. Isso, em pouco anos, induz os agricultores a ampliar o volume aplicado de agrotóxicos e, posteriormente, abre o mercado para novas gerações de plantas transgênicas”.

 

Quer dizer, a promessa dos transgênicos de que se vai usar menos agrotóxicos é completamente falsa.



E eles segue:



“Os passos são os seguintes:



Fase 1 – determinado inseto causa danos econômicos que são controlados biologicamente por meio de medidas curativas, sempre com aplicações focais de inseticida e apenas nos locais em suas populações tendem a causar danos econômicos relevantes que justifiquem o tratamento.



Fase 2 – o agricultor altera seu sistema de produção, produzindo lavouras BT. Essas contendo toxina inseticida em todas as células da planta, independente da presença do inseto alvo atual se forma preventiva ao que segue:



a. O cultivo em larga escala de lavouras geneticamente modificadas do tipo BT pela presença massiva da toxica provocando alteração no ecossistema;



b. Num primeiro momento, ocorre o desaparecimento do inseto alvo;



c. O vazio ecológico determinado pela ausência daquele inseto leva ao desaparecimento de seus inimigos naturais, rompendo ciclos de controle biológico;



d. No vazio ecológico que se forma, as chamadas pragas secundárias, insetos que não exerciam danos relevantes, encontram oportunidade para ampliar sua agressividade e alcançam status de pragas principais, exigindo aplicações de inseticidas;



e. Na sequência, o inseto alvo que se pretendia controlar pela presença da planta BT sofre mutações e adquire resistência a toxina. Na ausência de seus inimigos naturais que na Fase 1 exerciam seu controle biológico, aquele inseto explode populacionalmente, exigindo a aplicação de inseticida sobre as lavouras, contendo as toxinas que se tornaram obsoletas".



Isso abre mercado para novas plantas BT contendo novas gerações de toxinas inseticidas. Trata-se de um mecanismo que ao levar a obsolescência da tecnologia anterior não apenas determina o surgimento de insetos de mais difícil controle como também abre mercado para novas gerações de sementes geneticamente modificadas. Como exemplo considere-se o caso do milho YieldGard contendo a proteína CRY1AB, que em pouco tempo perdeu a eficácia, sendo sucedido por outros. E por aí vai. Esse processo é tão previsível que o avanço direto de lavouras transgênicas contendo inseticidas acaba levando ao surgimento de populações de insetos também modificados.



Quem são esses insetos?



Então, quem é a Lagarta Falsa-Medideira e a Broca das Axilas? Nesse nosso ódio às mariposas - pois nossa sociedade ama as borboletas, mas tem ódio das mariposas - essas espécies vão competir conosco. E essas são duas espécies resistentes às sementes BT. São animais, e é por aí que estou querendo pensar, que conseguem criar um corpo de veneno e viver no meio deste. Será que um dia a gente vai se tornar resistente? Esses animais conseguem e quem são eles dentro da cultura da soja? Certamente são terroristas, ou possíveis terroristas, dessa cultura da soja.



Quem são esses animais e como eles conseguem seguir fazendo mundo e desfazendo outros mundos? E aí, não podemos nem ser inocentes e nem moralistas, porque isso não significa que essas mariposas estejam do lado dos humanos ou que a coisa seja simples. Mas são seres e organismos que, de fato, sobrevivem criando para si um corpo envenenado, um corpo resistente ao veneno para a sobrevivência em um mundo envenenado a partir de um mundo que foi arrancado deles, pois são duas mariposas que são nativas das Américas.



Quem são esses animais e qual a relação deles com a soja, com o agronegócio? Não é uma relação amistosa. E, por outro lado, como podemos pensar que elas resistem, inclusive com a letra “x”, elas “re-existem”, formando corpos mais fortes, aprendendo a viver num mundo absolutamente envenenado.

 

 

Disrupção política



Em relação ao agrotóxico, é interessante observar como, apesar de dizerem que não há problemas, se encontram notícias de intoxicação de animais, como o gado, além de humanos. Há toda uma disrupção política; se a política é um modo das criaturas entrelaçadamente criarem mundos, o agronegócio e a monocultura são a disrupção disso. É a declaração de guerra contra uma espécie e a insistência nessa guerra mesmo quando quem está morrendo são seres que supostamente estariam do seu lado. É a insistência dessa guerra para a produção de comida envenenada, para o assassinato de diversos outros animais e para a contaminação de solo e água.



Mas, no entanto, a vida resiste, esses animais resistem e estão lá. Isso não é simples, pois isso leva ao uso de muito mais agrotóxico nessas lavouras porque é preciso controlar, destruir a lagarta mesmo que isso signifique destruir nossas próprias possibilidades de seu mundo, daquele que envenena o outro.

 

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