03 Setembro 2022
A reaquisição da fé, se é que é possível, não pode ocorrer enfiando crenças inacreditáveis goela abaixo do errante da fé, que também está errando pela vida. Pascal estava errado.
A reflexão é do filósofo italiano Luciano Floridi, professor das universidades de Oxford e Bolonha. O artigo foi publicado em seu blog On Life, 30-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Luciano Floridi é autor, entre muitos outros, do livro, recentemente publicado Etica dell'intelligenza artficiale. Sviluppi, opportunità, sfide. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2002. A obra foi publicada originalmente em inglês: The Ethics of Artificial Intelligence. Principles, Challenges, and Opportunities.
Moramos em um pequeno vilarejo. Campos verdes e árvores por toda a parte em que você olhe, além da igreja local e do seu cemitério, nossa silenciosa vizinhança.
Outro dia fui visitá-la.
Eu estava planejando meditar dentro dela, cercado de símbolos, evidências da fé de outras pessoas, das suas crenças na transcendência e no sobrenaturalismo. Um passo no caminho de Pascal, eu pensei. Só que, no meu caso, rumo à reaquisição da fé, não à sua aquisição ou proteção. Continue tentando e você vai acreditar, aparentemente.
Pois bem, isso acaba sendo muito mais difícil na prática do que quando você lê em um livro. É como querer acreditar que o mundo é diferente do que ele grita que é: confuso, acidental, aleatório, caótico, sem Deus, tão abrangente e profundamente histórico.
Eu achei que podia entrar no espaço silencioso da nave da Igreja, passar um momento refletindo e talvez anotar alguns pensamentos, como estou fazendo agora. Enquanto caminhava rumo à igreja, cheguei a me perguntar se alguns moradores locais, ao me encontrarem lá, poderiam me confundir com um fiel, um erro que não me ofenderia e que eu não me importaria de deixar sem retificação.
Enquanto ia até lá, dei-me conta de que talvez deveria ter trazido algo para escrever. Os mesmos moradores locais podem julgar desrespeitoso o fato de eu usar um telefone. A tecnologia leva muito mais tempo para se infiltrar nas nossas práticas religiosas do que em outros âmbitos das nossas vidas. O seu delicado equilíbrio e poder para proteger e reforçar as nossas crenças reside na sua aparência de imutabilidade: o tempo deve ser sempre, o lugar deve estar por toda parte. As práticas religiosas que mudam com a mudança da tecnologia começariam a parecer suspeitosamente imanentes, históricas e totalmente humanas. Esquecemos que não haveria religiões abraâmicas sem a nossa invenção da escrita. Quanto tempo levou para os sinos serem adotados pela Igreja? E as velas? Agora, vejo muitas velas elétricas ao visitar igrejas ao redor do mundo. Acho que a eletricidade finalmente se tornou tão antiga quanto a escrita, os sinos e a cera.
E aposto que um dia teremos muitas práticas digitais. Talvez você poderá pagar mais para acender algumas belas velas LED ou com alguns efeitos 3D especiais para o seu santo favorito. Mas não agora; elas pareceriam muito modernas, muito limitadas ao tempo, humanas demais, contingentes demais.
Continuo caminhando e penso que é quase um teste para a tecnologia. Se você finalmente pode usá-la em um contexto religioso como algo normal, então essa tecnologia não é mais nova ou emergente, mas comum, trivial, diária, ordinária, parte do mundo que assumimos como evidente. Um dia, haverá aplicativos de inteligência artificial para a prática religiosa. Mas agora não. Qualquer coisa digital removeria aquela pátina de antiguidade que ajuda a fé a proteger as suas frágeis raízes em nossas mentes.
Faço uma anotação mental. Eis outro livro que não escreverei: sobre a história da adoção da tecnologia pelas práticas religiosas.
Mas era tarde demais. Eu estava quase lá e não tinha vontade de voltar atrás para procurar uma caneta e um pedaço de papel. Eu pensei que, no caso, eu poderia ainda sentar na parte de trás da igreja e ser cuidadoso com o uso do meu telefone.
O primeiro portão estava aberto, e eu entrei no jardim e no cemitério. Não tenho certeza se as cidades dos mortos construídas longe das cidades dos vivos são uma boa ideia para o nosso senso de mortalidade, de pertença ao universo. Temos escondido a morte por muito tempo em muitos cantos do mundo. É bom caminhar entre túmulos e cruzes, nomes antigos em lápides apagadas pela chuva, com a grama crescendo suavemente entre pessoas que não existem mais.
O segundo portão também estava aberto. Ele leva a um jardim menor e ao pórtico da igreja. É o último lugar do profano. Abraçado por dois lados e um teto, você tenta sacudir a chuva do guarda-chuva, limpar seus sapatos, falar mais baixo, organizar seus pensamentos, desligar o mundo e entrar dentro de si mesmo entrando no edifício. É uma pequena interface com o sagrado, onde um rito de passagem é realizado inconscientemente. É um limiar, com não mais do que alguns metros de largura, mas o suficiente para fazer você sentir que está pisando em solo sagrado, na casa de Deus, em um lugar onde outras regras são aplicadas.
Na parede lateral do pórtico, eu li os horários dos serviços religiosos. E havia um cartaz velho e descolorido, sobre uma ação de caridade ilegível, um chamado urgente para algo que deve ser feito agora ou depois será tarde demais. Todos indexicais, de modo que o “agora” ainda é agora e o “tarde demais” felizmente é adiado para sempre.
Dois portões de um total de dois, e apenas uma porta para atravessar. Eu me senti confiante. Virei a maçaneta. Empurrei. Suavemente. Depois com mais firmeza. A porta, construída em carvalho sólido e bem oleado, pesada, grossa e bastante baixa, com seus ferrolhos pretos e brilhantes, estava trancada. O obstáculo não cedeu. Por desconfiança, eu acho. Pessoas preocupadas com vandalismo, roubo ou algo menos óbvio, mas igualmente sacrílego.
Não será o dia em que vou readquirir a fé, pensei. Não “agora”, ao contrário do que urgia o cartaz antigo com algumas crianças chorando à minha direita. Talvez seja tarde demais, afinal. Talvez a fé nos visite apenas uma vez, no máximo, e, tendo sido incapazes de nos agarrarmos a ela, seu desaparecimento será irreversível.
Pensei em tirar uma foto dos horários da missa de domingo. Mas não posso estar na igreja com outros fiéis, enquanto estão praticando a fé. Seria como me juntar a uma comunidade de druidas durante algum solstício ou em um dia específico da lua. Seria desrespeitoso. Além disso, suas orações e práticas apenas reforçariam as minhas dúvidas. Um osso quebrado precisa de descanso, não de mais exercícios.
A reaquisição da fé, se é que é possível, não pode ocorrer enfiando crenças inacreditáveis goela abaixo do errante da fé, que também está errando pela vida. Pascal estava errado.
E, assim, voltei para casa, uma curta distância em passos, mas longa em minha mente. Já tendo esquecido quando a Igreja estará aberta de novo.
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Sobre Pascal e a porta de uma igreja. Artigo de Luciano Floridi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU