Referência mundial na primatologia, Russell Mittermeier conta que Tarzan foi seu herói na infância e, junto com naturalistas aventureiros, sua inspiração para trabalhar com a conservação da natureza.
A reportagem é de Duda Menegassi e Daniele Bragança, publicada por ((o))eco, 27-07-2022.
Foi no zoológico do Bronx, em Nova York, que Russell Mittermeier viu um macaco pela primeira vez. Eram os anos 50 e ele se lembra de ficar maravilhado com um Uacari branco (Cacajao calvus). Naquela época, ele não sabia que primatas não humanos seriam o animal que ele mais veria na vida: ao todo já foram mais de 420, entre espécies e subespécies, e sempre na natureza. Isso representa mais da metade de todos os primatas conhecidos pela ciência. É uma marca para poucos, não há dúvidas. E Russell definitivamente possui uma carreira única, não apenas na primatologia – onde é referência mundial – mas na conservação da natureza. Hoje, no auge dos seus 72 anos, ele acumula histórias, aventuras e 169 países visitados. O favorito, entretanto, segue sendo o Brasil, onde mantém o recorde de 51 anos de visitas anuais consecutivas.
“Não pulei nenhum ano, nem na pandemia”, conta orgulhoso da façanha no saguão de um hotel no Rio de Janeiro, onde conversou com as repórteres de ((o))eco por cerca de 2 horas. Toda entrevista foi feita em português, um dos seis idiomas que Russell fala fluentemente, além de outros três que ele “arranha”, como o próprio afirma.
Durante todo este tempo, Russ, como prefere ser chamado, falou com entusiasmo sobre sua carreira enquanto seu café esfriava, quase intocado, e emendava histórias sobre suas expedições pelo mundo e pelo Brasil, as pesquisas, conservação da natureza e, claro, primatas, sua maior paixão.
Em meio século mergulhado na primatologia e no estudo de quelônios (ele também é herpetólogo), Russell acompanhou a criação e fortalecimento da área enquanto ciência, e ajudou a formar grupos de primatólogos, aqui e fora do Brasil.
Russell Mittermeier gesticula enquanto conta uma de suas aventuras para as repórteres de ((o))eco.
(Foto: Duda Menegassi | ((o))eco)
“Hoje o Brasil é o país com maior número de profissionais dedicados ao assunto no mundo, é um país sem igual”, diz, otimista. “Você vai para um congresso de primatologia no Brasil e são 200, 300 pessoas, é tão importante ou mais que o Congresso Internacional”, afirma.
A atração de Russell pelo ambiente natural começou ainda criança nos zoológicos de Nova Iorque, nos Estados Unidos, onde nasceu e cresceu, e inspirada por um personagem: Tarzan. Nas histórias do herói, o pequeno Russ era transportado para as florestas do continente africano, povoadas por diversos animais. Em especial, os macacos, que na história ajudam a criar Tarzan e transformá-lo num defensor da selva. Numa analogia irresistível, também os primatas “criaram” Russell para ser um defensor da natureza.
Antes de se encantar com os macacos, o filho de imigrantes alemães dedicava-se a capturar répteis pelo bairro de Long Island onde, na década de 50 e início dos anos 60, ainda havia áreas de mata para explorar. A derrubada dessas árvores para construir casas de uma Nova Iorque em expansão despertou a primeira revolta de um ambientalista em formação.
Mais velho, quando decidiu estudar primatas, o destino óbvio era a África. Enviou cartas aos principais especialistas da época, como Louis Leakey, mentor de Jane Goodall, referência no estudo de chimpanzés, mas foi recusado. Como diz o ditado, há caminhos que se escrevem certo por linhas tortas, e o ‘não’ que recebeu fez com que seu caminho o levasse a um outro destino, ainda pouco estudado pela primatologia: a América Latina.
Foi assim que conheceu pesquisadores do Instituto Smithsonian no Panamá, que o convidaram para estudar bugios. E, em 1970, fez seu primeiro trabalho de campo, na ilha Barro Colorado, território panamenho.
Na época, Russ dedicou-se a fazer um levantamento de todos os estudos que haviam sobre primatas neotropicais – “tinha muita pouca coisa”, lembra. Ainda assim, a análise rendeu um compilado de 300 páginas, nunca publicado, e concluído antes mesmo de graduar-se bacharel. “O que eu mais gosto de estudar é quando não tem nada de conhecimento, é muito mais divertido”, conta com um sorriso largo.
Aventureiro, curioso e determinado, Russell foi um dos que alavancou a primatologia na América Latina.
(Foto: Acervo Pessoal | ((o))eco)
Em 1971, após a graduação em Dartmouth College, decidiu conhecer as possibilidades de pesquisa no continente americano e percorreu dez países: Panamá, Colômbia, Uruguai, Paraguai, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador e, pela primeira vez, o Brasil, num voo até hoje inesquecível.
“Fui para Letícia [na Colômbia] e de Letícia para Manaus. Foi o pior voo de avião da minha vida. A porta abriu, [tinha] muita chuva, todo mundo vomitando… essa foi a minha introdução ao Brasil. E eu voltei”, lembra Russ em meio a risadas.
A saga brasileira continuou por terra. De Manaus ele foi para Belém e de lá, pegou um ônibus até Brasília e outro até o Rio de Janeiro, onde conheceu Adelmar Coimbra-Filho, um primatólogo já reconhecido internacionalmente, que lhe recebeu “como um filho”, lembra. Também nessa época conheceu Maria Tereza Jorge Pádua, Alceo Magnanini e Paulo Nogueira Neto, que na época representavam o setor de parques do governo brasileiro.
De volta para os Estados Unidos, Mittermeier começou um mestrado em Antropologia Biológica na Universidade de Harvard, onde depois emendaria seu PhD.
Em 1973, Russell Mittermeier decidiu voltar para o Brasil, especificamente para a Amazônia. Para viabilizar a expedição, que durou quatro meses, conseguiu apoio do zoólogo Paulo Vanzolini, da Universidade de São Paulo, que mantinha dois barcos chamados Expedição Permanente da Amazônia.
A aventura a que se propunha tinha como objetivo seguir os caminhos dos naturalistas Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace no século XIX e, no percurso, encontrar o uacari-branco (Cacajao calvus), o mesmo que havia visto no zoológico quando criança.
Expedição realizada de barco por Russell na Amazônia em 1973, quando percorreu os rios em busca dos uacaris.
(Arte: Gabriela Güllich | ((o))eco)
“Wallace e Bates fizeram dois livros fantásticos [sobre suas expedições na Amazônia]. Eu li esses livros e eles falaram dos macacos uacari, os macacos de cara vermelha. Quando eu era criança, no Bronx, em Nova Iorque, eu vi um uacari-branco, único no cativeiro. Isso foi nos anos 50, quando eles começaram a falar de Yeti [mito, também conhecido como abominável homem das neves], no Himalaia. E para mim, o uacari-branco foi um mini Yeti. Então eu falava, ‘eu tenho que ver esse bicho’. Quando eu fiz essa expedição, foi principalmente para ver os uacaris”.
Naquela época, pouco se sabia sobre o uacari-branco, que ocorre numa pequena área da Amazônia. O primata, que mede entre 50 e 60 centímetros, tem um visual marcante: o corpo todo branco e a cara completamente vermelha. Uma aparência que sem dúvidas pode se assemelhar com a de um ser mitológico como o Yeti.
Até o ano de 1973, nenhum estrangeiro havia registrado o encontro com estes animais na natureza. Mesmo Bates e Wallace apenas receberam os animais dos moradores da região, “mas eles não viram na natureza”, explica Russ, que narra com orgulho ter sido o primeiro “forasteiro” a vê-los na floresta. Um encontro que ele classifica como uma das experiências mais marcantes que já teve com primatas, “foi fantástico”.
O curioso uacari branco, primata que despertou o interesse de Russell quando ainda era criança.
(Foto: Russell Mittermeier | ((o))eco)
“Eu fui para o Rio Negro e os afluentes do rio e encontrei o uacari-preto (Cacajao melanocephalus). É um dos macacos mais comuns lá. Depois fui para a região do rio Panauã, agora em Mamirauá [Reserva de Desenvolvimento Sustentável], onde eu vi o uacari-branco. E depois fui para o rio Ica e vi o uacari-vermelho (Cacajao rubicundus) lá. Então vi todos os três conhecidos nessa época lá”, detalha.
Atualmente, a ciência reconhece oito espécies de uacari, todas endêmicas da Amazônia. A última delas foi publicada em junho deste ano, batizada uakari-dos-Kanamaris (Cacajao amuna), no estado do Amazonas.
“Até hoje, e já faz mais de 50 anos, foi a melhor expedição que eu fiz”, diz saudoso. Ele admite, entretanto, que as condições para estudar estes primatas eram difíceis, o que o desanimou de transformar os uacaris em seu projeto de doutorado.
“Por sorte encontrei um botânico holandês, que estava no Suriname, e ele falou ‘Lá eu vi o cuxiú [Chiropotes sagulatus]’, macaco parente do uacari, mas que tem o rabo muito grande e uma cabeça muito estranha. Então eu pensei, ‘eu vou lá e vou estudar esses animais’’”, descreve o primatólogo, que em 1977 concluiu seu PhD com a tese “Distribuição, Sinecologia e Conservação dos Macacos do Suriname”.
Desde 77, inclusive, Mittermeier é presidente do grupo de especialista de primatas da União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN). “Comecei com 27 anos. Começamos com 20 pessoas, agora somos mais ou menos 800 membros. Quebrei o recorde mundial de duração de presidente de grupo de especialistas”, ri enquanto admite que ele próprio fica chocado quando pensa nisso.
O grupo ajuda a promover conhecimento de taxonomia, para identificar corretamente as espécies, “porque você não pode fazer a conservação de um grupo de animais se você não sabe o que são e onde vivem”. Além disso, o grupo é responsável pela elaboração da Lista Vermelha (Red List) da IUCN para primatas.
“Em cada década, fazemos um esforço de ver quais as espécies mais ameaçadas, criticamente ameaçadas, ameaçadas, vulneráveis. Isso é um processo complicado. Começou na última década, em 2012, e agora finalmente estamos acabando com as avaliações dos 719 tipos de primatas diferentes”, afirma aliviado.
Atualmente, a ciência reconhece 81 gêneros de primatas, sendo 529 espécies e um total de 719 táxons, entre espécies e subespécies. “Mas isso está sempre mudando, porque sempre estamos descobrindo novas espécies”, comenta.
De acordo com Russ, desde 2000 já foram descobertas quase 100 espécies, a maioria delas em Madagascar, ilha africana que é lar dos lêmures e da segunda maior diversidade de primatas do mundo, atrás apenas do Brasil.
A primeira vez que Russ visitou o país africano foi em 1984, quando foi pelo WWF acompanhar diversos projetos de conservação que eles financiavam na ilha e aproveitou para ver lêmures. “Gostei muito, mas ainda gosto mais do Brasil. O Brasil é o país número um para primatas, Madagascar número dois, Indonésia três e Congo quatro”, lista Russell. Somados, os quatro países abrigam cerca de 60% das espécies de primatas no mundo. Apenas no Brasil são 151 táxons (espécies e subespécies).
Russell com um lêmure-de-frente-vermelha (Eulemur rufifrons) em Madagascar.
(Foto: Acervo Pessoal | ((o))eco)
Entre as descobertas recentes da primatologia está uma espécie batizada em homenagem a Mittermeier, o macaco amazônico Pithecia mittermeieri, descrito em 2014. Não é a primeira espécie que homenageia Russ, muito pelo contrário. Além do macaco, o sobrenome do primatólogo abrange uma “família” de três sapos, um lagarto, dois lêmures e, até mesmo, uma formiga.
Do outro lado da balança da biodiversidade, onde pesam as espécies que desapareceram da natureza, Russ aponta que até o momento, no século XXI, “não perdemos nada” entre os primatas, apesar de haver várias espécies no limiar da extinção.
Ele cita como exemplo uma espécie de red colobus (Piliocolobus waldronae), um macaco africano que ocorre na fronteira entre Gana e Costa do Marfim. Atualmente, uma equipe da Re:wild está fazendo pesquisas com armadilhas fotográficas e drones de visão termal no último lugar onde a espécie foi avistada, há mais de 50 anos, justamente para determinar se o macaco ainda existe.
A última extinção de primata reconhecida pela ciência data de 500 anos atrás, quando acredita-se que exterminou-se a última espécie de lêmure-gigante que sobrevivia em Madagascar. As demais espécies deste fantástico grupo de lêmures – um deles com o tamanho de um gorila! – já haviam desaparecido há cerca de 2 mil anos, quando uma outra espécie, a humana, chegou pela primeira vez na ilha africana.
Madagascar é um dos pontos de maior atenção hoje para conservação de primatas. De acordo com Russell, cerca de 90% das espécies da ilha estão sob algum nível de ameaça de extinção. “Mesmo com os esforços que estamos fazendo é muito frustrante. Tem animais que têm 50, 60, 80 indivíduos”, alerta.
Um dos primatas brasileiros que marcaram a carreira de Russell Mittermeier foi o mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia), espécie que ocorre apenas na Mata Atlântica do estado do Rio de Janeiro. Tanto pelo animal em si, quanto pela amizade desenvolvida com Adelmar Coimbra-Filho, na época o principal porta-voz de defesa do mico-leão, que beirava a extinção.
O seu primeiro encontro com o animal foi em 1979, quando Russ fez o que acredita ter sido a primeira fotografia do mico na natureza. Nessa época, estimava-se que existiam menos de 200 indivíduos da espécie em seu habitat natural – cálculo que, por sinal, foi publicado em artigo de Mittermeier com Coimbra-Filho.
Em 1979, Russ registrou seu encontro com o mico-leão-dourado na Rebio Poço das Antas, no que acredita ter sido a primeira foto da espécie na natureza.
(Foto: Russell Mittermeier | ((o))eco)
“Coimbra foi o primeiro primatólogo de verdade do Brasil”, afirma, com orgulho do velho amigo, que faleceu em 2016.
Anos antes, em 72, a dupla de pesquisadores, junto com o engenheiro agrônomo Alceo Magnanini, foi convocada para a Conferência “Salvando o mico-leão-dourado” (Saving the Golden Lion Marmoset), organizada pelo Wild Animal Propagation Trust, no Zoológico Nacional de Washington DC, Estados Unidos. O encontro reuniu especialistas do mundo inteiro e pela primeira vez discutiu e planejou uma estratégia internacional para salvar o mico-leão-dourado da extinção.
“Chamaram essa reunião e me convidaram junto com Coimbra e Magnanini, porque eu fui um dos poucos que tinha viajado para o Brasil e falava português e eu fui tradutor também. E nessa reunião, Devra Kleiman tomou a responsabilidade de determinar porque os animais não se reproduziam bem em cativeiro. Ela ficou uma década estudando os animais, aprendeu o que era preciso e permitiu a população de cativeiro crescer”, conta Russ.
O sucesso do manejo em cativeiro, ou ex situ, foi fundamental para os esforços de salvar a espécie da extinção, pois permitiu o repovoamento de micos na natureza, através da reintrodução de animais de zoológicos no seu habitat natural.
Um jovem Russell, à esquerda, conversa com Adelmar Coimbra-Filho, no Banco Biológico da Tijuca, em 1973.
(Foto: Acervo Pessoal | ((o))eco)
“E de lá começou todo um movimento e começamos a criar esses international management committees [comitês internacionais de manejo]. Essa colaboração entre zoológicos especialistas a nível mundial, para mim até hoje é um modelo para a conservação de qualquer espécie ameaçada. E criaram comitês para os outros dois micos também, isso deu certo”, completa.
O sucesso comentado por Russell se comprova em números. Antes em vias de extinção, hoje a população de mico-leão-dourado na natureza é estimada em 2.500 indivíduos. A espécie ainda é considerada Em Perigo, mas definitivamente está numa situação mais confortável do que quando Russ primeiro teve contato com eles.
“Isso mostra a importância de muita pesquisa, de muito esforço, persistência. Tem que ter dedicação, tem que ter as pessoas certas trabalhando no assunto, esse tipo de coisa que faz a conservação da espécie funcionar”, avalia.
Essa relação com os micos e Coimbra, fez com que o americano decidisse fazer um levantamento de primatas da Mata Atlântica. “Em 1975, eu me encontrei com o Thomas Lovejoy [ambientalista americano], ele leu uma reportagem que eu fiz sobre a minha expedição em 1973 e ele, sendo pessoa interessada na Amazônia, fez contato comigo e falou: ‘Por que você não faz um levantamento de primatas na Amazônia?’. Eu falei: ‘Muito bom, mas eu acho que a Mata Atlântica tem mais prioridade’”, lembra.
Da esquerda para direita: Russell, Celio Vale, Coimbra-Filho e Thomas Lovejoy.
(Foto: Acervo Pessoal | ((o))eco)
Na época trabalhando no World Wildlife Fund (WWF), onde ficou entre 1978 e 1989, Russ conseguiu recursos para fazer o levantamento de primatas em todas as áreas protegidas na Mata Atlântica.
“Isso começou em novembro de 1979. O primeiro lugar onde fomos foi Poço das Antas [Reserva Biológica], onde vi o mico. E depois fomos para a Fazenda Montes Claros [atualmente conhecida como Reserva Particular do Patrimônio Natural, RPPN, Feliciano Miguel Abdalla], ver muriqui, com o professor Célio Valle, da UFMG. Então Coimbra, Célio Valle e Almirante Ibsen foram os parceiros brasileiros nessa expedição, que durou praticamente dez anos. Formamos muita gente, especialmente na UFMG”, diz Russell.
Nesse mapeamento, deu destaque às três espécies de micos-leões conhecidas pela ciência na época, além do dourado, o mico-leão-preto (Leontopithecus chrysopygus) e o cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas), que ocorrem, respectivamente, nos estados de São Paulo e Bahia.
“A grande estupidez nossa durante esse levantamento de macacos de uma década, de 79 até 89, foi que falamos ‘vamos concentrar as nossas forças, na Bahia, Espírito Santo, Minas e São Paulo, porque o Paraná não é interessante’.
E em 1990, essas duas meninas super jovens [Vanessa Persson e Maria Lúcia Lorini] encontraram o mico-leão-da-cara-preta (Leontopithecus caissara) lá. Foi uma tristeza que não fomos para o Paraná também”, conta em meio a risadas.
“E em 1982, eu trouxe a Karen Strier”, continua Russ sobre a vinda da primatóloga americana para estudar os muriquis-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), na RPPN Feliciano Miguel Abdalla, em Caratinga (MG). Um trabalho que já dura quatro décadas ininterruptas. “O estudo dela é incrível porque ela fez 40 anos contínuos e formou mais de cem especialistas brasileiros. Muito pouca gente faz tanto tempo contínuo”, comenta Russell.
Essas sementes plantadas por Karen, pelo próprio Russell e outros pesquisadores na ciência brasileira renderam muitos frutos. Mittermeier aponta que hoje o Brasil tem mais primatólogos do que qualquer país tropical. “Acho que tem mais primatólogos agora até do que os Estados Unidos”, afirma.
O pesquisador destaca que a experiência brasileira não está restrita às fronteiras nacionais. “Aos poucos está sendo transferida para outros países, especialmente através dos esforços do Leandro Jerusalinsky [do Centro de Primatologia do Brasil – CPB/ICMBio], atual presidente da SLAPrim, Sociedade Latinoamericana de Primatologia. Ele está ajudando muito Bolívia, Paraguai. Os colombianos têm uma sociedade agora [de primatologia], Equador tem, Peru tem”, diz.
Atualmente, Russell Mittermeier é Chefe de Conservação (Chief Conservation Officer) da Re:wild, organização internacional que substituiu a Global Wildlife Organization e atua em prol da proteção da biodiversidade planetária. Parte importante do trabalho do primatólogo é angariar fundos e captar doadores para apoiar a causa.
Esse trabalho inclui viagens com potenciais doadores para conhecer projetos de conservação e áreas naturais para sensibilizá-los a contribuir com a filantropia ambiental. Foi nesse contexto que veio ao Brasil, em abril deste ano, ocasião em que foi feita esta entrevista. Sua viagem teve três destinos: o Pantanal; a RPPN Feliciano Miguel Abdalla e o trabalho de conservação dos muriquis-do-norte; e o interior do estado do Rio de Janeiro, onde visitou a Associação Mico-Leão-Dourado (AMLD).
“Eu faço muito do meu fundraising através de viagens. Quando tem doador importante, em lugar de só visitar eles em seus escritórios, eu faço viagens com eles. Uma semana, duas semanas… para realmente conhecer melhor, porque o fundraising é principalmente baseado em relações com as pessoas. Eu faço questão de duas ou três vezes por ano, ou mais às vezes, ir com pessoas de muita capacidade [financeira] visitar Madagascar, a Mata Atlântica, Pantanal, Suriname, o que seja”, conta o primatólogo, que define “doador importante” como aqueles capazes de doar quantias como 1 milhão de dólares.
Nessa seleta lista estão inclusive nomes Hollywoodianos como os atores americanos Harrison Ford e Leonardo DiCaprio, que hoje é membro do conselho da Re:wild.
“Os Estados Unidos têm essa grande tradição de filantropia e ainda existe uma grande necessidade desses recursos dos países mais ricos, porque a grande parte dos países em desenvolvimento não têm a capacidade, ou não têm a vontade de dedicar muitos recursos à conservação ainda. E os Estados Unidos tem essa tradição de filantropia privada, o que para mim é o melhor dinheiro que existe, porque quando você passa dinheiro de governo a governo, grande parte é engolida pela burocracia. E governos geralmente não gostam de ONGs. Isso é no mundo inteiro. E acontece que, mais do que qualquer outro setor, a biodiversidade, a conservação de espécies e da natureza dependem da presença e do esforço de ONGs trabalhando na linha de frente”, comenta.
À esquerda o ator Harrison Ford, ao lado de Russell Mittermeier durante a entrega do prêmio Indianapolis Prize, em 2018, ao primatólogo por seu trabalho na conservação da natureza.
(Foto: Acervo Pessoal | ((o))eco)
Conciliar o trabalho de defensor da biodiversidade global, entre mil viagens – ele já visitou 169 países! – , com a família não é fácil, admite. Casado duas vezes, Russell tem três filhos, dois deles envolvidos com a área ambiental. O mais velho trabalha na conservação de aves nos Estados Unidos, outro é botânico e a mais nova estuda antropologia. “Felizmente sempre tive a oportunidade de trazer um ou outro filho comigo, então eles foram muito expostos à conservação, às áreas naturais. Mesmo que não estivesse sempre presente, fiz o esforço para dar a visão do mundo desde pequenininhos”, conta.
Russell Mittermeier é um otimista realista, ou seja, acredita que é possível melhorar, mas investe sua energia onde vê condições reais de desenvolver um trabalho de conservação. “Tem que ser estratégico”, resume.
Parte da estratégia está atrelada ao conceito de “hotspots” de biodiversidade, uma ideia criada em 1988 pelo ambientalista Norman Myers e que Mittermeier abraçou e ajudou a ampliar durante seu período como presidente da Conservation Internacional (CI), de 1989 até 2017. Atualmente são reconhecidos 36 hotspots no mundo.
“Esses hotspots, originalmente, ocupavam 16% da superfície terrestre do planeta. Perderam mais ou menos 90% da sua área, quer dizer que 2% da superfície terrestre do planeta é o que sobrou de natureza dos hotspots. E nesses hotspots, você tem, pelo menos, 50% das plantas e mais de 40% dos vertebrados como endêmicos. Então se você perde os hotspots, você automaticamente perde a metade das plantas e animais. Então, estrategicamente precisamos fazer um esforço muito forte nos hotspots. Aqui no Brasil temos a Mata Atlântica, o Cerrado. Na América Latina tem os Andes Tropicais, a Meso América… todos eles são hotspots”, explica.
Ao mesmo tempo, é necessário focar nas áreas que ainda estão intactas, que são as áreas de alta biodiversidade (ou megadiversidade) e as zonas selvagens. Nessa lista estão a Amazônia, o Congo e a Ilha de Nova Guiné, no Oceano Pacífico. “Se você faz um bom trabalho nessas regiões, você tem esperança”, acrescenta.
Amazônia é uma das áreas de alta diversidade que devem ser protegidas de forma prioritária.
(Foto: Marcio Isensee e Sá/Pé no Parque | ((o))eco)
Com tom esperançoso, Russell diz que vê a história recente de conservação da Mata Atlântica como um caso de sucesso. Porque apesar da grande destruição do bioma, ele viu, desde que chegou no país, em 1971, o trabalho de muitos especialistas, e a criação de áreas protegidas, inclusive privadas. E, mais recentemente, as iniciativas de restauração e até mesmo de reintrodução de animais localmente extintos.
“Mas a coisa mais importante é proteger o que existe, as áreas naturais que existem, sem elas você não tem rewilding [reintrodução de animais e plantas nativos para restauração de ecossistemas naturais]. Rewild é bom, mas ele tem que crescer nas áreas naturais protegidas, se você não tem nada e procura fazer rewilding, com o que você vai fazer? Com eucalipto?”.
“Tem que estimular os fazendeiros a deixarem as florestas crescerem, ter boa proteção nas áreas protegidas. Outro aspecto importante é a presença científica, isso ajuda muito, não só pela pesquisa, mas serve quase como a presença de um guarda-parque. E as comunidades começam a se envolver mais. E para mim, altamente importante é o ecoturismo”, avalia Russell.
Em comparação com outros países, o primatólogo acredita que o Brasil está indo bem, principalmente graças ao crescente envolvimento das pessoas com a agenda ambiental. “O que é impressionante no Brasil é o crescimento do interesse na conservação nos últimos 50 anos. Quando eu cheguei aqui pela primeira vez, tinha muito pouca gente fazendo conservação, tinha muito pouco parque nacional, reserva biológica. Pouco a pouco essa consciência cresceu aqui e cresceu com rapidez e muita força”, pondera.
“Se você não viu o que tinha no início, é fácil ser pessimista, mas se você viu nada no início e agora você tem isso tudo”, provoca diante dos olhares pessimistas das jornalistas.
Uma das apostas de Mittermeier é justamente o “primate watching”, conceito que criou há cerca de 20 anos inspirado no turismo de observação de aves, que movimenta um mercado bilionário no mundo.
“O meu filho mais velho é um birdwatcher de primeira qualidade, ele já viajou para 125 países e eu vejo com ele como a comunidade de birdwatching está conectada e o impacto que eles têm. Não tem tantos primatas quanto aves, são quase 11 mil aves e nós temos 719 primatas, mas são populares e símbolos das matas tropicais. Eu pensei, por que não tentamos fazer com primatas também? Estamos pouco a pouco fazendo isso”.
O próprio Mittermeier, sem dúvidas, é o maior ‘primate watcher’ da atualidade. O americano já viu mais de 420 primatas conhecidos hoje no mundo. “Só vale na natureza, pode ter ajuda de telemetria, mas tem que ser na natureza”, esclarece.
Em sua última visita ao Brasil, Russell foi observar um primata que conhece bem: o mico-leão-dourado.
(Foto: Luís Paulo Ferraz/Associação Mico-Leão-Dourado | ((o))eco)
Apesar de ser a pessoa que mais testemunhou a diversidade de primatas no mundo, Russ reconhece que “zerar” as espécies é uma tarefa impossível. “Então eu falei, faz uns dez anos, que tinha que ver pelo menos todos os gêneros, que eram 80. E no início de 2019 eu vi o que faltava. Lá na Tanzânia, com a BBC filmando”, descreve sobre sua ida para avistar o Rungwecebus kipunji, do gênero Rungwecebus. O 80º e derradeiro gênero. Era. Porque em março deste ano, uma revisão taxonômica sobre o loris lento pigmeu (Xanthonycticebus pygmaeus) o dividiu em um novo gênero e, com isso, surgiu um 81º ainda não visto por Mittermeier.
“Agora eu tenho que ver esse”, comenta com o entusiasmo de alguém prestes a completar um álbum de figurinhas. Sobre outras espécies que ele gostaria de ver em particular, ele responde “basicamente, o que não vi ainda, quero ver”.
Amazônia ou Mata Atlântica?
Amazônia. Gosto muito de grandes áreas de floresta. A Amazônia é maravilhosa. Gosto da Mata Atlântica também, mas a Amazônia ganha.
País favorito?
O Brasil para mim sempre é o país número 1. Posição número 2 fica entre Suriname e Madagascar que são dois lugares muito diferentes. Madagascar 90 por cento da natureza perdida, Suriname 90 por cento intacto, país mais verde do planeta.
Área protegida favorita?
Essa é difícil. [longa pausa] Sabe uma paisagem fantástica, muito bonita é o sul da Venezuela, o Parque de Canaima, florestas com tepuis, é absolutamente incrível, a coisa mais bonita. E no Brasil, eu gosto muito do Pantanal. Não é bem uma área protegida, mas é uma área natural e um lugar fantástico para ver animais. Tem o Parque Nacional das Emas no Brasil também. Mas tem tantas no Brasil… O Parque Nacional Jaú, que eu visitei antes de ser parque, esse tem que entrar na lista.
Nos Estados Unidos, eu gosto muito de Yellowstone, que é o primeiro e tem muitos animais. Na África tem o Parque Nacional Virunga, onde tem o gorila da montanha.
Qual sua inspiração?
Eu respeito muito os naturalistas antigos como Wallace e Bates, porque eles fizeram coisas que ninguém fez. Mas a minha inspiração não foi uma pessoa, foi o Tarzan, desde pequenininho. Primeiro os filmes, depois os livros e os comic books.
Indica um livro ou autor de leitura obrigatória?
É bom começar com os livros dos pioneiros como Aldo Leopold. “Almanaque de um condado arenoso” é básico. Mostra a filosofia da natureza.