08 Junho 2018
Projeto científico permite ouvir e ver a vida animal em uma das últimas fronteiras de nosso planeta.
A reportagem é de H. Araújo, publicada por El País, 07-06-2018.
Ao amanhecer e ao anoitecer, os exemplares machos do bugio vermelho (alouatta seniculus) lançam um grito envolvente que se expande pela selva da Reserva Mamirauá. Para quem não conhece essa região isolada e exuberante da Amazônia brasileira, sem uma só estrada, o alarido evoca a existência de uma ameaça iminente por parte desses macacos de pelagem avermelhada e sete quilos de peso.
Mas, na realidade, o grito do bugio vermelho é um sinal de paz: os machos se afastam e emitem seus sons roucos quando seus grupos – geralmente de quatro a seis exemplares, fêmeas em sua maioria – se instalam em uma região com boa capacidade de frutas e folhas. Dessa forma, avisam outras comunidades da mesma espécie de sua presença no território e, portanto, fazem com que procurem outro local para se alimentar e encontrar fêmeas. A espécie evita dessa forma conflitos violentos desnecessários e, consequentemente, economiza calorias cada vez mais difíceis de se conseguir para frutívoros que, como esses primatas, consomem muita energia para processar os vegetais que devoram.
Para chegar a uma conclusão como essa com o bugio – e qualquer outro animal selvagem – é preciso o trabalho de dezenas de pesquisadores durante anos e até décadas. Geralmente, um cientista decifra, após longas temporadas na região, uma parte do quebra-cabeças de uma espécie, como explica Jane Godwell em um documentário recente que descreve seus primeiros passos como primatologista. Até que por fim os biólogos são capazes de descrever as características principais e o comportamento de determinado animal se tiverem sorte.
É muito mais difícil decifrar seu papel no ecossistema, ou seja, compreender a interação de determinada espécie com outros seres vivos como por exemplo plantas, insetos e bactérias. “A biodiversidade é mais complexa do que qualquer coisa inventada pelo homem. É uma biblioteca incrível, mas desconhecida em sua maioria”, diz o norte-americano Thomas Lovejoy, pai do termo e pesquisador da Amazônia desde 1960.
Multipliquem esse trabalho pela extraordinária variedade de espécies da maior floresta tropical (pelo menos 2.500 tipos de pássaros e o mesmo número de peixes, e até 16.000 de árvores) e por sua dimensão (tem um tamanho equivalente à Europa ocidental sem contar a Rússia), e entenderão por que a Amazônia é uma de nossas últimas fronteiras no planeta, um local intocável para nosso conhecimento, apesar do fascínio que desperta nos humanos desde, pelo menos, a conquista da América (época dos primeiros registros escritos conhecidos sobre a região).
Pela primeira vez, entretanto, essa informação talvez esteja a nosso alcance. Coordenado pelo brasileiro Instituto Mamirauá, um dos mais importantes centros de estudo da Amazônia em matéria socioambiental, um grupo de 40 pesquisadores brasileiros, australianos, espanhóis e franceses de disciplinas tão diferentes como engenharia elétrica, inteligência artificial, informática, eletrônica e biologia juntaram seus conhecimentos para desenvolver um projeto chamado Providence que usa a tecnologia para monitorar, decifrar e transmitir ao exterior a vida no coração da floresta. Tudo isso vinte e quatro horas por dia, 365 dias por ano.
Os engenheiros do instituto australiano CSIOR – inventor, entre outras coisas, do WiFi comercial – criaram painéis solares que, colocados na copa das árvores, fornecem energia a dispositivos integrados por câmeras e microfones que captam como um Grande Irmão as atividades da fauna e enviam esses dados pela Internet a milhares de quilômetros de distância. A Universidade Federal do Amazonas (UFAM), por sua vez, contribuiu desenvolvendo um software que analisa a imagem e determina o tipo de animal. Por último, a Universidade Politécnica da Catalunha (UPC) implementou, através do engenheiro e biólogo francês Michel André, diretor do Laboratório de Aplicações Bioacústicas, um sistema de captação de sons na floresta e nos rios amazônicos para escutar e interpretar o comportamento de espécies como o boto rosa, o jacaré-açu e a onça.
“Começaremos com 10 dispositivos de áudio e vídeo conectados à rede e instalados em árvores, em uma região da Amazônia brasileira que fica inundada durante alguns períodos do ano e é de difícil acesso. Mas nossa ambição é conseguir colocar 1.000 câmeras em toda a floresta nos próximos anos”, diz o pesquisador brasileiro Emiliano Ramalho, que desde 2004 estuda os felinos e é um dos grandes especialistas na onça. “Até agora sabemos da importância das florestas ao planeta. Mas não compreendemos a engrenagem por completo: o carro [floresta] pode parecer lindo por fora, mas por dentro podem faltar peças fundamentais [animais] ao seu funcionamento”, afirma, enquanto caminha por uma extraordinária selva onde o número de espécies de árvores por hectare fica entre 80 e 120 (para menos de uma dezena na Europa e não mais de 25 na América do Norte). Para chegar até aqui foi preciso pegar dois aviões e viajar durante três horas em pequenas lanchas e canoas por rios e canais, que são as estradas da grande floresta.
O Providence significa uma evolução notável em relação ao sistema de câmeras estáticas que até hoje é usado para monitorar a fauna no mundo. Os sistemas atuais possuem disparadores automáticos que são ativados com o movimento e o calor de um animal, mas obter a informação sempre exige que um humano – geralmente um jovem intrépido – vá rotineiramente a regiões repletas de perigos, de mosquitos transmissores de malária a cobras venenosas, para recolher os cartões de memória e carregar as baterias.
Mas não é só isso: o Providence foi desenvolvido de forma a não só captar e transmitir de maneira autônoma, mas também decodificar informação que escapa ao nosso alcance como humanos. “O sistema de áudio é programado para distinguir individualmente os sons de cada espécie. Assim, poderemos identificar e depois reconstruir o que acontece em uma região da floresta durante semanas e meses. Por exemplo, o que acontece quando um predador, como a onça, entra em uma determinada área? Como agem os outros animais quando o felino chega?”, diz André, que há mais de 25 anos estuda e decifra os sons de animais aquáticos.
Ao perguntar a esse homem, que realizou projetos em numerosos mares do mundo – como na costa das Ilhas Canárias, onde trabalhou para evitar colisões entre navios e cachalotes –, se o trabalho feito pelo Providence seria comparável, por exemplo, a enviar mil dos melhores cientistas permanentemente a uma região amazônica para que estudem a floresta, respondeu: “Esses seres humanos, sozinhos, jamais poderiam captar os sons e a informação na escala do Providence. Temos boa memória acústica, mas não somos capazes de sincronizar e conjugar todos os dados da floresta ao mesmo tempo e em escala global. Essa tecnologia nos proporciona o dom da ubiquidade a serviço da conservação da biodiversidade”.
Um elemento fundamental a essa capacidade de coleta de informação são os microfones que integram cada uma das 10 caixas de sons instaladas em diversas árvores.
Habitualmente costumamos pensar em imagens quando evocamos a vida animal, uma vez que seu comportamento nos emociona e nos fascina, mas os sons – sem barreiras como as que significam para qualquer câmera árvores, plantas e insetos – podem ser muito mais efetivos. Por isso cada dispositivo possui três receptores acústicos: um capta frequências audíveis ao ouvido humano, outro as que estão acima e abaixo de nossas capacidades auditivas e, por último, um microfone aquático que capta os sons emitidos debaixo d’água.
“Enquanto esses dados são reunidos, um programa de software os analisa e codifica em tempo real, recriando o que faz nosso ouvido interno e nosso cérebro, e os envia a um servidor em que são automaticamente sincronizados. Em poucos segundos você pode recebê-los em qualquer parte do planeta”, diz André.
É, de alguma forma, como se a floresta amazônica fosse uma orquestra sinfônica de instrumentos quase infinitos (os animais e seus sons), e onde cada um deles soa de maneira diferente quando outros tocam ao mesmo tempo (interação entre animais). Até agora só pudemos escutar partes ou frações dessa música, que é pura informação sobre o reino animal na última fronteira terrestre. Suas melodias são hoje fundamentais para se compreender a saúde da maior floresta tropical do planeta, ameaçada pela expansão da criação de gado comercial, a produção de monoculturas com a soja e a construção de hidrelétricas e estradas.
A melhoria dos novos sistemas de energia, especialmente a solar, e o barateamento da tecnologia por satélite permitiram expandir o campo de ação da ciência no monitoramento das grandes florestas. Na Amazônia há anos são utilizadas imagens gratuitas de satélites para medir o desmatamento, painéis solares de baixo custo para gerar a energia necessário para produzir gelo que, por sua vez, permite que comunidades locais vendam frutas e peixes em centros urbanos de maior poder aquisitivo, e drones para estudar a quilométrica viagem de estranhas espécies aquáticas. Também estão sendo desenvolvidos robôs que podem elaborar mapas da selva em três dimensões, como se fosse a cartografia de uma cidade.
O objetivo em um mundo que por nossa ação perde sua diversidade a um ritmo acelerado – e com isso as possibilidades de se encontrar soluções a problemas como doenças incuráveis – é que a tecnologia possa minimizar o impacto da colisão entre humanos e natureza. O CSIRO, por exemplo, desenvolveu no Gabão um projeto para detectar antecipadamente a chegada de elefantes a plantações e, usando luzes e sons específicos, desviar suas trajetórias para impedir que destruam os cultivos.
“Dessa forma evitamos que sejam assassinados por produtores locais”, explica Paulo Vinícius, cientista do grupo de robótica do CSIRO entrevistado na Pousada Uacarí, um conjunto de casas flutuantes sobre um rio amazônico repleto de jacarés e piranhas que serve de base de operações ao Providence.
A primeira fase do projeto, implementada em março, precisou de quase dois anos de trabalho e 1,4 milhão de dólares (5 milhões de reais) – a maior parte financiada pela Fundação Moore –. O futuro dessa tecnologia depende agora de mais fundos – não menos de 10 milhões de dólares (37 milhões de reais) –, e de que sua utilidade, além de científica, chegue a usuários comuns, de curiosos que queiram ver e escutar em suas casas o que acontece em uma área fascinante e de mínimo impacto humano a estudantes do meio ambiente em escolas e universidades.
“Esse projeto permite levar as pessoas à selva, permite que um asiático e um africano vejam o boto rosa do Amazonas”, diz o professor da UFAM José Reginaldo de Carvalho, que sonha com uma conscientização maior graças às imagens e sons captados pelo sistema. “Uma coisa é presenciar uma tragédia e outra coisa é ver a tragédia de alguém que você conhece. O Providence torna a Amazônia sua, a aproxima de você”, afirma.
Talvez o Providence signifique uma oportunidade à selva, já que pela primeira vez temos a possibilidade de ver e escutar espécies como o barulhento bugio vermelho quando são forçadas a fugir do fogo e das motosserras que frequentemente assolam a Amazônia para fins econômicos. Já não podermos dizer que não sabíamos sobre essa tragédia.
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O ‘reality show’ de animais que quer desvendar os segredos da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU