A PEC dos Auxílios foi aprovada nesta quarta-feira (13) pela Câmara dos Deputados, o que permitirá aumentar o Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, além da extensão de outros benefícios, às vésperas das eleições deste ano. A efetivação desse direito, no entanto, esbarra no desmonte da assistência social no Brasil, responsável por fazer a ponte entre os benefícios e o público alvo.
Hoje existem 2,78 milhões famílias aptas para receber o Auxílio Brasil, mas que ainda não receberam o benefício. O dado é da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), com base nos números do sistema Consulta, Seleção e Extração de Informações do CadÚnico (Cecad), registrados até abril deste ano.
Segundo Priscilla Cordeiro, funcionária do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e conselheira do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), a fila do Auxílio Brasil se deve "justamente a esta desorganização na implementação, de fazer chegar o Auxílio Brasil às pessoas."
"Há uma confusão na operacionalização muito grande e que é, para mim, um reflexo muito evidente da falta de transparência desse governo e da falta de participação no processo de elaboração. Eu digo que a falta de informação é um projeto político. Bolsonaro lança esse programa no momento em que a popularidade dele começa a cair", afirma Cordeiro.
A entrevista com Priscilla Cordeiro é de Caroline Oliveira, publicada por Brasil de Fato, 15-07-2022.
Em quais questões a efetivação do Auxílio Brasil e sua extensão esbarram?
O programa foi lançado com um completo vazio informacional tanto para população quanto para os técnicos. Então quem está nos equipamentos da assistência também tem sido vítima desse vazio informacional, desse apagão de dados, dessa falta de transparência do governo federal.
Tanto é que os técnicos não receberam capacitação, informe, instrução normativa, nada que direcionasse o trabalho e o atendimento à população. Isso tem contribuído para essa execução desastrosa que tem sido do Auxílio Brasil.
Foi na mudança do Bolsa Família para o Auxílio Brasil que houve uma intensificação do sucateamento da assistência social, porque nessa mudança criou-se uma lacuna de orientações, normativas e fluxos. A gente não sabe quais são os critérios do Auxílio Brasil. É extremamente obscura a sua operacionalização, inclusive para nós técnicos. Então isso se reflete no atendimento precário.
Além disso, tem uma questão estrutural. Os CRAS passaram a ser muito mais demandados. Desde a pandemia, os CRAS do Brasil inteiro têm amanhecido abarrotados de pessoas em busca de benefícios eventuais, mas também em busca de inscrição no Cadastro Único.
Isso acontece no momento em que esses CRAS estão sucateados, sem recursos humanos suficientes, extremamente precários do ponto de vista da estrutura, e colocando a população e os trabalhadores em condições aviltantes. É muito desgastante trabalhar hoje na assistência, porque significa lidar com um recorte da realidade muito cruel e sob condições de trabalho muito precárias.
Como os técnicos e os assistentes sociais têm feito para trabalhar nessas condições?
O Ministério da Cidadania não tem nenhuma cartilha de orientação, não tem nenhum instrumento que direcione o trabalho na ponta. O que os técnicos têm feito é se informado através do que sai na mídia. O que é extremamente confuso. Afinal, o governo uma hora diz uma coisa, outra hora diz outra.
O governo não tem deixado transparente a quantidade de pessoas que estão na fila aguardando o recebimento do Auxílio Brasil. O Brasil de Fato solicitou essas informações por meio da Lei de Acesso à Informação, mas até o momento não houve um retorno. Vocês têm alguma informação sobre isso?
A falácia que o governo divulgou com o lançamento do Auxílio Brasil era a de que ia acabar com a fila do Bolsa Família. Na verdade, não só não acabou como aumentou a fila de pessoas esperando esse benefício. Dados indicam em torno de cinco milhões de pessoas aguardando atualmente na fila. Mas a gente também não tem muita fidedignidade nessas informações, porque não existe transparência.
O fato é que esse programa foi lançado para, digamos, corrigir as falhas do Bolsa Família, mas na verdade veio de uma forma extremamente desorganizada e desarticulada em relação ao Sistema Único de Assistência Social. É um benefício que cai de paraquedas, não tem uma fonte de receita segura, tanto é que o próprio governo diz que em dezembro acaba, porque não tem uma fonte de financiamento regulamentada.
O Auxílio Brasil também derrubou as condicionantes que existiam no Bolsa Família que integravam os serviços oferecidos pela assistência social a um único programa, o que fragiliza essa rede assistencial. Isso também é um fator de sucateamento da assistência hoje no país?
Isso. Diferentemente do Bolsa Família, o Auxílio Brasil não articula com outras políticas, ou seja, a intersetorialidade é ferida de morte. O Bolsa Família tinha uma articulação com a saúde e com a educação, através das condicionalidades, o que fazia com que esse usuário transitasse por essas políticas da assistência, de modo que essas políticas estavam ali conversando e dialogando para a efetivação de direitos. Com o Auxílio Brasil, não.
Esse programa não passou por nenhuma instância deliberativa da assistência. Ele não passou pelo Conselho Nacional, ele não passou pelas câmeras de discussão, que são instâncias caras para o controle social na assistência.
A que se deve a fila do Auxílio Brasil, que segundo a Confederação Nacional dos Municípios, chega a quase 2,8 milhões de famílias?
Justamente a esta desorganização na implementação, de fazer chegar o Auxílio Brasil às pessoas. Há uma confusão na operacionalização muito grande e que é, para mim, um reflexo muito evidente da falta de transparência desse governo e da falta de participação no processo de elaboração.
Eu digo que a falta de informação é um projeto político. Não informar e não ser transparente tem aí um propósito político de não democratizar o acesso. Foi uma decisão deliberada ali do Ministério da Economia com forte viés eleitoreiro. Bolsonaro lança esse programa no momento em que a popularidade dele começa a cair.
E qual é a situação dos CRAS hoje em termos quantitativos? O governo vem fechando CRAS ao longo desses anos?
Esses dados eram sistematicamente coletados através de um instrumento chamado Censo Suas, hospedado na página do antigo Ministério do Desenvolvimento Social. Todo ano esse Censo Suas fazia uma radiografia do que era o Suas no Brasil.
No Brasil não tinha nenhum município que não tivesse CRAS. A gente tinha ali por volta de 8.700 CRAS espalhados por todo o Brasil. Já não pode ser dito que esses dados são a realidade, porque o governo não tem levado a cabo a sistematização do Censo Suas, que era um momento de reconhecer como estava o andamento da assistência, como os equipamentos estavam funcionando. Eles não têm feito isso, assim como não têm feito o Censo e o PNAD.
Então, há hoje inclusive um desconhecimento de como está a realidade. O que a gente tem é uma realidade empírica de precarização e sucateamento que grita. Já se vislumbra fechamento e redução de serviços.
Para ter noção, existia, antigamente, a Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, no Ministério do Desenvolvimento Social, que era exatamente onde vocês, jornalistas, por exemplo, podiam consultar a página e ter essas informações sobre o quanto está sendo repassado para cada município, de como tem sido gasto esse orçamento, de como está a realidade de cada região. Mas essa secretaria foi a primeira secretaria a ser desativada na época de Temer ainda.
Há aí um processo estruturado de desmonte dessa política para voltar àquela ideia de uma política assistencialista e campanhista, de forma pontual, focalizada, e não como um serviço, uma política pública de direito ofertada de modo contínuo, independente de quem esteja no governo.
E aí o aumento do Auxílio Brasil de R$ 400 de R$ 600 também vai esbarrar nessa desorganização para efetivar o direito, certo?
Isso. A operacionalização está sendo extremamente prejudicada por conta dessa desorganização e por ser um programa que corre por fora do Suas, sem ter o serviço articulado, sem ter o engajamento dos municípios nessa operacionalização. Diferentemente do Bolsa Família, em que os municípios já estavam muito bem situados na sua execução e na sua implementação.
O Auxílio Brasil encontra municípios com os CRAS sucateados ou municípios até com o número de CRAS insuficientes. Então o Bolsonaro vai abrir a torneira dos cofres públicos com o interesse eleitoreiro, mas vai esbarrar nesse gargalo operacional, por conta desse desmonte, dessa desarticulação e desse desfinanciamento.
Agora a gente está vendo o quanto foi prejudicial ter, por exemplo, uma equipe de CRAS com dois técnicos de nível superior e dois cadastradores para atender uma média de 200 famílias por dia. Hoje, a média é de 200 pessoas por fila de CRAS em município de grande porte. Como é que dois cadastradores do CadÚnico vão dar conta disso? Você atende ali de forma muito prejudicada 50 pessoas por dia.
Esse dado é do Censo Suas?
Isso. E CRAS de município com maior porte tem até 5 cadastradores. Mas a média é entre dois a cinco.
Os recursos que vão para o CRAS são federais?
É, mas tem recursos próprios dos municípios, só que municípios de pequeno porte vivem basicamente do repasse federal, do repasse do Fundo Nacional de Assistência Social direto para o fundo municipal.
Por exemplo, eu sou trabalhadora de um município de grande porte. Então a gente recebe fundo do fundo nacional, mas a gente tem recursos próprios aplicados na assistência. Mas isso é uma realidade de município de grande porte e de metrópoles. Mas em um universo de 5.575 municípios brasileiros, 80% vive dependendo do orçamento federal.
E qual é o prejuízo desse desmonte ao Cadastro Único, que é uma ferramenta importante de mapeamento das pessoas mais pobres do país e suas necessidades?
O Cadastro Único é um uma base de dados importantíssima, mas é um questionário longo, que tenta apreender a realidade socioeconômica da família nas miudezas. Então, por exemplo, tem informações sobre questões de segurança alimentar, saúde, renda, não é um questionário de rápido preenchimento.
O CadÚnico, inclusive, esteve sob ameaça nesse governo. Eles fizeram um movimento de acabar com o preenchimento presencial, que passaria a ser online, o que é absolutamente surreal, porque estamos falando de uma população que não tem acesso à tecnologia.
Além disso, o CadÚnico tem a finalidade de identificar a realidade social para poder criar outras políticas públicas, mas o governo federal não tem interesse. Eles querem aquele preenchimento como foi muito no modelo do auxílio emergencial, que era aquele preenchimento expresso, somente no tocante à renda e feito por smartphone.
E aí eles estão de alguma forma tensionando para que esse modelo se aplique no CadÚnico. E qual o prejuízo disso? É no atendimento face a face que a gente identifica inclusive outras demandas da população e pode encaminhar para assistente social, psicóloga e pedagoga, para a equipe técnica do CRAS trabalhar outras vulnerabilidades.
E aí, com o sucateamento do CRAS, o CadÚnico também passa por esse processo de desmonte?
O preenchimento é feito a toque de caixa e despreza todas as questões que são estruturantes nas famílias que vão acessar aquele benefício. É preenchido a toque de caixa de maneira superficializada e limita o acesso a outras políticas.
E como funciona esse preenchimento? Quem são os responsáveis por isso?
Quem preenche o Cadastro Único são os cadastradores de nível médio que passam por uma capacitação. Mas esses cadastradores estão vinculados a uma equipe técnica de nível superior composta por assistente sociais, psicólogos, pedagogos, sociólogos. O cadastrador, a depender da situação do indivíduo que chega, orienta essa pessoa a buscar o técnico. E aí a equipe técnica entra em ação.
Quantas pessoas não chegam no CRAS para se inscrever no CadÚnico e dizem que não têm o que comer naquele dia? E aí a equipe técnica entra em ação para poder garantir algum benefício para cessar a insegurança alimentar.
É por isso, por exemplo, que é estratégico o preenchimento do CadÚnico estar dentro dos CRAS, porque há essa interface e o acompanhamento da vulnerabilidade e da satisfação das necessidades.
É uma interface que já estava prevista e muito bem estruturada por meio do Bolsa Família. Isso era muito bem alinhavado quando era o programa Bolsa Família. As crianças que tinham baixa frequência escolar, por exemplo, já eram acompanhadas através de um sistema de condicionalidade. Então perceba que não era só uma questão de preenchimento do CadÚnico.
E, por fim, hoje parte do processo do Auxílio Brasil é todo bancarizado, visto que a Caixa Econômica Federal é o ambiente onde o benefício é processado, como começou com o auxílio emergencial. Qual é o simbolismo disso?
É um benefício que deveria ser assistencial e está sendo vendido como um produto financeiro por banco. Tanto é que agora já está sendo divulgado empréstimos para beneficiários do Auxílio Brasil. Então é um claro processo de mercadorização de um direito social, que é o direito à renda. Isso é muito grave.
O que a gente está entregando para a população é um direito vestido de mercadoria, de produto financeiro. É um trauma na execução na consolidação da política, que vai demorar aí no mínimo mais 10 a 20 anos para se reerguer.