Documentário mostra a luta de lideranças indígenas para proteger a floresta amazônica

Foto: Romerito Pontes | Flickr CC

12 Julho 2022

 

 

A reportagem é de Sibélia Zanon, publicada por Mongabay, 08-07-2022.

 

Num fim de tarde, os cineastas seguiram com Kátia Silene, cacique do povo Akrãtikatêjê, até o único trecho não duplicado da Estrada de Ferro Carajás, que corta a Terra Indígena Mãe Maria, no município de Bom Jesus do Tocantins, Pará. Pensavam estar perto, mas ainda percorreriam 40 minutos em chão de terra: a Amazônia é território de lonjuras. Chegaram às margens da ferrovia, com extensão de quase mil quilômetros, no exato momento em que o pôr do sol iluminava os trilhos historicamente conflituosos da mineradora Vale. Marcos e Bruno queriam filmar a passagem de um dos maiores trens de carga do mundo, com seus 330 vagões e 3,3 quilômetros de comprimento, transportando minério de ferro desde a Serra de Carajás, no Pará, até o terminal portuário de exportação de Ponta da Madeira, no Maranhão. O clima era pesado, carregava o histórico das lutas indígenas contra a duplicação da ferrovia.

 

Foi assim que Marcos Colón, diretor de Beyond Fordlândia, e Bruno Malheiro, autor de Horizontes Amazônicos: para repensar o Brasil e o mundo, descreveram a filmagem de uma das cenas mais marcantes do documentário Pisar Suavemente na Terra, que teve pré-estreia em junho. Marcos Colón dirige o filme e, junto com Bruno Malheiro, assina o roteiro.

 

Com o objetivo de apontar saídas para a destruição da floresta, Pisar Suavemente na Terra traz três Amazônias diferentes, contadas sob a perspectiva das lideranças indígenas: a cacique Kátia Silene Akrãtikatêjê, o cacique Manoel Munduruku e José Manuyama, membro do Comitê de Defesa da Água na Amazônia peruana. O filósofo Ailton Krenak costura reflexões que fazem a linha condutora da narrativa.

 

Em conversa com a Mongabay, os cineastas contam que as vozes desses personagens gritam, representando uma multidão de sussurros da floresta.

 

Cartaz do filme (Foto: Divulgação)

 

Marcos Colón: A motivação surgiu durante a pandemia, quando a gente via tantas situações recorrentes na Amazônia. O garimpo não parou. As lojas e o comércio fecharam e o garimpo continuava recrutando enquanto as pessoas não tinham trabalho. Isso era muito angustiante. Como pensadores, a gente queria dar voz, trazer para a superfície do debate essas vozes potentes que a gente tinha na mão ali naquele momento. E trazer, através dessa viagem imagética, uma outra visão de mundo, outros possíveis, outros horizontes de perspectiva.

 

Bruno Malheiro: Com a expansão capitalista, começa essa expansão do esquecimento de pessoas que estão aqui, que sempre estiveram aqui. O Brasil é um país inventado por uma leitura homogênea de nação. Eu posso falar porque falo a partir da Amazônia também. Geralmente os nossos discursos não ganham circularidade porque determinados lugares já têm o privilegio de falar. Tem lugares em que um sussurro é um grito, e tem lugares em que um grito não vira nem um sussurro. Então, a gente está querendo quebrar essa geopolítica, mostrar que esses gritos, que não se transformaram nem em sussurro para a imagem que a gente tem de Brasil, para a imagem que a gente tem de nação, precisam ser escutados.

 

O que a cacique Kátia Silene Akrãtikatêjê conta sobre os impactos da mineração e os desafios enfrentados na TI Mãe Maria, no Pará?

 

Bruno Malheiro: O primeiro impacto que ela coloca é que, quando a mineração entra no território indígena, entra junto com ela toda a dinâmica da mercadoria porque há um impacto da mineração e a mineradora precisa repassar recursos para as comunidades. Segundo Kátia, esses recursos acabam dividindo a comunidade. Uma segunda coisa é o atravessamento do trem no meio do corpo da TI Mãe Maria, que é uma Terra Indígena extremamente reduzida já. E quando uma ferrovia atravessa essa TI, a caça e toda a dinâmica do cotidiano deles é impactada. Além do impacto da ferrovia, ela cita o Linhão (linha de transmissão de energia de Tucuruí), a estrada (rodovia BR-222), ou seja, todas essas estruturas do capitalismo atravessam a TI Mãe Maria. Os indígenas se colocam sempre em contraponto a essa lógica. E a Kátia expressa muito bem isso porque ela tenta ter autonomia: autonomia diante da Vale, autonomia diante do mundo. Ela quer produzir sua própria vida tendo autonomia dentro do seu território. Para isso, ela precisa ter território.

 

Marcos Colón: No conceito de autonomia que a Kátia adota perante todas as invasões capitalistas na região, ela pode dizer para a Vale: eu não preciso do teu dinheiro. O que a Kátia propõe é uma outra perspectiva de como lidar com essas invasões. Eu acho que é bastante potente e pode ser libertador no sentido de permitir que outros povos indígenas possam seguir esse mesmo convite de autonomia.

 

Filmagens do documentário Pisar Suavemente na Terra (Foto: Divulgação)

 

Na filmagem com José Manuyama, do Comitê de Defesa da Água, em Iquitos, no Peru, que danos observaram que o garimpo e a atividade petroleira causam ao Rio Nanay, afluente do Rio Amazonas?

 

Marcos Colón: O impacto no Rio Nanay é enorme. Durante a pandemia ficou muito mais exposta essa degradação porque o garimpo não parou. Não é somente a questão das águas em si, é todo o impacto socioambiental com o processo de invasão com as dragas, a mineração e a contaminação do mercúrio. Iquitos é uma ilha que está rodeada de água e depende disso para o transporte e para a sobrevivência. A luta do Pepe (José Manuyama) na região é para trazer visibilidade a essas questões.

 

Bruno Malheiro: Do ponto de vista das águas, o que a gente tem como lógica no capitalismo na Amazônia é uma dinâmica absurda de contaminação por mercúrio que tem causado problemas seríssimos entre vários povos indígenas. A dinâmica da expansão do garimpo expressa uma lógica de apropriação de recursos que não se liga necessariamente ao pequeno garimpeiro, mas se liga a uma engrenagem de destruição mesmo, que é coordenada por esses grandes centros de cotação do ouro, por essas grandes agências que regulam os garimpos ilegais. O que o Pepe expressa, essa contaminação das águas pelo mercúrio e pelo petróleo, é o que está se generalizando pela Amazônia. A gente escolheu contaminar a água como forma de desenvolvimento. Toda a dinâmica hídrica recorta os personagens (do filme) porque ela recorta a nossa vida. Não tem vida sem água.

 

Como foi o encontro com o cacique Manoel na TI Munduruku, no Pará?

 

Marcos Colón: Eu contatei o cacique Manoel, nós queríamos fazer uma visita e ele estava no psicólogo. O cacique estava saindo de uma sessão de terapia porque a terra dele está sendo invadida. Ele está sendo anulado no próprio território por se opor ao avanço da soja dentro da Terra Indígena e por ter membros da própria aldeia, do próprio povo, que são favoráveis ao avanço da soja na região. Parte dos Munduruku se venderam para os sojeiros, esse é o conflito que o cacique tem enfrentado.

 

Bruno Malheiro: Todas as áreas que o filme retrata são áreas de sedução do capital, áreas em que os processos capitalistas estão muito próximos das pessoas. Essas lutas precisam ser contadas por aqueles que conseguem lidar com elas sem sair de um projeto que coloque a vida no centro – e não a morte gerada pelos projetos do capital. Isso está no Manoel, na Kátia, no Krenak e no Pepe também.

 

Cena do filme Pisar Suavemente na Terra (Foto: Divulgação)

 

Como foi presenciar o desmatamento promovido por sojeiros dentro da TI Munduruku e qual o impacto da monocultura de soja na região?

 

Marcos Colón: A gente colocou o drone e viu toda a expansão da soja na região. Por volta das 5 horas da manhã, fomos por um caminho alternativo para chegar na derrubada. Aí, a gente pegou o amanhecer, aquele mormaço. A imagem é muito poética, aquelas nuvens, aquele deserto, tudo derrubado. Pegamos o drone, tinha marcas dos pneus ali frescas. Queria gravar com eles (indígenas) no meio da derrubada, mas eles não quiseram sair do carro. Eu já tinha outras experiências de levar corrida de sojeiros. E lá os sojeiros estão muito empoderados. Por conta da própria agenda do governo, todo mundo se sente empoderado. A tessitura do momento e do lugar, toda aquela composição, era uma tessitura de guerra, tinha passado ali a morte.

 

Bruno Malheiro: O primeiro ciclo da soja é o gado. Geralmente foram fazendas de gado que se transformaram em monocultivos de soja na região do Tapajós, em Santarém. Isso é muito claro com a implantação do porto da Cargill (em Santarém). Essa expansão desenfreada desse monocultivo se vende aos quatro ventos como carbono zero, mas no final das contas tem a sua dinâmica concreta na invasão de Terra Indígena, como as imagens mostram. Então, a gente quer falar das engrenagens pelas quais esse submundo capitalista na Amazônia se expressa – seja pela soja, seja pelo gado, seja pela mineração, seja pelo garimpo. Basicamente, na Amazônia, capitalismo é transformar bem comum em mercadoria. Essa transformação é extremamente violenta. Não tem capitalismo na Amazônia sem violência, sem estado autoritário. Mesmo nas épocas de governos progressistas, a gente foi capaz de produzir Belo Monte.

 

De onde vem a inspiração do título Pisar Suavemente na Terra?

 

Bruno Malheiro: Essa ideia de pisar suavemente na Terra é porque a gente passa por um sistema vivo que está aqui com a gente e sem a gente. A fala do Krenak mostra isso. Nós não somos a espécie central para esse equilíbrio da Terra. Tem outras espécies que têm mais importância do que nós para a Terra continuar. Por isso, a gente tem que pisar suavemente na Terra, no sentido de respeitar essa engrenagem desse sistema vivo, desse sistema animado. As falas da Kátia, do Pepe mostram que a natureza tem intenções.

 

Marcos Colón: O Krenak faz essa solda imagética, textual, filosófica. Ele diz que o problema todo é que nesse mundo capitalista o planeta é um bolo, só que uma hora esse bolo da festa vai acabar e esse bolo é o planeta. Então, é preciso a gente aprender a pisar suavemente na Terra. É por aí que ele nos conduziu a esse título do filme.

 

Cena do filme Pisar Suavemente na Terra (Foto: Divulgação)

 

Qual o papel do documentário e da arte no atual contexto socioambiental brasileiro?

 

Marcos Colón: Quando você olha para um trabalho acadêmico, a gente sabe que tem um impacto para quem lê, mas ao transformar toda essa narrativa em arte, em imagens, você tem uma dimensão de alcance muito mais abrangente. O papel é dar visibilidade, dar potência, dar voz a esses atores que muitas vezes não têm suas vozes e petições acatadas. Trazer para a superfície do debate essas omissões com a intenção de gerar políticas públicas mais democráticas, humanamente mais decentes.

 

Bruno Malheiro: A arte permite que a gente se comprometa com as narrativas. Quando a gente faz um documentário, a gente não tem o pudor de dizer que ele tem um lado, ele precisa ter um lado, ele precisa ter uma cara, um sentido. A arte te dá essa liberdade de se posicionar diante de uma realidade. Só que se posicionar de uma maneira poética, fazendo com que aquilo que tu fale também projete múltiplas interpretações para além daquilo que tu pensou. Então, o cinema precisa trazer aquilo que incomoda, aquilo que não pode ser contado, aquilo que nunca foi contado.

 

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