06 Julho 2022
“A Suprema Corte dos EUA está ajudando a destruir nosso clima. Mas a gota d'água, para mim, foi uma decisão menor”, escreve o jornalista e ambientalista britânico George Monbiot, em artigo publicado por The Guardian, 06-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
"Quando comecei a trabalhar como jornalista ambiental em 1985, - testemunha o jornalista - sabia que lutaria contra pessoas com interesse financeiro em práticas destrutivas. Mas nunca imaginei que um dia enfrentaríamos o que parece ser um compromisso ideológico de destruir a vida na Terra. O governo do Reino Unido e a Suprema Corte dos EUA parecem estar dispostos a destruir nossos sistemas de suporte à vida."
Parece o jogo final. Nos EUA, na semana passada, a terceira decisão perversa e altamente partidária da Suprema Corte em poucos dias tornou quase impossíveis os esforços americanos para evitar o colapso climático. Decidindo a favor do estado de Virgínia Ocidental, o tribunal decidiu que a Agência de Proteção Ambiental não tem o direito de restringir as emissões de dióxido de carbono das usinas de energia.
No dia anterior, no Reino Unido, o comitê de mudança climática do governo relatou uma falha “chocante” do governo de Boris Johnson em cumprir suas metas climáticas. Tão estúpidas e perversas são suas políticas em questões como economia de energia que é difícil ver isso como algo além de falha por projeto. No dia da decisão da Suprema Corte, o governo do Reino Unido também anunciou que pretendia revogar a lei que protege os locais de vida selvagem mais importantes do Reino Unido.
Mas a gota d’água, para mim, foi uma decisão menor. Após duas décadas de políticas desastrosas que transformaram seus rios em esgotos a céu aberto, o conselho do condado de Herefordshire, após uma mudança dos conservadores para o controle independente, finalmente fez a coisa certa. Apelou ao governo para criar uma zona de proteção da água, defendendo o rio Wye contra a poluição, levando-o ao colapso ecológico completo. Mas em uma carta publicada na semana passada, a ministra do Meio Ambiente do Reino Unido, Rebecca Pow, recusou a permissão, alegando que “imporia novas e distintas obrigações regulatórias aos agricultores e empresas dentro da bacia”. Este é, naturalmente, o ponto.
É a mesquinhez da decisão que a torna tão chocante. Mesmo quando o custo para o governo é pequeno, ele parece determinado a destruir tudo de bom e valioso neste país. É como se, quando os ministros vão para a cama, eles se perguntassem: “O que eu fiz para tornar o Reino Unido um lugar pior hoje?”
Exatamente no ponto em que precisamos de um esforço global coordenado para escapar de nossas crises existenciais – colapso climático, colapso ecológico, a maré crescente de produtos químicos sintéticos, uma emergência alimentar global crescente – aqueles que possuem o poder descarrilham fios de arame farpado na saída.
Quando comecei a trabalhar como jornalista ambiental em 1985, sabia que lutaria contra pessoas com interesse financeiro em práticas destrutivas. Mas nunca imaginei que um dia enfrentaríamos o que parece ser um compromisso ideológico de destruir a vida na Terra. O governo do Reino Unido e a Suprema Corte dos EUA parecem estar dispostos a destruir nossos sistemas de suporte à vida.
A decisão da Suprema Corte não foi aleatória nem baseada em princípios legais estabelecidos. Surgiu de um programa concertado para substituir a democracia nos EUA pela ditadura judicial.
Como documentou o senador Sheldon Whitehouse, centenas de milhões de dólares de origens desconhecidas foram despejados na nomeação e confirmação dos três juízes nomeados para o tribunal por Donald Trump. Entre os grupos que lideravam essas campanhas estava o Americans for Prosperity, criado pelos irmãos Koch: magnatas do petróleo com um longo histórico de financiamento de causas de direita. Como mostra uma investigação da Earth Uprising, há uma forte correlação entre a quantidade de dinheiro de petróleo e gás que os senadores dos EUA receberam e sua aprovação das indicações de Trump para a Suprema Corte.
Uma vez instalados os juízes favorecidos, as mesmas redes passaram a usar seu poder financeiro para orientar suas decisões. Eles fazem isso por meio de “amicus briefs”: notas de aconselhamento ao tribunal apoiando a posição de um querelante. O processo judicial não deve ser influenciado pela pressão política, mas os amicus briefs se tornaram uma das mais poderosas ferramentas de lobby. Como aponta Whitehouse, os financiadores dessas notas “não são apenas ‘amigos da corte’ (‘amicus curiae’) – em muitos casos, eles são literalmente amigos dos juízes que colocaram na corte”.
Enquanto alguns oligarcas fazem lobby dentro do sistema judicial, outros operam com grande efeito fora dele, distorcendo a percepção pública sobre tais decisões por meio de uma enxurrada de propaganda na mídia. Ninguém, sem dúvida, fez mais para impedir uma ação ambiental efetiva do que Rupert Murdoch.
Nesse caso, a Suprema Corte se desviou muito além de seu mandato de interpretar a lei, para o território do Executivo e do Legislativo: fazer a lei. Está impondo políticas que nunca sobreviveriam ao escrutínio democrático, se fossem postas em votação. Ao assumir o controle do poder regulatório, abre um precedente que pode impedir quase qualquer decisão democrática.
Tudo isso pode parecer incompreensível. Por que alguém iria querer destruir o mundo dos vivos? Certamente até os bilionários querem um planeta habitável e bonito, não? Eles não gostam de mergulhar com snorkel em recifes de corais, pescar salmão em rios cristalinos, esquiar em montanhas nevadas? Sofremos de uma profunda incompreensão de por que essas pessoas agem como agem. Não conseguimos distinguir preferências de interesses, e interesses de poder. É difícil para aqueles de nós que não desejam ter poder sobre os outros entender as pessoas que o fazem. Assim, ficamos perplexos com as decisões que eles tomam e as atribuímos a outras causas improváveis. Porque não os entendemos, somos mais facilmente manipulados.
A mídia muitas vezes representa os interesses dos políticos como se fossem meras preferências políticas. Muito raramente o lobby e o financiamento político por trás de uma decisão são explicados nas notícias. Os conservadores não permitem que as pecuárias intensivas e as estações de tratamento de esgoto joguem sujeira nos rios porque gostam de poluição. Fazem isso em nome dos poderosos interesses a quem se sentem obrigados, como as companhias de água e seus acionistas, os lobbies do agronegócio e a imprensa bilionária.
Mas mesmo os interesses financeiros não explicam totalmente o que está acontecendo. Os oligarcas que procuram acabar com a democracia dos EUA foram muito além do ponto de atender apenas ao seu patrimônio líquido. Não é mais sobre dinheiro para eles. É sobre poder bruto: sobre ver o mundo se curvar diante deles. Por essa onda de poder, eles perderiam a Terra.
Todos esses casos expõem a mesma vulnerabilidade política: a facilidade com que a democracia é esmagada pelo poder do dinheiro. Não podemos proteger o mundo dos vivos, ou os direitos reprodutivos das mulheres, ou qualquer outra coisa que valorizemos até que tiremos o dinheiro da política e desfaçamos os impérios da mídia que debocham do consentimento político informado.
Desde 1985, me disseram que não temos tempo para mudar o sistema: devemos nos concentrar apenas em questões isoladas. Mas nunca tivemos tempo de não mudar o sistema. Na verdade, devido à maneira como as atitudes sociais podem mudar repentinamente, a mudança do sistema pode acontecer muito mais rápido do que o etapismo. Até que mudemos nossos sistemas políticos, impossibilitando que os ricos comprem as decisões que desejam, perderemos não apenas casos individuais. Perderemos tudo.
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É democracia x plutocracia: este é o jogo final para o nosso planeta. Artigo de George Monbiot - Instituto Humanitas Unisinos - IHU