A proposta do Legislativo proíbe a destruição de bens apreendidos nas fiscalizações de crimes ambientais dentro de unidades de conservação e territórios.
A reportagem é de Yara Walker, publicada por Amazônia Real, 04-07-2022.
Os deputados estaduais de Roraima aprovaram um novo Projeto de Lei que autoriza o garimpo ilegal em terras indígenas no estado. De autoria do deputado George Melo (Podemos), o PL 233/2022 deve ser sancionado pelo governador Antonio Denarium (Progressistas), que é a favor da mineração nos territórios. Lideranças indígenas ouvidas pela Amazônia Real, disseram que os deputados querem “tumultuar” a pauta da mineração ao legislar em uma agenda que é da esfera federal.
Aprovado no último dia 27 pela Assembleia Legislativa de Roraima, o PL proíbe que órgãos ambientais de fiscalização e a Polícia Militar destruam ou inutilizem bens apreendidos nas operações de fiscalização. O texto não menciona a palavra “garimpo”, mas George Melo não esconde em manifestações públicas que seu objetivo é atender a demanda dos garimpeiros que atuam ilegalmente dentro da Terra Indígena Yanomami.
Edinho Macuxi, presidente do Conselho Indígena de Roraima (CIR), afirma que, se for sancionado, o PL vai ser questionado na justiça, como aconteceu no início de 2021, quando o governador Denarium liberou uso de mercúrio no garimpo. A medida foi derrubada no STF, primeiro por meio de uma liminar do ministro Alexandre de Moraes, e depois a decisão foi referendada pela Corte, acatando uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade.
“Uma lei estadual não pode prevalecer a uma questão federal. Se for aprovado (o PL) vamos novamente entrar na Justiça contra esse projeto que é inconstitucional. O Governo do Estado não pode intervir em terras indígenas. Eles (deputados) dizem que não pode destruir objetos apreendidos em terras indígenas porque é ilegal, porque é crime. Ilegal e crime é o que fazem em terra indígena, principalmente na terra dos Yanomami, que é morte, destruição ambiental e contaminação de água”, disse Edinho Macuxi.
“O Governo Estadual queria legalizar o garimpo com uso de mercúrio sem controle e, agora, novamente o Legislativo continua alimentando isso”, acrescentou.
Na reportagem “Ouro do Sangue Yanomami”, a Amazônia Real mostrou que o garimpo ilegal destrói a Floresta Amazônica de forma pulverizada e feroz, na quarta corrida pelo ouro na região.
Para o vice-presidente da Hutukara Yanomami Associação, Dário Kopenawa, os parlamentares querem favorecer a entrada dos invasores nas terras indígenas, especialmente nas áreas da TI Yanomami, que nos últimos anos viu a presença de garimpo ilegal explodir com força sem precedentes. Como resultado, os Yanomami assistem a cada ano o aumento da destruição da floresta, contaminação de rios, abuso sexual de mulheres, aliciamento e assassinatos de indígenas. O território também tem sido alvo de criminosos ligados a facções, como é o do PCC.
“São terras demarcadas pela lei brasileira no artigo 231 da Constituição de 1998. Esses maquinários destroem as florestas, os rios, prejudicam o subsolo e a vida do povo Yanomami e Yekuana. Eles exploram a riqueza do território homologado. A Constituição deixa claro que é proibido entrar em local demarcado. Esses deputados querem ganhar recursos através do garimpo ilegal em terras indígenas e esse PL é insconstitucional, não tem cabimento e causa danos ambientais. É uma armadilha e é inconstitucional”, disse.
Enock Taurepang, vice-coordenador do CIR, afirma que, para as lideranças, não é surpresa a aprovação do projeto. Ele explica que os parlamentares são anti-indígenas e a favor do garimpo, o que o vice-coordenador considera um ato criminoso. Conforme Enock, o garimpo só se mantém de pé por causa de empresários e de políticos favoráveis à exploração de ouro nas terras indígenas.
“Eles lucram milhões. A partir do momento que há ação de destruição de maquinários, há prejuízo para essas pessoas e é uma forma de coibir com eficácia o garimpo. Isso é preocupante para onde nosso Estado está caminhando. Eles estão apoiando o crime, algo que é errado. Eles deveriam ser presos e pagar por isso, pois o que estão fazendo é crime contra a população. Erroneamente, muitos apoiam o garimpo, que não é a saída para o Estado, e sim a destruição do estado”, destacou.
A liderança indígena Julio Yekwana reitera que a aprovação do PL e a eventual sanção do governo de Roraima será imediatamente questionada. Segundo Julio, o PL é apenas mais um meio que os parlamentares encontraram para legitimar a invasão dos territórios indígenas pelos garimpeiros.
“Eles se sentem legalizados e isso faz com o que o governo ganhe votos e os deputados também ganham com isso. Eles querem atrapalhar a fiscalização. Isso traz prejuízo, mas não impede que esses empresários continuem esse crime contra a natureza e contra nós. Estamos sofrendo e eles [empresários] não sofrem pois moram na cidade. Não gostamos dessa invasão. Esses invasores têm que ser punidos e tem que respeitar a lei. Os deputados teriam que cuidar e proteger os povos e não o contrário. Eles roubam nossos recursos naturais e alguns deputados são ladrões”, disse.
O advogado e assessor jurídico do CIR Ivo Cípio, do povo Macuxi, reforça que a medida é inconstitucional e busca tumultuar a discussão. Ele afirma que as lideranças devem alertar as comunidades para que comuniquem imediatamente caso ocorram invasões às comunidades. Além disso, também devem pedir ao MPF e demais órgãos que questionem judicialmente o PL.
Na opinião de Ivo Cípio, a Assembleia Legislativa de Roraima mostra que não tem compromisso com a proteção da Amazônia e dos povos indígenas. Para ele, o legislativo mais uma vez extrapola sua atribuição constitucional querendo entrar nos temas que são de competência da União.
“Significa mais invasão, mais morte e destruição. Destruição da floresta, das águas e com incentivo do Legislativo. E isso aumenta a incidência de crimes, principalmente aliciamento de menores, meninas, estupro e outras violências com as mulheres e coloca as populações em extrema vulnerabilidade. O que precisa ser feito urgentemente é uma ação que questione a ilegalidade e inconstitucionalidade do PL”.
Procurado pela reportagem, o Ministério Público Federal (MPF) em Roraima informou que vai adotar medidas cabíveis caso o PL seja sancionado pelo Poder Executivo. Em nota, o órgão diz, com base em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que “lei estadual não pode esvaziar procedimento previsto em legislação nacional a pretexto de atender interesse regional”. Segundo o MPF, a Assembleia Legislativa de Roraima incide, mais uma vez, em inconstitucionalidade flagrante.
A destruição de equipamentos que operam ilegalmente está prevista em duas legislações brasileiras, a Lei 9.605/1998 e o Decreto 6.514/2008. Segundo o MPF, ambas foram reconhecidas pelo STF como imprescindíveis para o enfrentamento do garimpo ilegal.
A Polícia Federal (PF) informou à Amazônia Real que, em 2022, durante operações em terras indígenas em Roraima, foram destruídos ou inutilizados 10 barracos, 2 geradores, 17.500 litros de combustível de aviação (307 carotes de 50 litros) e 5.350 kg de cassiterita (107 sacos de 50 kg).
Já em 2021, foram mais de 150 motores, 63 geradores, 11 balsas e 5 jigues, aparelho que promove a concentração do minério e a limpeza do carvão. Além disso, houve apreensão de 17 armas, mais de 1,8 mil munições e 10 aeronaves. Ao todo, o bloqueio judicial foi de R$ 50 milhões em relação aos bens apreendidos.
Em um relatório divulgado em abril deste ano, a Hutukara Associação Yanomami (HAY) mostrou que o crime do garimpo ilegal impacta gravemente a principal fonte de alimento dos Yanomami, que é a caça. Os indígenas estão abandonando as roças e agora dependem dos garimpeiros para se alimentar. A relação, no entanto, é de absoluta desigualdade.
Conforme o relatório, a exploração do minério na TI é facilitada por uma rede de lavagem de dinheiro que envolve supermercados, postos de gasolina e restaurantes na capital Boa Vista (RR) e deu um salto de 46% em 2021.
O relatório traz também denúncias de aliciamento de jovens, abusos sexuais de meninas indígenas, contaminação por doenças sexualmente transmissíveis, desativação de postos de saúde e explosão dos casos de malária.
Após as denúncias expostas no relatório, em maio passado, as Comissões de Direitos Humanos do Senado Federal e da Câmara dos Deputados estiveram em Boa Vista, para investigar ameaças de garimpeiros a indígenas Yanomami e denúncia de estupro e morte de uma menina indígena.
Na ocasião, o deputado George Melo entrou em conflito com parlamentares e apoiou garimpeiros que protestavam contra a comitiva em frente à Assembleia de Roraima, demonstrando que eles não só têm força, como também aliados em Roraima e em Brasília.
George Melo reunido com garimpeiros na Assembleia de Roraima (Foto: AL-RR)
Procurado pela reportagem, o deputado George Melo apresentou, de forma confusa, uma relação de “trabalho” envolvendo “vizinhos” e “compadres”. Por isso, apresentou o PL para os casos de conflitos entre eles. Ele se referiu à Terra Indígena Yanomami como “no interior, principalmente nessas regiões onde há garimpo”.
“A gente sabe que há uma relação muito próxima dos vizinhos e muitos deles são ‘compadres’ um do outro e pedem máquina emprestada, um bem, um equipamento, e muitas vezes para comprar esse equipamento eles hipotecam a terra deles e ele empresta para trabalhar uma tarde na terra do compadre. Esse ‘compadre’ dele lá tem pista de avião e ele não sabia. Ele está ganhando dinheiro, quer fazer um açude e como está essa máquina trabalhando duas horas, uma hora, chega a Polícia Federal, Ibama e toca fogo nesse equipamento”, afirmou.
Segundo o deputado, se isso (a destruição) ocorrer, provavelmente, “duas desgraças vão acontecer para os dois”. “Se a máquina tivesse sido apreendida, é muito provável que o dono chegasse e falasse: ‘essa máquina é minha e emprestei’ e vai acontecer que vamos salvar famílias que estão prosperando no campo”, disse o deputado, que também defendeu que os próprios indígenas explorem o ouro.
“Eu sou a favor sim da garimpagem em terra indígena. Nos Estados Unidos, os índios lá vivem muito bem, eles exploram o ouro. Logicamente, tem que fazer um contrato com os indígenas para que o ouro seja retirado”, afirmou.
A mineração em reservas indígenas norte-americanas, que durante décadas foi imposta de forma unilateral entre os povos daquele país, vem sendo questionada nos últimos anos pelos nativos americanos, conforme levantamento feito pelo Observatório da Mineração.
O deputado também não vê problema em uma lei estadual incidir sobre área federal. “Já ouvi pessoas dizendo que não se pode uma lei federal ser ‘suplantada’ por uma estadual. Na questão do meio ambiente, as duas leis funcionam concomitantemente”, disse.
O governo de Roraima foi procurado para responder que decisão vai tomar sobre o PL, mas respondeu que ele está em análise pela Procuradoria Geral do Estado. Nas redes sociais, o deputado George Melo dá como certa a sanção. “O governador Antonio Denarium se posicionou e ressaltou, que não recuou da decisão de sancionar o projeto de lei de minha autoria o 233/2022”, disse.