04 Julho 2022
"A nova utopia é mínima, seu nome é antigo, chama-se humanidade. Humanidade tem dois significados muito diferentes: o conjunto dos seres humanos e sua natureza mais autêntica. Eu o assumo no segundo significado, argumentando que a nossa verdadeira natureza se realiza como livre inteligência que escolhe o bem agindo assim de maneira, justamente, humana. A nova utopia consiste em acreditar que, diante do imenso poder da tecnologia e da possibilidade de que ela modifique nosso corpo e nossa mente para uma metamorfose da humanidade em direção a uma desconhecida pós-humanidade, a humanidade, como inteligência livre e boa, será preservada."
O comentário é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 30-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Digo logo, para esclarecer, que minha tese consistirá em argumentar que o lugar de realização da utopia não deve mais ser buscado fora de nós, como acontecia com as antigas utopias, mas dentro de nós, na nossa interioridade, o único lugar onde às vezes se pode vislumbrar a ilha que não existe e que no imenso mar do ser nunca existirá. Vocês dirão: ver algo que não existe? Isso não é loucura? Talvez, mas daquela loucura que Erasmo de Rotterdam fez o elogio e que constitui precisamente a disposição da mente chamada utopia.
Utopia literalmente significa "não lugar".
Para entender o conceito, é preciso distinguir ideia de ideal, diferença que consiste no fato de que o ideal é uma ideia mais energia (ideal = ideia + energia) e, portanto, motiva a ação. Vocês podem encontrar pessoas que têm muitas ideias e nenhum ideal: vocês as ouvem, as admiram, mas permanecem frios. Vice-versa, vocês podem encontrar pessoas que têm ideias com valência ideal e, quando as ouvem, sentem afluir o calor vital e algo se move por dentro.
Bem, a utopia é um ideal, uma ideia dotada de energia. Eu a defino "ideia emotiva", no sentido literal da palavra emoção, do latim emoveo, "pôr em movimento". Mais precisamente, a utopia é o ideal cultivado por quem não se deixa bloquear pelo status quo. É claro: é preciso olhar a realidade de frente, mas quem cultiva a utopia não se resigna a extinguir sua luz interior confundindo como ilusão a tensão para o bem e a justiça. Aliás, partindo de algumas pessoas justas nas quais viu realizar-se essa tensão, o utopista sente que a verdadeira vida é aquela refletida por essas poucas pessoas luminosas, e não aquela da existência cinzenta da maioria. Como Heráclito certa vez declarou: "Para mim um único homem é dez mil, se ele for o melhor" (DK 22 B 49).
O utopista sabe igualmente bem, porém, que a transferência dessa luz para a totalidade da realidade não é possível e que, portanto, seu ideal nunca chegará a resplendecer completamente em um lugar concreto, mas permanecerá sempre "sem lugar", ou topos, utópico; sempre necessariamente "para além do ser", como apontou Platão, um dos primeiros e maiores utopistas.
O ser nunca será a plena realização do bem. E mesmo que um dia pudesse alcançá-lo, o preço pago ainda seria muito alto, pois nenhuma realização histórica justifica o mar de sangue derramado pela natureza e pela história.
No entanto, o utopista sente que o fato de que o ideal não possa ser plenamente realizado não o torna uma ilusão. Ele sente que a realidade mais verdadeira é dada pelo que não se pode ver e nunca se poderá ver, mas do qual ele não pode prescindir. Como escreveu Oscar Wilde: "Um mapa-mundi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras a que a Humanidade está sempre apontando" (The soul of Man Under Socialism, 1891).
Aqui há uma dialética perfeita: a utopia como não-lugar nunca estará no mapa do mundo; e, no entanto, se o mapa de alguma forma não a compreendesse, seria um fracasso, porque todos os seres humanos dignos desse nome procuram esta ilha e quando dão o seu melhor lá desembarcam. O que significa que o ser humano pode ser diferente do mundo. O que significa que nós, se cultivarmos o ideal do bem e da justiça, somos maiores que o mundo. O que significa que a meta de cada um de nós está além do mundo.
Exatamente como Wittgenstein escreveu: "A solução do enigma da vida no espaço e no tempo está além do espaço do tempo" (Tractatus logico-philosophicus). Acreditar que a nossa vida seja um enigma, que possa ter uma solução, e que esta, porém, esteja apenas para além do espaço e do tempo: isso é, genuinamente entendida, a utopia.
Mas qual é a nova utopia para o Ocidente? Temo que estejamos vivendo dias de que se falará no futuro retomando um famoso título de Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo. Lemos nesta obra: "O súdito ideal do regime totalitário não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas o indivíduo para quem não existe mais a distinção entre realidade e ficção, entre verdadeiro e falso." Não reconhecer mais a distinção básica entre realidade e ficção; confundir a realidade com a ficção e a ficção com a realidade mais verdadeira; estar completamente desconectado da realidade e completamente imerso no virtual: eis as condições ideais para o totalitarismo.
Hannah Arendt também escreveu estas outras palavras, hoje de desconcertante atualidade: “Nós, que vivemos a experiência das organizações totalitárias de massa, podemos afirmar que seu primeiro interesse é eliminar qualquer possibilidade de solidão. Não apenas as formas seculares de consciência, mas também aquelas religiosas são eliminadas quando não é mais garantido poder ficar um pouco a sós consigo mesmo. Um ser humano não pode manter sua própria consciência intacta se não puder dialogar consigo mesmo, isto é, se perder a possibilidade da solidão, necessária para toda forma de pensamento” (Sócrates).
Hoje, no Ocidente, mesmo que não existam mais organizações totalitárias de massas, a consciência corre grande perigo porque está ameaçada na condição necessária de seu exercício, ou seja, a solidão como recolhimento e silêncio interior. Sem silêncio interior, não há nenhuma escuta real; sem escuta, nenhum pensamento criativo; sem pensamento criativo, nenhuma consciência; e sem consciência é o fim da humanidade. É somente graças ao silêncio interior que a mente gera consciência e humanidade, mas hoje é justamente o silêncio interior que está em perigo. Nessas condições, qual é a nova utopia para o Ocidente?
A nova utopia é mínima, seu nome é antigo, chama-se humanidade. Humanidade tem dois significados muito diferentes: o conjunto dos seres humanos e sua natureza mais autêntica. Eu o assumo no segundo significado, argumentando que a nossa verdadeira natureza se realiza como livre inteligência que escolhe o bem agindo assim de maneira, justamente, humana. A nova utopia consiste em acreditar que, diante do imenso poder da tecnologia e da possibilidade de que ela modifique nosso corpo e nossa mente para uma metamorfose da humanidade em direção a uma desconhecida pós-humanidade, a humanidade, como inteligência livre e boa, será preservada.
As velhas utopias visavam mudar o mundo, a nova utopia visa muito mais modestamente não se deixar mudar pelo mundo e preservar a humanidade. Lembro as famosas palavras de Dante: "Considerem vossa semente: vocês não foram feitos para viver como brutos, mas para seguir virtude e conhecimento." Nem brutos nem máquinas: a nova utopia mínima acredita que permaneceremos humanos, desejosos por cultivar nossa essência no exercício do conhecimento e da virtude. É um pensamento realista?
A julgar por muitos sinais, não, e de fato é uma utopia, uma terra que não existe no mapa do mundo. Mas "um mapa-mundi que não inclua a Utopia não é digno de consulta", e é por isso que convido a todos nós a raciocinar com o coração, cultivando a ideia emotiva dessa nova, na verdade muito antiga, utopia.
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A utopia de permanecer humano. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU