"O que o mundo mais precisava de Jorge Mario Bergoglio quando vestiu a mítica batina branca há nove anos não era sua intervenção empática em questões seculares, por mais urgentes que fossem, mas seu firme apoio às reformas dentro da Igreja Católica. Não conseguindo esse intento, ele reforça dentro do catolicismo as tendências e valores que ele mais critica fora dele. Francisco protesta contra a desigualdade, mas a desigualdade define o ser da Igreja. É o tribuno dos pobres, mas ao proteger o status de segunda classe das mulheres, apoia um motor mundial de pobreza".
A opinião é de James Carroll, escritor, autor de mais de 20 livros, entre eles, An American Requiem, which won the National Book Award; Constantine’s Sword, a history of Christian anti-Semitism; e The Cloister. O artigo é publicado por Politico Magazine, 26-06-2022. A tradução da versão italiana é de Luisa Rabolini.
Quando Jorge Mario Bergoglio foi eleito para a cadeira de São Pedro, há nove anos, ninguém imaginava que a cadeira tivesse rodas. Ultimamente, no entanto, o Papa Francisco tem sido visto cada vez mais em uma cadeira de rodas do que em um trono de ouro – um problema de mobilidade que provocou especulações sobre outra renúncia papal. A perspectiva de Francisco se juntar a Bento XVI como o segundo papa emérito agitou as fofocas do Vaticano, mas no momento os sussurros dos entendidos continuam sendo especulações desprovidas de fundamento. No entanto, o aparente declínio da saúde e a idade avançada do Papa Francisco (ele tem 85 anos) sugerem que ele esteja entrando no crepúsculo de seu pontificado, um momento em que uma retrospectiva do significado de seu governo pode parecer apropriada.
Qualquer avaliação desse pontificado deve partir do surpreendente impacto positivo que Bergoglio teve na Igreja e no mundo inteiro simplesmente em virtude não apenas de sua atraente personalidade, mas de sua palpável bondade. A extraordinária demonstração de afeto de todo o mundo que o acolheu pela primeira vez no momento de sua eleição nunca desapareceu, embora os desafios de sua posição tenham inevitavelmente complicado a forma como ele é visto. A princípio, o evidente carisma do novo papa foi fortalecido por ações e declarações que prometiam um pontificado que mudaria o mundo e, de maneiras importantes, ele manteve a promessa.
Seguindo a tradição católica, ele se opôs ao aborto e poderia apoiar a decisão da Suprema Corte de derrubar a sentença Roe v. Wade, mas ele nunca fez disso um ponto focal. Em vez disso, Francisco se tornou o firme defensor dos migrantes sitiados, um defensor da tolerância para com os discriminados, um crítico do populismo xenófobo, um feroz opositor do capitalismo do livre mercado que empobrece legiões de pessoas, um defensor da mitigação das mudanças climáticas, um defensor da ciência, um crítico ferrenho da guerra.
Essa defesa rendeu a Francisco inimigos, especialmente dentro da Igreja, que vive sua própria guerra cultural. Os burocratas samurais da Cúria Romana, a estrutura de governo do Vaticano, retardaram os esforços do Papa não apenas para enxugar a administração, mas também para limpar a corrupção financeira. No final do verão europeu, Francisco ilustrará o aspecto de sua Cúria reformada - uma transformação que incluirá a possível nomeação de leigos e mulheres como chefes de gabinete. É claro que alguns católicos, entre os quais bispos e cardeais, que ainda rejeitam firmemente os esforços de reforma iniciados há uma geração com o Concílio Vaticano II, acolheram suas iniciativas com críticas abertas, até mesmo com desafio.
Mas em relação qo desafio mais premente enfrentado pela Igreja Católica Romana, Francisco foi, infelizmente, um defensor do status quo disfuncional, não um defensor da reforma necessária e urgente. Na época de sua eleição, Francisco se viu em primeiro lugar diante da autodestruição moral de uma Igreja dilacerada por escândalos incessantes de padres que abusam de crianças e de bispos que protegem os predadores em vez das vítimas. As corrupções do clericalismo - um ministério celibatário apenas de homens ao serviço não do evangelho ou do povo, mas do poder imperial da hierarquia - foram expostas em todo o mundo. O clericalismo, enraizado nas pretensões sobrenaturais do padre católico, que o distingue de todos os outros, era a fonte geradora das sacrílegas transgressões clericais. O problema era o poder, e ainda é. E Francisco acabou se esquivando da luta.
Nada mais se compara à obrigação do novo Papa de abordar a ilegalidade que infecta o sacerdócio e a hierarquia, e com sua declaração de 2019 Vos Estis Lux Mundi ("Vocês são a luz do mundo"), ele foi saudado pelo establishment eclesiástico por ter feito justamente isso. Mas os defeitos fatais do decreto em sua resposta ao encobrimento dos abusos de crianças e outras pessoas pelos padres logo ficaram evidentes: suas novas estruturas de responsabilização não exigiam nenhuma divulgação pública, não impunham nenhuma denúncia às autoridades civis, a menos que a lei civil o exigisse, e não pediam qualquer participação dos leigos no julgamento dos crimes de padres e bispos. O defeito mais evidente (e que protege os clérigos) da Vos Estis é que impõe uma auto-polícia eclesiástica: os bispos que investigam seus colegas bispos; a denúncia dos crimes dos padres não às autoridades civis, mas aos ofícios eclesiásticos que há tempo são cúmplices; o Vaticano sozinho para determinar as punições. Quem sabe quantos prelados cúmplices foram de alguma forma disciplinados por essa política? Três anos depois, com o período probatório de Vos Estis terminando em 1º de junho, o Vaticano não revelou nada sobre os bispos investigados, acusados ou punidos com base em seus procedimentos. As regras do código do silêncio.
O Papa Francisco denunciou o clericalismo, a malignidade que ele engendra, mas não fez nada para erradicar suas fontes no ministério masculino, sexualmente repressivo e no sistema autoritário de poder eclesiástico ao qual essa cultura clerical é essencial. E Francisco não fez nada para acertar as contas com a misoginia subjacente ao ensino católico sobre tudo, desde o controle da natalidade até a biologia da reprodução e o propósito do casamento. As noções desumanas sobre a sexualidade, nascidas de uma leitura equivocada da história de Adão e Eva e reforçadas por teólogos como Santo Agostinho, estão a serviço da submissão feminina. Essa supremacia masculina é moralmente equivalente à supremacia branca. No entanto, para os funcionários da Igreja e para a maioria dos católicos, permanece inquestionada.
Francisco definiu o tema da ordenação feminina como uma "porta fechada" e disse um retumbante "Não!" aos sacerdotes casados. Quando, por exemplo, os bispos da região pan-amazônica votaram esmagadoramente em 2019 para pedir que ele admitisse diáconos casados no ministério como forma de superar a grave escassez de padres na região, Francisco se recusou até mesmo a responder ao pedido. Ou seja, os bispos da Amazônia deram-lhe uma oportunidade de ouro para dar um passo, ainda que pequeno, no desmantelamento da cultura tóxica do clericalismo - uma oportunidade que vem de baixo, que enfrenta um grave problema pastoral e que permite avançar um diaconato, uma forma subsidiária das ordens sagradas, que seus predecessores imediatos já haviam proposto como instrumento de mudança. De fato, essa abordagem também poderia ter aberto o caminho para a admissão de mulheres aos cargos dos ordenados. Mas Francisco deixou intacto o ministério masculino e celibatário, e com ele a alma do clericalismo – a pirâmide do poder eclesiástico, a estrutura dos abusos.
Eis a trágica ironia: o que o mundo mais precisava de Jorge Mario Bergoglio quando vestiu a mítica batina branca há nove anos não era sua intervenção empática em questões seculares, por mais urgentes que fossem, mas seu firme apoio às reformas dentro da Igreja Católica. Não conseguindo esse intento, ele reforça dentro do catolicismo as tendências e valores que ele mais critica fora dele. Francisco protesta contra a desigualdade, mas a desigualdade define o ser da Igreja. É o tribuno dos pobres, mas ao proteger o status de segunda classe das mulheres, apoia um motor mundial de pobreza.
Nos anos desde que Francisco se tornou Papa, a própria democracia foi submetida a um cerco sem precedentes. Até os Estados Unidos estão se mostrando vulneráveis a esse perigo. As reformas iniciadas pelo Concílio Vaticano II do Papa João XXIII representavam uma tentativa, já há tempo em andamento, da Igreja Católica de se reconciliar com os valores democráticos. Isso foi fortemente simbolizado pelas mudanças na missa católica, agora celebrada nas línguas faladas em cada país em vez de latim e centrada não em altares, mas em mesas. O patriarcado começou a dar lugar à democracia. Mas justamente por isso, o movimento foi impedido por prelados protetores do poder. Sua obstrução continuou sem descanso por meio século.
Se Francisco tivesse realmente revitalizado aquelas reformas eclesiásticas bem iniciadas – igualdade para mulheres e homens, um laicato empoderado, um ministério sacramental de serviço em vez de domínio – ele teria emergido como o que o mundo mais precisa neste momento, um profeta do bem comum democrático. Pensem: mais de um bilhão de católicos, que atravessam todas as fronteiras do planeta, finalmente alistados plenamente – em virtude das estruturas renovadas de sua própria instituição – na luta pela igualdade humana, sancionada pelo autogoverno. Enraizado não no sonho moderno do liberalismo democrático, mas no espírito de solidariedade radical visto pela primeira vez em Jesus Cristo, essa seria uma recuperação religiosa mais que uma revolução política. Em vez disso, a Igreja Católica, em seu irredutível fortalecimento do poder clerical, está presa do lado errado da grande demanda moral do século XXI.
O fato que uma figura corajosa como o Papa Francisco ter falhado até agora nessa grande responsabilidade expõe a profunda disfunção do clericalismo, que está matando a Igreja e traindo Jesus Cristo. As hesitações do Papa são sinais da pressão a que foi submetido, não apenas por seus inimigos reacionários, mas também por sua própria vida no ministério. Ele é prisioneiro do clericalismo que denuncia em linha de princípio, mas não na prática. Dada a extensão de sua rejeição intencional, cabe se perguntar: esse homem é simplesmente um autocrata no coração?
Aqueles que amam o Papa Francisco deveriam rezar para que essa figura complicada resolva sua ambivalência em favor da mudança, inclusive em seu papado em declínio, independentemente de como se concluir. Mas o fato de tal transformação tenha estado ao seu alcance nos últimos nove anos oferece uma espécie de esperança. Afinal, Francisco nomeou uma maioria significativa dos cardeais que terão o poder de eleger seu sucessor. Mesmo que isso seja pouco provável, o melhor de seu espírito poderia continuar a viver. No entanto, isso dependerá mais da vontade do povo que da determinação dos eclesiásticos. Inspirados pelo que o papa argentino prometeu, católicos teimosamente fiéis, abraçando um anticlericalismo de dentro, ainda podem insistir na realização daquela promessa. O discurso humilde, igualitário e profundamente esperançoso com o qual o Papa Francisco começou ainda pode ser a luz orientadora da Igreja, indo para frente.