O teólogo e exegeta belga debate os desafios do futuro à luz do Gênesis nesta quarta-feira, 29-06-2022, no IHU
Aos olhos de muitos cientistas, mas não só, a Bíblia nada tem a oferecer no entendimento e na resolução de problemas reais, práticos e graves para os quais nem as ciências nem a política ainda encontraram todas as respostas e soluções, como é o caso da atual crise ecológica e dos efeitos do novo regime climático. Enquanto a ciência, em suas diferentes abordagens, sugere a redução da emissão dos gases de efeito estufa na atmosfera a fim de diminuir ou estagnar a temperatura do planeta, propõe o desenvolvimento de energias alternativas que causem menos impacto ao meio ambiente, e busca modos para solucionar os problemas sociais e políticos em curso decorrentes dos fenômenos climáticos, o teólogo belga André Wénin, professor da Université Catholique de Louvain, defende a importância de, nesse contexto, "deixar ressoar a voz de um outro mundo, a da sabedoria bíblica, uma sabedoria que pode pelo menos interpelar e dar o que pensar".
André Wénin (Foto: Reprodução YouTube)
Explicitar como a teologia e a sabedoria bíblica têm um papel a desempenhar no debate sobre as mudanças climáticas é um dos objetivo de sua conferência, intitulada "Um mundo sem a fratura entre o ser humano e a natureza. Uma exegese a partir do Gênesis", que será ministrada virtualmente nesta quarta-feira, 29-06-2022, às 10h, no Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo, e transmitida virtualmente na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, nas redes sociais e no Canal do IHU no YouTube.
O debate gira em torno de definir o que é, de um lado, o ser humano e, de outro, a natureza, e qual é a relação existente entre os dois. Enquanto alguns teóricos compreendem a relação entre ser humano e natureza a partir da prevalência de um sobre o outro, e outros propõem uma completa unidade e inseparabilidade entre ambos, o teólogo escolhe uma terceira via a partir da leitura bíblica: "situar os seres humanos em um lugar apropriado na natureza", o que significa "sublinhar a profunda continuidade entre a natureza e eles, ao mesmo tempo em que honram a singularidade que caracteriza os seres humanos na natureza".
Nessa compreensão, ambos são criações de Deus, mas distinguem-se. "Dois traços diferenciam os seres humanos dos outros animais no relato de sua modelagem. (...) A meu ver, essa diferença registra o fato de que, dentre todos os seres vivos da criação, apenas os seres humanos sabem que vão morrer, e esse conhecimento singulariza radicalmente a condição humana. (...) Em suma, de acordo com o capítulo 2 do Gênesis, o 'adâm está ligado ao 'adâmâh pelo seu corpo, e a Deus pela faculdade de falar. Esse segundo vínculo cria uma forma de distanciamento entre o ser humano e a natureza, e permite que ele a domine com respeito e contenção, à imagem de Deus". E resume: "Deus simplesmente faz crescer as plantas, mas 'modela', 'dá forma', aos seres humanos e aos animais. Os seres vivos capazes de movimento têm, portanto, em comum o fato de serem obra de um Deus que age como um oleiro, o que implica um gesto mais elaborado, mais complexo, uma ligação mais íntima também entre o artesão e sua obra".
A consequência desse entendimento, segundo o teólogo, é atribuir ao ser humano uma responsabilidade que não é possível atribuir à natureza no próprio cuidado com a natureza em si. "Este lugar especial [do ser humano] está ligado à sua relação privilegiada com Deus e implica para eles uma responsabilidade específica: a de exercer um determinado domínio sobre a natureza. No entanto, esse domínio só contribuirá para a harmonia da criação se for capaz de assumir os justos limites que o respeito à vida exige. Esse domínio só preservará o equilíbrio da natureza se for exercido como um serviço, com a doçura do Deus que a criou sem nada destruir. Disto depende o futuro do mundo, este dom que Deus dá à humanidade e, portanto, também o futuro de cada ser humano e de toda a humanidade", afirma.
Em 2015, depois da publicação da Carta Encíclica Lautado Si'. Sobre o cuidado da casa comum, Wénin concedeu uma entrevista ao IHU na qual refletiu sobre o peso e a influência do cristianismo no incentivo ao modelo de exploração vigente, baseado no texto do Gênesis e nas possíveis compreensões derivadas acerca do significado de ser humano e natureza. Segundo ele, "a crítica feita ao cristianismo não é totalmente equivocada", porque como "o ser humano é constituído senhor da terra, isso possibilita a dominação do mundo pela técnica. Isso até mesmo a legitima". Mas, observa, "na era industrial, as capacidades de domínio da terra pela humanidade desenvolveram-se muito, o que ocorreu primeiramente nas regiões cristianizadas. Dito isso, o cristianismo não é, enquanto tal, responsável pela deriva desse domínio, que foi se transformando aos poucos na exploração sem limites. O que explica isso é antes a atração do ganho, a cupidez, assim como a vontade de poder. Atitudes estas claramente contestadas na Bíblia".
Particularmente no Gênesis 2, 15, esclarece, "o texto narra o modo como Deus põe o ser humano no jardim para que o 'cultive e guarde'. Aqui, as palavras são importantes. O verbo traduzido por 'cultivar' significa primeiramente 'servir' e, por extensão, trabalhar, logo, cultivar (o solo). 'Servir' à terra é também respeitá-la (como um servo respeita seu senhor), e certamente não explorá-la sem medida. Da mesma maneira, 'guardar' significa 'velar por', e até mesmo 'preocupar-se com'. Nada, portanto, visa a uma atitude conquistadora, puramente dominadora. Esboça-se até mesmo, nesse texto, uma dinâmica de aliança", reitera.
Doutor em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, André Wénin esteve no Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 2013, onde ministrou o curso "Aprender a ser humano. Um estudo de Gênesis 1-4", na programação da 10ª Páscoa IHU – Ética, arte e transcendência. Na ocasião, o IHU publicou o Cadernos Teologia Pública número 80, intitulado "A fraternidade nas narrativas do Gênesis Dificuldades e possibilidades", no qual o teólogo diz que "o Gênesis é provavelmente o livro mais interessante de toda a Bíblia" porque "nos permite observar a realidade humana" e, consequentemente, as dificuldades em torno da construção da fraternidade. "Entre os irmãos, as coisas começam muito mal no Gênesis: Caim, o primeiro ser humano a ter um irmão, nunca será um irmão. Na verdade, se Abel é apresentado desde o início como 'seu irmão' (Gn 4,2), Caim nunca é mencionado na história como o 'irmão de Abel'. A única vez em que ele fala de 'meu irmão', é para negar toda e qualquer responsabilidade em relação ao homem que ele havia eliminado (4,9). De acordo com o texto, Caim é um homem que nunca se torna um irmão. A primeira história dos irmãos aborda, desta forma, a fraternidade como algo que não é dado de uma só vez, e P. Ricoeur tem razão quando escreve que 'o assassinato de Abel [...] faz da fraternidade um projeto ético e não mais um simples fato da natureza'”, pontua.
Em entrevista a Christine Pedotti, publicada na revista Témoignage Chrétien e reproduzida no sítio do IHU, o biblista comentou alguns aspectos de seu livro, intitulado José ou a invenção da fraternidade (Ed. Loyola, 2010). Questionado sobre a nossa dificuldade em falar sobre o fratricídio, mas também sobre o arquétipo das nossas próprias relações a partir da relação entre Caim e Abel, ele foi enfático: "Sem dúvida, porque se trata de textos que acreditamos conhecer, mesmo antes de tê-los lido. Quando os observamos de perto, nos damos conta de que Caim nunca chamou Abel de 'irmão'. Caim recusa a fraternidade. O texto é escrito de forma magnífica, a fim de que o leitor adote o ponto de vista de Caim. Ele sente o seu ciúmes e pensa: 'Isso não é justo'. E quando Caim mata Abel o leitor é envolvido, porque implicitamente deu razão a Caim. (...) Por causa desse amor mal posto, Caim acredita que pode ter tudo. É por isso que ele se abandona ao ciúmes quando vê que Abel tem algo que ele não tem. Ele não é capaz de se alegrar com o bem que chega ao seu irmão. É um pouco a nossa história, não? A fraternidade não está dada, é algo difícil".
O desafio, assegura, consiste em sair do impasse que nos move: a geração constante de violência e a tentativa de sair dela através de relações fraternas. "Como sair deste impasse em que a fraternidade se envolveu? Será possível sair desta fraterna violência, onde todos são agressores e vítimas ao mesmo tempo?"
O Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo iniciou em 12-04-2022 e se estende até o dia 22-07-2022. As demais conferências estão disponíveis e a programação completa estão disponíveis na página do evento. Acesse aqui.