09 Junho 2022
“A cúpula de Los Angeles parece se dirigir a uma estagnação nas relações interamericanas, o que pode reavivar nos Estados Unidos a “síndrome da superpotência frustrada”. A síndrome se expressa em um determinado padrão: uma região - neste caso, a América Latina - é considerada pouco relevante por diferentes motivos. Isso faz com que seja percebida de forma simplificada, que receba uma atenção intermitente por parte dos tomadores de decisão”, escreve Juan Gabriel Tokatlian, sociólogo, especialista em relações internacionais, do Departamento de Ciência Política e Estudos Internacionais da Universidade Torcuato Di Tella, Argentina, em artigo publicado por Nueva Sociedad, Junho/2022. A tradução é do Cepat.
A IX Cúpula das Américas (que acontece em Los Angeles, entre 6 e 10 de junho) começou com dúvidas sobre a participação de vários chefes de Estado, ausências significativas e exclusões. Junto com a conjuntura, há razões mais profundas para o clima de apatia que prevalece no conclave. Uma comparação entre as duas Cúpulas das Américas, que tiveram como anfitrião os Estados Unidos, pode nos dar uma ideia melhor do quanto o mundo, Washington e a América Latina mudaram.
A Primeira Cúpula das Américas de 1994, realizada em Miami, no governo de Bill Clinton, teve uma marca singular. Os Estados Unidos em particular e o Ocidente em geral eram os vencedores da Guerra Fria. Washington era o primus inter pares e tinha uma notável oportunidade de moldar o que então - e por falta de nome melhor – foi chamado de Pós-Guerra Fria.
A União Soviética havia sofrido uma implosão e a Rússia era uma potência declinante que possuía um enorme arsenal nuclear, mas que tinha uma base material ruída e uma projeção de poder muito minguada. A China era, naqueles anos, um país em ascensão, mas ainda não tinha se tornado uma grande potência regional, nem uma superpotência de alcance global. E a Europa optava por ampliar a União Europeia, em vez de aprofundar a sua experiência unificadora.
A América Latina deixava para trás os golpes de Estado e consolidava a transição democrática de forma gradual, mas promissora. O mundo apregoava os “dividendos da paz”, uma vez encerrado o confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética. Washington parecia dar alguma atenção à América Latina e a região compartilhava certa homogeneidade, com governos mais inclinados a buscar relações próximas com a Casa Branca. É possível dizer - claro, com algum exagero - que havia uma relativa comunidade de interesses e valores no sistema interamericano.
Aquela primeira reunião continental deve ser situada, além disso, na grand estrategy de Washington em tal contexto histórico. A grande estratégia, chamada “Compromisso mais Ampliação” (Engagement plus Enlargement), consistia em que os Estados Unidos não recuariam como tinham feito após a Primeira Guerra Mundial e que tinham a vontade, a capacidade e a oportunidade de reconfigurar decisivamente o sistema internacional (o componente de engagement), ao mesmo tempo em que buscariam propagar a economia de mercado e o pluralismo político (o componente de enlargement).
A respeito desse último componente, a política dos Estados Unidos se serviu do Consenso de Washington de 1989 para impulsionar as políticas de liberalização e desregulamentação econômica, por um lado, e de redução do Estado, por outro. Nesse marco, um eixo central era o comércio, tema que se tornou o foco principal da I Cúpula das Américas, com a pretensão de alcançar uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) até 2005.
Rumo ao conclave em Miami, os Estados Unidos realizaram uma série de consultas prévias, além de reuniões preparatórias. A América Latina, então, por meio do chamado Grupo do Rio (composto pela soma do Grupo de Contadora, Grupo de Apoio à Contadora, Comunidade do Caribe [CARICOM] e o Sistema de Integração Centro-Americana [SICA]), realizou encontros, a propósito da cúpula, com a finalidade de oferecer contribuições que refletissem as necessidades da região. Do ponto de vista burocrático, foi relevante o papel do subsecretário de Assuntos Hemisféricos do Departamento de Estado, Alexander Watson. Ele conhecia a região – havia tido missões diplomáticas na Bolívia, Brasil, Chile e Peru – e dominava tanto o espanhol como o português.
Dada a notável assimetria de poder e em virtude do consentimento de grande parte da América Latina e do Caribe, Washington alcançou um acordo acerca da centralidade da ALCA como objetivo central da década futura. Além disso, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) passariam a desempenhar um papel crucial na implementação dos diversos compromissos temáticos alcançados. Na época, uma figura de prestígio como Enrique Iglesias presidia o BID e o ex-presidente da Colômbia, César Gaviria, chegava à secretaria da OEA com uma agenda de modernização institucional.
Mas esse estado de sugestiva coincidência entre os Estados Unidos e a América Latina não duraria muito. Diferentes realidades internacionais (como os atentados de 11 de setembro de 2001 e o início da “guerra contra o terrorismo”, a progressiva ascensão da China, o início de uma estagnação secular das economias do Ocidente e o aumento do protecionismo estadunidense) e regionais (como os crescentes custos sociais e econômicos das reformas dos anos 1990 e a chegada ao poder de diferentes tipos de governos progressistas) foram gerando condições que inviabilizaram a concretização da ALCA em 2005.
Em 2022, 28 anos após o primeiro encontro continental, os Estados Unidos realizam a IX Cúpula das Américas em Los Angeles. Permanece um mistério o motivo pelo qual o governo de Donald Trump solicitou, na VIII Cúpula de 2018, reunida em Lima e na qual o mandatário estadunidense não compareceu, ser sede do encontro seguinte. A mistura de desconsideração, desrespeito e desprezo demonstrada por seu governo em relação à América Latina só pode levar a uma suposição: se tivesse sido reeleito presidente, este conclave teria sido um exercício para disciplinar a região e avançar em seu projeto reacionário com o acompanhamento de alguns mandatários da região. De qualquer forma, coube ao presidente democrata Joe Biden realizar a cúpula. Não sem obstáculos.
Para começar, houve o problema da pandemia que obrigou a alterar a data. O pano de fundo é dado pelos 18 meses da política latino-americana do governo democrata. Em suma, até o momento a gestão da região teve mais continuidade do que mudança, uma espécie de “trumpismo soft”. Quase nenhuma de suas promessas, por exemplo, em matéria de migração e recursos significativos para a América Central, foi cumprida. As sanções a países como Venezuela e Cuba não foram reconsideradas. Assim como há décadas, o lugar do Comando Sul nos vínculos interamericanas parece predominar sobre o do Departamento de Estado. A estratégia internacional de Washington em matéria de drogas ilícitas também mudou pouco.
Agora, em essência, esta cúpula tem uma marca muito diferente da de 1994. O enfraquecimento internacional de Washington é notório, ao mesmo tempo em que os Estados Unidos têm sua própria “casa em desordem”; a consolidação da ascensão da China já é um fato; o ressurgimento agressivo da geopolítica é evidente, após a invasão russa da Ucrânia; o Sul global defende transformações mais urgentes com uma voz mais audível do que a que teve no início do século XXI; a situação ambiental é muito delicada; e a agenda global exige um grau de governabilidade que nenhum país pode impor ou administrar de forma individual.
Em relação à América Latina, duas questões cruciais se tornaram evidentes. Por um lado, o alto nível de fragmentação, a tal ponto que se tornou improvável convergir em temas vitais para a região. Isso torna a região um ator cada vez menos gravitante no cenário mundial. Por outro lado, e para além dos governos de turno em um ou outro país - e muito especialmente na América do Sul -, não há administrações que busquem reduzir ou reverter os laços, particularmente econômicos, com a China, o que significa que não há atores domésticos dispostos a vetar a relação com Pequim, que tanto inquieta Washington.
Por sua vez, a IX Cúpula de Los Angeles se insere na grande estratégia dos Estados Unidos, após os ataques de 11 de setembro de 2001, que almeja a primazia (primacy): Washington não aceita e nem tolera a existência de uma potência de igual estatura. Com George W. Bush essa primazia foi agressiva, sob Barack Obama foi recalibrada e sob Donald Trump foi ofuscada. Com Joe Biden, assistimos a uma primazia deteriorada, tanto por razões internas quanto externas.
A IX Cúpula reflete esta nova condição da grand strategy de Washington. Os Estados Unidos vivem hoje um franco desacordo bipartidarista em política externa, têm menos recursos em termos de investimento privado e assistência oficial ao desenvolvimento para garantir sua influência na América Latina, e enfrentam uma China que não promove até agora uma ideologia alternativa, mas que dispõe de recursos materiais (investimentos, comércio, ajuda) para respaldar e aumentar sua projeção na região.
Nesse marco de referência, é importante notar os contrastes entre as cúpulas de 1994 e 2022. Em relação à presente reunião em Los Angeles, as consultas aos países da região foram quase inexistentes, ao mesmo tempo em que a capacidade da América Latina de propor uma agenda compartilhada frente a Washington é nula. É claro que a decisão de excluir Cuba, Nicarágua e Venezuela foi unilateral. Mas, além disso, os enviados de Washington a várias capitais enfatizavam uma só mensagem: conter a China.
A articulação política do Departamento de Estado foi pobre. Entre setembro de 2019 e setembro de 2021, houve três subsecretários de Assuntos Hemisféricos interinos, ao passo que o embaixador junto à OEA, Frank Mora, nomeado em julho de 2021, ainda está em processo de confirmação. Além disso, as duas instituições relevantes para fazer com que os planos de ação das cúpulas se concretizem são lideradas por pessoas que não contribuíram para uma melhora das relações interamericanas, muito pelo contrário: Mauricio Claver-Carone, no BID, e Luis Almagro, na OEA.
Certamente, no primeiro semestre de 2022, ficou evidente que os Estados Unidos e a América Latina vêm operando com duas “lógicas” diferentes em relação à IX Cúpula. Uma série de questões de natureza e alcance globais, como a crescente concorrência entre os Estados Unidos e a China, a guerra na Ucrânia, a ampliação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o futuro da energia, a gravitação dos recursos estratégicos e a multiplicação de hotspots no mundo, entre outros, reforçou nos Estados Unidos, entre civis e militares, democratas e republicanos, centros acadêmicos e think tanks, uma visão dos assuntos mundiais marcada pela lógica geopolítica: antes de tudo, a batalha global, a política de poder e a expansão de esferas de influência.
Enquanto isso, a complexa e crítica situação econômica e política, a exacerbação de fontes de instabilidade e volatilidade, a ausência de um modelo de desenvolvimento sustentável e a profundidade da polarização em toda a América Latina fizeram com que prime na região uma lógica social: enfrentar as desigualdades, recuperar o crescimento econômico e evitar explosões cidadãs. Isso antecipava, para além das formas e as palavras, um choque de interesses entre Washington e vários países latino-americanos, enquanto aspectos avaliativos - como a democracia – foram aprofundando diferentes perspectivas sobre como abordar e tramitar, nos Estados Unidos e na América Latina, o desafio de seu enfraquecimento e eventual regressão.
A cúpula de Los Angeles parece se dirigir a uma estagnação nas relações interamericanas, o que pode reavivar nos Estados Unidos a “síndrome da superpotência frustrada”. A síndrome se expressa em um determinado padrão: uma região - neste caso, a América Latina - é considerada pouco relevante por diferentes motivos. Isso faz com que seja percebida de forma simplificada, que receba uma atenção intermitente por parte dos tomadores de decisão e que atraia o interesse de poucos atores domésticos nos Estados Unidos. Assim, as políticas burocráticas se caracterizam pela recorrência e a invariabilidade.
Ocasionalmente, surge a expectativa de uma “transformação” madura e responsável na região. Maturidade e responsabilidade que são entendidas como consonantes com os objetivos primordiais de Washington na região. Mas a desilusão volta a emergir: países turbulentos, mandatários rebeldes, políticas inconsistentes e desafios inesperados levam primeiro à surpresa e depois à decepção. No entanto, nada disso faz com que a estratégia seja alterada. Na verdade, a superpotência não tem vontade e disposição para repensar e reorientar as relações com a região. Assim, de facto, começa um novo ciclo que preanuncia outra frustração futura.
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1994-2022: a Cúpula das Américas e a “síndrome da superpotência frustrada” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU