08 Junho 2022
“Embora pudessem ser diferentes as maneiras pelas quais elas se descreviam em tempos passados, as pessoas LGBTQIA+ fazem parte da Igreja desde o início. Alguns contribuíram para sua missão de maneira inspiradora e sagrada. E em muitos casos, como Nouwen, o fizeram enquanto silenciosamente carregavam um fardo terrível. É hora de eles terem seu lugar na história da Igreja. Quando nós LGBTQIA+ olhamos para a comunhão dos santos, devemos poder ver alguém que se pareça conosco. E não é por causa de quem somos, mas por quem esses indivíduos eram e o que eles fizeram”, escreve o jesuíta estadunidense Jim McDermott, em artigo publicado por America, 02-06-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eu adoro um grande quadro de santos, com 15, 20 ou 30 pessoas em torno de Maria e Jesus, olhando para nós, com suas cabeças iluminadas por uma auréola tão amarela quanto o sol. Isso é como ver os membros da Liga da Justiça ou os X-Men todos juntos. Esse quadro é um jogo para tentar adivinhar ou reconhecê-los, lembrando suas histórias ou superpoderes. Mas pra mim, também me tranquiliza vê-los todos reunidos juntos. Particularmente, se entre eles há mais que apenas homens brancos celibatários, já parece um sinal do Reino de Deus, um lar para onde todos nós.
Mas então, alguns anos atrás, eu estava na Catedral de Nossa Senhora dos Anjos em Los Angeles, mostrando a alguns amigos as lindas tapeçarias dos santos que revestem as paredes da igreja. Criadas pelo artista John Nava, elas são simplesmente extraordinárias – jovens e velhos, europeus, africanos, asiáticos, latino-americanos e indígenas, mulheres e homens todos ao nosso redor e olhando conosco para Deus.
Enquanto eu estava sentado na igreja com meus convidados, olhando para todas essas belas imagens, de repente me ocorreu que nenhuma dessas pessoas foi identificada como gay, lésbica, bissexual ou transgênero, embora, sem dúvida, algumas delas fossem. Na verdade, a Igreja Católica ainda não reconheceu nenhum santo LGBTQIA+.
Santos LGBTQIA+ para a Igreja Católica. Imagem: Wikimedia Commons com edição de America Magazine
Agora, dependendo de como você foi criado, apenas o fato de eu estar levantando isso como um problema pode parecer escandaloso. Honestamente, eu instintivamente me sinto assim, e sou gay. Não importa quanto trabalho o Papa Francisco, vários bispos, clérigos e outros tenham feito para tentar normalizar o lugar das pessoas LGBTQIA+ na Igreja, o fato é que, para muitos católicos de uma certa idade, ser LGBTQIA+ ainda parece errado ou desobediente. Está bem ali na maneira como a igreja muitas vezes tentou falar sobre as pessoas LGBTQIA+: “Ame o pecador, odeie o pecado”. Aqueles que usam essa frase argumentam que deixa claro que o problema conosco não são nossas identidades, mas nossos atos e desejos. Mas a linha apenas identifica as pessoas LGBTQIA+ como pecadoras. Ensina as pessoas a nos amarem de qualquer maneira. E quando você ouve isso o suficiente como uma pessoa LGBTQIA+, você começa a acreditar no mesmo.
Então, sim, ao propor que é um problema não haver santos LGBTQIA+, sinto que estou dizendo algo transgressor. Mas o fato é que, como católicos, acreditamos que cada um de nós nasce à imagem e semelhança de Deus. Não apenas pessoas heterossexuais, pessoas brancas ou homens – todo mundo. Não há asterisco no Catecismo sobre este ponto. Este é o ensinamento da Igreja, mesmo que alguns católicos nos discutam ou nos tratem de maneiras que sugiram o contrário.
É essa verdade de nossa fé, de fato, que permitiu a Francisco dizer, quando perguntado sobre padres gays: “Se um gay deseja buscar a Deus, quem sou eu para julgá-lo?”. É o que lhe permitiu elogiar o trabalho de organizações como New Ways Ministry e pessoas como a irmã Jeannine Gramick e meu colega jesuíta James Martin, todos eles ministrando aos católicos LGBTQIA+, no caso da irmã Gramick há mais de 50 anos; ou a convidar um grupo de transgêneros ao Vaticano para receber a vacina contra a covid-19; ou para restaurar ao ministério ativo o padre e teólogo James Alison, que fora perseguido e suspenso após se revelar gay há duas décadas, ao que ele descreveu como um pesadelo “kafkiano” no qual ele não tinha permissão para saber quais eram as acusações contra ele, não podia fazer representação legal de seu caso e não podia apelar. Se somos filhos de Deus como todos os outros, devemos ter o mesmo cuidado e respeito que eles. “Saiba que Deus o criou, Deus o ama e Deus está do seu lado”, escreveram o cardeal Joseph Tobin e outros 13 arcebispos e bispos dos EUA em um comunicado em dezembro passado, falando aos jovens LGBTQIA+.
Mas há mais do que respeito e amor. Dizer que Deus nos criou ou que somos feitos à imagem de Deus é dizer que oferecemos uma ideia de quem é Deus, que cada um de nós é um meio pelo qual outras pessoas podem saber que elas também são uma imagem de Deus, visto e amado por Ele. É uma declaração incrível, pensar que qualquer um de nós poderia ser um presente, uma maneira pela qual outros podem conhecer melhor a Deus e a si mesmos. E, no entanto, acreditamos que isso seja verdade para todos os seres humanos.
Há tantas pessoas LGBTQIA+ que dedicaram suas vidas a ser esse tipo de esperança e consolo para os outros. Como o capelão dos bombeiros de Nova York e padre franciscano Mychal Judge, que morreu em 11 de setembro enquanto encorajava as equipes de resgate no saguão da Torre Norte do World Trade Center. Em sua vida, o padre Judge estabeleceu um dos primeiros ministérios pastorais na cidade de Nova York para atender pessoas com HIV ou AIDS. Ele defendeu os sem-teto e ministrou aos alcoólatras após ele próprio passar pelos Alcoólicos Anônimos. E nos últimos 10 anos de sua vida, ele trabalhou como capelão do corpo de bombeiros da cidade de Nova York. Ele era gay, ajudou muitas pessoas, e agora elas falam das maneiras pelas quais ele as inspirou. E há um apelo crescente para sua canonização.
Ou tome o teólogo holandês padre Henri Nouwen. Seus escritos espirituais ajudaram milhões de pessoas a se conectarem com Deus. E depois de décadas ensinando nas escolas de teologia de Yale e Harvard, ele dedicou a parte final de sua vida a viver e trabalhar com adultos deficientes nas comunidades de L'Arche. A sua vida foi um testemunho profundo de serviço, simplicidade e amizade.
Nouwen nunca se identificou publicamente como gay; de seus diários fica claro que sua luta contínua para integrar sua sexualidade em sua vida foi um fardo difícil que ele resolveu apenas em seus últimos anos. E, no entanto, também foi claramente um motor para seu ministério, algo que lhe permitiu falar com pessoas em dificuldades com discernimento e empatia.
Aqueles de nós que são LGBTQIA+ e católicos sabem muito bem a dificuldade que vem com a aceitação de nós mesmos e a compaixão que isso ensina. Quem melhor para ser um santo do que alguém que já percorreu esse caminho?
Espero que esteja claro que não acho que nomear santos deva ser apenas dar a uma comunidade “seu próprio santo”. Nouwen e Judge dedicaram suas vidas a ajudar uma ampla gama de pessoas, e foram reconhecidos como sagrados por eles. Sua santidade é uma função não de sua sexualidade, mas do dom que eles foram para toda a igreja.
Ao mesmo tempo, também vale dizer que é duro ser católico LGBTQIA+. Tenho certeza de que alguns católicos se cansam de retornar sempre ao “quem sou eu para julgar?” do Papa Francisco? Mas para muitos de nós, a declaração de Francisco foi a primeira vez em nossas vidas que recebemos qualquer tipo de permissão pública para existir como nós mesmos na Igreja.
Ao olharmos para a história da Igreja, podemos reconsiderar as histórias de Santa Brígida e da irmã Darlughdach, que moravam juntas, trabalhavam juntas e dividiam uma cama; de são John Henry Newman e do padre Ambrose St. John, que viveram juntos por 32 anos e compartilharam uma sepultura, ou da venerável Juana Inés de la Cruz, que acreditou que Deus havia mudado seu sexo no útero e imaginou que Jesus poderia ser mãe ou pai, esposa ou marido, dependendo das necessidades de quem o procura. Mas nossa existência real na história da Igreja nunca foi reconhecida, nem quaisquer bênçãos que possamos ter trazido. Em nenhum lugar encontraremos estátuas de pessoas como nós. Não estamos incluídos em nenhum quadro católico. Na melhor das hipóteses, somos apenas convidados na história da salvação. Mais frequentemente, somos como a segunda esposa de Abraão, Hagar, exilada em alguma outra terra.
Embora pudessem ser diferentes as maneiras pelas quais elas se descreviam em tempos passados, as pessoas LGBTQIA+ fazem parte da Igreja desde o início. Alguns contribuíram para sua missão de maneira inspiradora e sagrada. E em muitos casos, como Nouwen, o fizeram enquanto silenciosamente carregavam um fardo terrível. É hora de eles terem seu lugar na história da Igreja.
Quando nós LGBTQIA+ olhamos para a comunhão dos santos, devemos poder ver alguém que se pareça conosco. E não é por causa de quem somos, mas por quem esses indivíduos eram e o que eles fizeram.
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A Igreja Católica precisa de santos LGBTQIA+. Artigo de Jim McDermott, SJ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU