08 Junho 2022
O secularismo é o terreno da Igreja de Jesus: não se trata de perguntar “você faz parte?”, mas sim “o que está faltando?”. A alegria e a esperança, a dor e o medo das pessoas de hoje são a alegria e a esperança, a dor e o medo dos discípulos e das discípulas de Cristo.
O comentário é dos teólogos alemães Rainer Bucher e Birgit Hoyer, respectivamente professor da Universidade de Graz e professora da Escola Superior de Filosofia e Teologia Sankt Georgen.
O artigo foi publicado originalmente em Feinschwarz e traduzido ao italiano por Settimana News, 05-06-2022. A tradução ao português é de Moisés Sbardelotto.
O que torna a situação da Igreja Católica tão desastrosa? O fundamental déficit de credibilidade.
Quando as instituições religiosas violam os fundamentos normativos centrais das sociedades em que estão inseridas, esbarram em problemas sociais de existência. Se essas normas podem ser interpretadas com uma certa justificativa como variantes seculares dos seus próprios princípios fundamentais, então as instituições religiosas têm um problema social existencial. Porque a sua credibilidade se rompe em autocontradições evidentes e estruturais.
Se os processos de escândalo reúnem essas autocontradições de modo exemplar, então as coisas estão realmente feias. Elas não perdem os seus adversários, mas sim os seus apoiadores. Isso é exatamente o que está ocorrendo atualmente na Igreja Católica Romana na Alemanha, mas não só.
A recepção dos direitos humanos e das conquistas antitotalitárias da modernidade
A modernidade não tem apenas uma história de progresso, mas também uma história de colapsos totalitários. Produziu banhos de sangue sem precedentes. Mas ele tirou as consequências dessa história, e as sociedades liberais modernas, portanto, conhecem os efeitos de aprendizagem antitotalitários:
- separação de poderes;
- orientação aos direitos humanos;
- Estado de direito;
- democratização;
- sistemas de controle e contrapeso;
- fortalecimento da sociedade civil.
A Igreja Católica achava que não precisava adotar tudo isso, porque não estivera diretamente envolvida nesses colapsos do totalitarismo e se sentia protegida de tais abusos de poder graças à assistência de Deus e à própria superioridade moral. Obviamente, tratava-se de uma ilusão.
Isso significa não apenas que a Igreja Católica carece de mecanismos internos de percepção, crítica e correção, mas também dos mecanismos usuais na sociedade para combater os abusos de poder.
Desde a Reforma, a Igreja Católica viveu uma cascata de perdas de relevância e muitas humilhações: o surgimento de Igrejas cristãs independentes dele nas Reformas; a sociedade burguesa que se formou independentemente da religião; as religiões políticas do século XIX; e, por fim, a individualização religiosa de hoje.
Até o Vaticano II, a Igreja Católica reagiu a essa situação com a estratégia da “inclusão mediante exclusão”, assumindo uma forma social absolutista.
O Vaticano II, por sua vez, significou uma mudança teológica e espiritual fundamental baseada na vontade salvífica universal de Deus e na despedida de um platonismo de perspectiva central para passar a um pluralismo ligado aos acontecimentos.
Mas isso foi sabotado e atacado pelos desdobramentos pós-conciliares, especialmente no direito canônico. A consequência: estamos entrando em uma era de autonomia religiosa com uma forma social disfuncional da Igreja ainda de formação constantiniana.
Forma social disfuncional para quê? O que é uma forma social funcional da Igreja? Para que serve?
… para a religião – a fé – no mundo, na situação social da vida do ser humano, das pessoas. Este é um mundo sem Deus, sem a justificativa de um Deus, no qual Deus não é necessário, um mundo secular, no qual falta religião, no qual Deus não existe. O que significa a fé nesse mundo?
A Arquidiocese de Berlim chegou ao Katholikentag com o “paradEIS2go: Compartilhar o sorvete – Compartilhar a vida” (um sorvete paradisíaco no âmbito do projeto inovador pastoral de verão da cidade). Na sua bagagem, as perguntas: “Se a nossa fé fosse um tipo de sorvete, que sabor teria? Qual é a sua essência? Qual ingrediente básico não deve faltar de maneira nenhuma?”. O sorvete certamente é recomendado, mas as perguntas estão equivocadas.
Que sabor tem a vida? Nem sempre é deliciosa. Que sabor tem a morte nesta vida? A vida, a laicidade abre espaço para a pergunta: o que me falta, o que nos falta na vida? Onde está faltando sabor?
Michael Triegel, um pintor nascido em Erfurt e ativo em Leipzig, se interroga sobre os vazios da vida, da sua vida, e sobre aquilo com que nós preenchemos esses vazios. Ele os encheu de arte e com o batismo.
Espaço para a morte, para olhar para as profundezas, para as periferias, para trás, para além? Onde está esse espaço na Igreja para as perguntas últimas, as perguntas existenciais? Onde está o espaço para o medo, a incerteza, a tristeza, a vida árida? E não sejamos apressados demais em abordar a questão da ressurreição ou da teodiceia.
É interessante a intuição que veio de uma conversa com professores de religião: a questão da teodiceia não é mais uma pergunta para os jovens, não porque eles não estejam interessados, mas porque não acreditam mais em um Deus que faz tudo.
A aceitação da pessoa secular que, por enquanto, não tem nada a ver com Deus, a religião ou a Igreja – essa é a situação em que o amor de Deus respira, em que os cristãos acreditam que estão colocados com e sem Deus. Nessa situação é importante sentir, ouvir o que está faltando. A pergunta de Jesus – “O que queres que eu te faça?” – já é religiosa demais, inapropriada até.
A Igreja vira a esquina rápido demais! Na pessoa de dois capelães de hospital que estão ao lado do leito de um paciente gravemente doente. Testemunhas de Jeová, uma coluna de vendedores de porta em porta, pássaros estranhos, de todos os modos. Eis a nossa oferta, do que vocês precisam. Não há espaço para se perguntar o que está faltando: tudo duro demais, rápido demais.
Não se trata nem sequer de acompanhar, mas de estar ali, à espera de que a palavra nos seja dirigida, de sermos radicalmente questionados, de não termos um papel, uma resposta, de não sermos questionados, de passarmos para o segundo plano. Suportar: estou aqui. Como Dorothee Steiof da Cáritas, que simplesmente se sentou em um banco.
Com isso, não me refiro ao serviço litúrgico para as mulheres grávidas no Katholikentag. A cultura nasce do culto – a Igreja, o cristianismo tem uma grande riqueza de palavras, imagens, ritos. O que falta é a abertura desses espaços para a pergunta humana sobre “o que falta” na vida. Com que é possível encher os espaços vazios? Onde pode haver um vazio na minha vida? Onde há espaço para a pergunta: quem sou eu?
Que forma social é funcional para essa Igreja? Sem subjuntivo, porque essa Igreja para os espaços seculares existe. O que falta à Igreja é fé e a fidelidade à sua constituição.
O secularismo é o terreno da Igreja de Jesus: não se trata de perguntar “você faz parte?”, mas sim “o que está faltando?”. A alegria e a esperança, a dor e o medo das pessoas de hoje são a alegria e a esperança, a dor e o medo dos discípulos e das discípulas de Cristo.
Essa Igreja já existe, com a Cáritas, nas escolas católicas, no ensino religioso, nas ordens religiosas. O jesuíta Michael Bordt tem uma missão clara nos seus cursos de formação à liderança: “Tornar a espiritualidade frutífera para os problemas do mundo; parar ativamente para fortalecer e avaliar o próprio papel de liderança”.
Portanto, nada de lamentações sobre a falta de aceitação, nada de nostalgia: tudo isso é apenas a glorificação do absolutismo, do sistema de governo patriarcal. Não vale a pena investir nesse setor. O que conta é uma gestão profissional e eficaz, para que Michael Triegel possa pintar retábulos, para que Dorothee Steiof possa estar presente aqui, para que professores e alunos possam aprender e para que Michael Bordt possa meditar com os administradores.
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Sínodo na Alemanha: a situação da Igreja Católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU