Nesta entrevista, a professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp) Luciane Barbosa, uma das organizadoras do dossiê ‘Homeschooling e o direito à educação’, fala sobre o projeto de lei 3.179/2012, que regulamenta a prática da educação domiciliar, ou homeschooling, no Brasil. O projeto foi aprovado na semana passada na Câmara dos Deputados e segue para análise do Senado. Para a pesquisadora, sua aprovação pode significar a transferência de recursos e de esforços do Estado que deveriam ser destinados para a escola pública para atender e fiscalizar uma prática acessível apenas para parcelas mais ricas da população.
Luciane Barbosa. Foto: portal EPSJV/Fiocruz.
A entrevista é de André Antunes, publicada por portal EPSJV/Fiocruz, 26-05-2022.
Originalmente apresentado pelo deputado federal Lincoln Portela em 2012, o PL 3.179/12 inicialmente apenas acrescentava um parágrafo à Lei de Diretrizes e Bases para permitir a oferta da educação domiciliar na educação básica. O texto aprovado, relatado pela deputada Luiza Canziani, acrescentou vários artigos ao projeto, estabelecendo critérios e exigências, tanto de pais e responsáveis quanto do Estado, para a oferta da educação domiciliar. O texto aprovado de alguma forma responde às críticas que foram apresentadas por entidades do setor ao PL 3.179/12 durante sua tramitação?
A partir da apresentação do projeto de lei do Lincoln Portela, vários outros projetos de lei com a mesma temática foram apresentados e apensados ao PL 3.179/12. Quando a deputada Luiza Canziani se torna a relatora do projeto, promove o que chamou de “debates sobre o tema da Educação Domiciliar”, convidando algumas pessoas para se manifestarem, a maioria favorável. Ela também fez o trabalho de analisar todos os projetos que foram apensados ao projeto de lei do Lincoln Portela e foi acrescentando itens também decorrentes das críticas que apareceram durante esses debates que ela proporcionou no período da pandemia, por meio de lives. A partir disso, apresentou o substitutivo com uma série de inclusões.
Acho que o projeto original era muito amplo, geral, o que de uma certa forma dava brechas para o não cumprimento do direito à educação das crianças, principalmente se pensarmos no contexto do Brasil, que é um país extremamente desigual e com muitos problemas sociais. Nesse sentido, o projeto inicial permitiria, por exemplo, que algumas famílias alegassem que estavam fazendo a educação domiciliar, sem que necessariamente as crianças estivessem de fato estudando em casa. Já esse Substitutivo aprovado pela Câmara, de uma certa forma, tenta proteger um pouco mais o direito dessa criança que vai estudar em casa. Vemos isso na questão da preocupação com a formação dos pais, a necessidade de matrícula em uma escola, a exigência de fiscalização pelo poder público para garantir de fato que essas crianças cujas famílias optarem pela educação domiciliar tenham o seu direito à educação preservado.
Por outro lado, ao prever esse cuidado com a preservação do direito dessas crianças, acaba acarretando um problema que afeta a educação pública de uma maneira geral, porque o texto cita uma série de ações do poder público para garantir a viabilização desse direito à educação domiciliar, que é para poucos. O projeto prevê ações que se apresentarão como demandas tanto para a unidade escolar, para o professor da escola, como para as secretarias de educação e diretorias de ensino, quer seja decorrente da exigência da matrícula, como da supervisão, das visitas que estão ali previstas para avaliar se de fato as crianças estão aprendendo. Todo esse quadro vai exigir ações do Ministério da Educação e principalmente das secretarias municipais e estaduais de educação. E esta é uma grande preocupação: a maioria dos municípios com baixa arrecadação, já com dificuldades de manter um sistema de educação com qualidade, vão ter que também destinar recursos e esforços para atender essas famílias que optarem pela educação domiciliar. Então essa é uma característica que tem esse projeto de lei aprovado na Câmara: por um lado protege melhor as crianças que estão no contexto de educação domiciliar e, por outro, traz todas essas demandas para o poder público. Por isso a gente pode sim falar que é uma questão de transferência de esforços e de recursos da educação pública de uma maneira geral, que atende a grande maioria, para essas poucas famílias.
Em que medida a aprovação desse projeto pode representar uma grande desregulamentação da oferta de educação básica, de um modo que abra nichos de mercado para, por exemplo, empreendimentos que ofereçam aulas na educação básica em âmbito domiciliar para uma ou mais crianças? Quais os interesses econômicos por trás desse impulso à aprovação da educação domiciliar no país?
Essa é uma questão muito interessante. A gente já tem um movimento de editoras que têm visto aqui no Brasil um mercado potencial no que se refere à educação domiciliar. Há agora um movimento forte da Classical Conversations, que é uma editora norteamericana. No site deles há um ícone só para o Brasil, que mostra que já existe produção e venda de materiais para essas famílias brasileiras. Tem aumentado também o que eles têm chamado de “consultoria homeschooler”, com mães que praticam a educação domiciliar vendendo consultoria para outras famílias que estão iniciando essa prática. Há também vendas de projetos de educação domiciliar e, inclusive, na cidade de São Paulo, existe a Poppins, que se autodenomina uma “microempresa de educação domiciliar”. Ela oferece o serviço de análise da sua família para então enviar para sua casa o professor que melhor se adequa aos seus filhos ou ao ensino que você quer para eles.
Todo esse mercado em torno da educação domiciliar acaba sendo, de certa maneira, até contraditório, porque o que as famílias reivindicam é justamente a liberdade inclusive curricular, para escolher os conteúdos que vão ser ensinados para as crianças. O que a gente ouve em termos de justificativa para a prática da educação domiciliar é que ela segue o ritmo da própria criança, respeita a individualidade delas. E aí a gente vê todo um mercado já se preparando e vendendo materiais e projetos prontos para os pais. Mas o fato é que já há um mercado que vem se aquecendo em torno da educação domiciliar no Brasil e por isso também há uma pressão grande para a aprovação desse projeto. Os grupos que defendem educação domiciliar são grupos que têm se organizado cada vez mais e estabelecido várias relações, não só em torno dessa questão de mercado, mas também da pressão política para que a matéria seja aprovada.
Houve uma mobilização contrária bastante organizada, com centenas de entidades assinando manifestos contra a proposta. Inclusive uma pesquisa Datafolha apontou que 78% da população é contrária à aprovação, mas tivemos um rito muito acelerado de tramitação. Qual a sua análise mais política dessa aprovação nesse momento?
Eu analiso a temática e pesquiso sobre o movimento desde 2009, e o que eu percebo é que o movimento homeschooling aqui no Brasil se inicia com um caráter heterogêneo. Isso inclusive me chamava a atenção, porque a gente sabe que essa era uma prática comum no século 19, mas ela volta na época moderna com uma característica principal de crítica à instituição escolar, seja ela pública ou privada, no seu formato. Era um movimento heterogêneo com pessoas de diferentes perspectivas políticas, educacionais e religiosas, que faziam questionamentos do porquê a escola não mudou ao longo dos séculos. Por que que em pleno século 21, com tantas mudanças, a gente tem a mesma figura central do professor falando para 30 crianças que devem ouvir e reproduzir o conteúdo? Então era um movimento que trazia esses questionamentos e que tinha uma pluralidade de públicos fazendo a opção pela educação domiciliar ou experiências ligadas à desescolarização. O que a gente percebe agora, principalmente pós período de campanha eleitoral em 2018 e durante todo o governo Bolsonaro, é que a liderança da ANED, a Associação Nacional de Educação Domiciliar, e o movimento a favor da regulamentação, se aproximou de uma maneira muito forte das discussões dos projetos conservadores do atual governo. É aí que a educação domiciliar passa a ser vista pela sociedade como um movimento cristão conservador.
Em muitos espaços eles passam inclusive a se apresentar dessa maneira, muito mais com o objetivo de fato político de conseguir a aprovação do homeschooling no país. Por isso que a educação domiciliar chega na Câmara com argumentos muito semelhantes a outros projetos conservadores como, por exemplo, o Escola Sem Partido. As falas dos deputados que defenderam a educação domiciliar durante a votação na Câmara se basearam sobretudo em críticas às escolas públicas e falsas acusações, muito parecidas com as presentes no projeto da Escola Sem Partido: de que a escola proporciona uma sexualização precoce, que a escola traz uma ideologização, entre outras acusações sem fundamento ou comprovação, mas que se fazem presentes na defesa de projetos conservadores. No atual contexto, marcado pela polarização e pelo apoio do governo a esses projetos, isso ganha um peso maior e, agora no período eleitoral, acaba convencendo também alguns deputados que apresentam uma perspectiva de apoio a essa pauta conservadora, com objetivo de angariar votos para seus partidos.
Enquanto as famílias estavam fazendo a educação domiciliar e não acontecendo nada com elas, elas não queriam a regulamentação. Tanto que a diretoria da ANED insiste em afirmar que nunca buscou a regulamentação da prática porque o objetivo principal sempre foi a liberdade de fazer o homeschooling da forma como as famílias desejarem. Mas com o aumento de denúncias e de processos judiciais contra essas famílias, eles viram que era importante ter regulamentado o direito de escolher e praticar a educação domiciliar. A defesa da diretoria da ANED é que fosse uma regulamentação o mais aberta possível, próxima ao projeto inicial apresentado pelo Lincoln Portela. Nesse sentido, o substitutivo aprovado traz descontentamento dado que apresenta muitas exigências, como menção à BNCC e outras já citadas. Porém, tem sido avaliado como necessário no momento, dado que, para as famílias que defendem a educação domiciliar, é melhor ter uma regulamentação com exigências, que podem ser revistas e flexibilizadas com o passar do tempo, do que não ter nada e as famílias continuarem a ser processadas caso não enviem os filhos à escola.
Temos visto um conjunto de transformações particularmente na educação básica nos últimos anos, com a reforma do ensino médio, BNCC, e alguns pesquisadores e militantes da área têm falado que se trata da implementação de um projeto neoliberal para educação. No artigo que você assina com o professor Romualdo Portela da USP, no dossiê ‘Homeschooling e o direito à educação’, organizado por vocês dois, vocês exploram a relação entre a educação domiciliar e a ideologia neoliberal. Pode falar sobre isso?
O que a gente percebe é que os argumentos em defesa da educação domiciliar são argumentos presentes nos fundamentos do neoliberalismo. O questionamento sobre o papel do Estado, a negação da compulsoriedade da educação escolar e a ênfase no indivíduo, na liberdade individual, são argumentos comuns nas propostas do neoliberalismo. E aí entra a relação com o homeschooling e os discursos de liberdade de escolha, de liberdade dessas famílias de optarem pelo que consideram ser a melhor educação dos filhos. Isso acaba atacando um projeto de educação pública que está na Constituição Federal de 1988, na LDB e no Plano Nacional de Educação, que implica na busca, como sociedade, por uma educação de qualidade, justamente porque prevê a retirada de esforços, recursos e a atenção do poder público que deveria estar voltada para viabilizar uma escola pública de qualidade para a maioria da população e as direciona para o âmbito individual/privado de algumas famílias.
Os argumentos em defesa da educação domiciliar ou em defesa desse projeto de lei são também contraditórios porque alegam inclusive que retirando essas crianças das escolas vão onerar menos o Estado, dado que elas estarão em casa com os pais. Mas, por outro lado, é um projeto que se aprovado vai demandar mais do Estado para viabilização e fiscalização da prática. Então, é uma defesa de menos interferência do Estado e ênfase no individualismo, muito ligada ao neoliberalismo, mas que acaba usufruindo de recursos públicos e, consequentemente, onerando o Estado. A ênfase no livre mercado também entra nesse debate. Por isso os adeptos à educação domiciliar, por exemplo, não veem como problema e, inclusive, valorizam o crescimento do mercado editorial voltado a esse público.
O homeschooling talvez seja mais um dos braços desses projetos neoliberais entrando na educação. Lubienski, um autor norte-americano que participou do Dossiê que citou, vai dizer que o homeschooling é a privatização da educação no sentido mais extremo, pelo fato de trazer para o âmbito privado da família uma função que é historicamente reconhecida como uma função social e pública, que é a educação. Nesse sentido, essa tarefa não deveria ser exclusiva da família.
O que existe de dados, de informações, sobre a prática da educação domiciliar no Brasil? Qual é o perfil das famílias que o adotam, quantas são?
Aqui no Brasil temos visto um número crescente de estudos e pesquisas acadêmicas sobre a educação domiciliar na última década. Elas se concentram na área do direito e na área da educação, justamente com esse olhar tanto de uma discussão jurídica sobre a legalidade ou não da prática, como de uma análise sobre o que significa esse movimento para a educação brasileira. Mas são escassas as pesquisas em outras áreas como a psicologia, por exemplo, que poderia analisar de que maneira esse movimento pode impactar a vida da criança ou das próprias mães, mulheres que optam por não desempenhar outras funções e ficam exclusivamente no contexto do lar e da maternidade. Na sociologia também ainda são incipientes os estudos e pesquisas que analisam a educação domiciliar e essa produção de pesquisas acadêmicas sobre a temática é fundamental. No que se refere ao número e perfil das famílias e mesmo as motivações pela educação domiciliar, não conseguimos ter dados que sejam fidedignos, justamente porque não há um direito legal das famílias praticarem essa modalidade de educação no país. A ANED apresenta uma estimativa de cerca de 16 mil famílias, mas este pode ser um número que representa ou não a realidade, dado que a associação, que defende a causa, tem interesse em mostrar o movimento como crescente. Por outro lado, pode ser inclusive um número que esteja muito aquém do real, porque muitas famílias se escondem, têm receio de responder pesquisas e dizer que fazem educação domiciliar com medo de serem denunciadas e processadas. É fato que com o apoio do governo federal à temática muitas famílias se sentiram encorajadas e passaram não apenas a afirmar que fazem a educação domiciliar, como publicizar a defesa de sua regulamentação.
Mas é correto dizer que essas famílias pertencem aos estratos mais ricos da população, e que a regulamentação não deve alterar esse quadro? A própria exigência de que os pais ou responsáveis devem ter nível superior ou curso de educação profissional tecnológica no PL 3.179/12 sinaliza que a educação domiciliar será um direito para poucos no Brasil, não?
Exatamente, esse é um outro ponto. Os que defendem a educação domiciliar tentam se dissociar dessa crítica sobre esse ser um movimento elitista. A própria ANED afirma em seu site que não se trata de um modelo educacional elitista, dado que maioria das famílias é de classe média. Contudo, o fato é que para que aconteça a educação domiciliar é necessário que um dos adultos da casa não esteja no mercado de trabalho, para ficar em casa com a criança e se responsabilizar pelo ensino dela; ou que se tenha recursos para pagar um professor ou tutor para acompanhar a criança. Assim, apesar da negação de que se trata de um projeto de elite, os dados revelam que não é um projeto para todos. Quem no Brasil hoje pode escolher abrir mão de estar no mercado de trabalho para ficar com os filhos em casa? Quem consegue estar matriculado no ensino superior? Então a educação domiciliar é sim um privilégio que é para poucos, ou que não é para todos. E essa é uma das questões fundamentais nesse debate. Porque historicamente, como sociedade, lutamos pela ampliação do acesso à escola e, consequentemente, pelo direito à educação de todos e o que a gente vê agora é a reivindicação de um direito que não é para todos. E não é para todos justamente por esse fator socioeconômico que é fundamental para a escolha, ou seja, o “direito de escolha” é apenas para aqueles com determinada renda e recursos possíveis para praticar a educação domiciliar.
Mas a aprovação desse projeto afeta também a população mais pobre, que não terá recursos para acessar a educação domiciliar? De que forma?
Como já ressaltei, se a gente cumprir tudo o que está no projeto de lei, a partir do momento que as escolas tiverem que dar apoio para essas famílias, que o poder público tiver que direcionar funcionários para cuidar do cadastro dessas famílias, para fazer a supervisão, entre outras ações previstas, a gente vai ter aí uma concentração de recursos e de esforços do poder público voltados para essa minoria. Então nesse sentido a aprovação da educação domiciliar afeta diretamente a população mais pobre que depende da escola pública. Estamos historicamente reivindicando mais recursos para a educação pública, uma valorização salarial e social maior dos professores, uma melhoria da qualidade nas escolas e agora, caso seja aprovado esse projeto pelo Senado, teremos que dividir os recursos que já são insuficientes também com esse público da educação domiciliar, que é um público minoritário e pertencente a uma determinada classe social.
Inclusive criando um certo sistema paralelo no que se refere ao que exige a legislação em relação à formação necessária para dar aulas na educação básica, porque para dar aula de biologia, por exemplo, precisa ser formado em biologia e ter licenciatura. Na educação domiciliar, o projeto de lei exige apenas um curso de nível superior ou de educação profissional tecnológica, em qualquer área...
Sim, é um movimento que acaba afetando ou contribuindo para uma desvalorização da profissão docente, justamente nesse sentido de não reconhecer a licenciatura como um curso fundamental para a formação de professores. Por que não é qualquer engenheiro que pode dar aula? Porque não basta ter concluído o curso de engenharia e saber tudo de cálculo 1, 2 e 3, por exemplo, para conseguir ensinar? Porque há saberes necessários para o exercício da docência que estão presentes nos cursos de licenciatura e que são fundamentais para essa prática. Quando, no projeto de lei, se exige dos pais um curso de nível superior em qualquer área, acaba-se descaracterizando aquilo que é essencial para o saber docente e, consequentemente, desvalorizando os cursos de licenciatura. Na Câmara, o debate sobre esse ponto acabou enfatizando muito mais a relação da escolaridade dos pais com o rendimento acadêmico das crianças. Mas nesse ponto tem uma questão fundamental que é novamente o fator socioeconômico.
As oportunidades que essas famílias que praticam a educação domiciliar têm proporcionado para as crianças contribuem para gerar um rendimento acadêmico que talvez não fosse muito diferenciado se elas estivessem em uma escola - não estou me referindo ao debate sobre a socialização e formação para a cidadania, mas ao capital cultural comum a essas famílias de classe média. Essas crianças geralmente têm acesso à cinema, teatro, museus, viagens, aprendizagem de outras línguas, entre outras oportunidades de adquirir conhecimentos que impactam em seus resultados acadêmicos, estudando elas na escola ou em casa. Não estou com essa análise afirmando que tais atividades podem substituir a escola, mas é necessário ressaltar a relevância do fator socioeconômico no debate sobre a educação domiciliar no Brasil. Diferentemente do contexto da América do Norte, por exemplo, em que há inúmeros parques públicos, bibliotecas públicas e ginásios esportivos utilizados pelos homeschoolers, no Brasil, infelizmente, são necessários recursos para ter acesso a uma série de bens e serviços culturais.
Uma outra frente de críticas que vinha sendo apontada a esse projeto era com relação à importância da escola no processo de socialização das crianças. Esse projeto contempla de alguma forma essa preocupação, na sua visão?
Eu penso que esse argumento da socialização é o que a gente precisa prestar bastante atenção e aprofundar as reflexões. E sinto que os que defendem a escola têm perdido um pouco nesse debate. Por quê? Porque as pesquisas internacionais sobre educação domiciliar já revelam que a questão da socialização não é um problema necessariamente no homeschooling. E é também por isso que a discussão do fator classe é a que mais se sobressai aqui no Brasil, pois essas crianças da educação domiciliar já estariam na escola privada se não estivessem sendo ensinadas em casa. Como no Brasil a classe média, que tem condições de pagar, tem liberdade de escolher a escola privada, essa escolha pode refletir o grupo social e também de confissão religiosa que os pais querem para a convivência dos seus filhos. Quando uma família escolhe um colégio católico, por exemplo, que tem uma determinada filosofia, professores, currículos e pessoas que professam a mesma fé católica e que pertencem àquela determinada classe social (que pode pagar pela mensalidade da escola), ela está de uma certa maneira selecionando ou limitando a socialização que os filhos terão.
Eu entrevistei uma vez um pai que pratica a educação domiciliar que fez essa afirmação: escolher a escola privada no Brasil é escolher a classe social que você quer com que seus filhos convivam. E ele tem uma certa razão. Essas crianças, mesmo se estivessem na escola, não estariam necessariamente convivendo com aquilo que é plural e diferente da família. Por outro lado, há também uma postura de quem defende a escola pública de apresentá-la de uma maneira muito romantizada, como uma instituição onde reina a pluralidade, onde se convive com pessoas de diferentes convicções religiosas, diferentes classes sociais etc. E a gente sabe que isso não necessariamente é verdade. Naquela escola pública da periferia vão conviver pessoas da periferia, não necessariamente haverá troca entre classes, por exemplo. Então, entendo que a questão da socialização perpassa por esse problema de quem são essas famílias que escolhem a educação domiciliar, que muito provavelmente já escolheriam um determinado tipo de socialização para os filhos nas escolas privadas e/ou confessionais, permitidas por lei no país.
O que as pesquisas internacionais mostram é que a socialização que acontece no ambiente escolar é importante, mas há outras oportunidades dessas crianças se socializarem, inclusive com pessoas de diferentes idades e não apenas com os pares, como acontece em sala de aula. Não estou querendo com isso atacar a escola e dizer que a socialização que lá acontece não é boa, mas que avalio que o argumento da suposta falta de socialização fora da escola é frágil para se combater a educação domiciliar no Brasil. Penso as críticas à educação domiciliar se dão sobretudo por ela apresentar um projeto de sociedade que não compactua com o projeto republicano que temos, de busca por uma educação pública de qualidade para todos. A educação domiciliar é um projeto egoísta, porque acaba retirando recursos da escola pública, que atende a grande maioria, para destinar para esse grupo minoritário. Se a gente defende que a escola existe para democratizar a sociedade, é necessário ressaltar o papel fundamental da escola na sociedade. Nesse sentido, cabe ao país um projeto que retira recursos e afeta a atuação do poder público para fomentar a qualidade das escolas e os transfere para um determinado grupo? Então penso que a crítica deveria ser mais por esse caminho do que pela discussão da socialização.