17 Mai 2022
Athos, o monte santo do monasticismo ortodoxo, está se tornando a cabeça-de-ponte da presença russa no Mediterrâneo, uma plataforma para os oligarcas e seus negócios, um chão fecundo para o nacionalismo russo na tradição czarista? Um artigo no Bild Zeitung, publicado em 08 de maio, levanta o alerta que está saltando em muitos jornais europeus. Os jornais reivindicam estar em posse de um relatório confidencial sobre atividades criminais de monges pró-Rússia no Athos (com lavagem de dinheiro, armas e tráfico).
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 1¬6-05-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Uma das pessoas citadas no artigo, o hegúmeno (superior) da Comunidade Monástica de Esfigmenou, Bartolomeu, minimiza e especifica as acusações que ele faz: ele não tem notícia de espiões ou tráfico financeiro, mas nota que o aumento do nacionalismo russo e um espaço incontrolável no seu mosteiro.
A reivindicação do poder czarista sobre toda a área de Athos é acompanhada pelo desejo da atual Igreja Ortodoxa Russa de dividir as comunidades gregas, como as de Constantinopla ou Chipre, criando novas eparquias (dioceses) de obediência russa. “O que o estado grego está esperando para acordar? Que Athos se torne uma base para navios e submarinos russos? Para que os sonhos imperiais dos czares sejam realizados?”. Ao semanário alemão Spiegel, o ex-primeiro-ministro russo Spephashin (1999) confidenciou seu desejo de um Athos totalmente independente.
A queixa de hegúmeno Bartolomeu diz respeito a um edifício no centro do mosteiro de Esfigmenou que está nas mãos de monges dissidentes há décadas, um lugar ingovernável, aberto às presenças nacionalistas russas (bandeiras, organizações sectárias, nacionalistas cossacos, alianças com oligarcas generosos, com cobertura da mídia), removido da responsabilidade tanto do hegúmeno, do governo monástico (Hiera Kinotis) e da jurisdição de Constantinopla.
Para defender seus direitos, eles foram aos tribunais civis até o mais alto tribunal de Atenas, mas sempre foram rejeitados. Os monges rebeldes não se referem canonicamente a Constantinopla ou mesmo Atenas, mas a uma igreja grega cismática que no início de 1900 se opôs à mudança do ano litúrgico para o calendário “juliano”, chamado de “calendarista”. Suspeita-se de ligações de interesse entre Moscou e os “calendaristas” cismáticos para colocar a Igreja grega em apuros após concordar com a autocefalia ucraniana. Um viveiro russófilo fora de controle que ameaça poluir a extensa influência da Rússia na Península de Athos.
Além do mosteiro de Esfigmenou existe outro, chamado “russo”, Agios Panteleimon e um terceiro, recentemente restaurado, Ksilurgu. O primeiro e o segundo pertencem aos vinte mosteiros históricos que governam a unidade administrativa autônoma da península (cada mosteiro delega um monge ao sínodo, no qual são eleitos quatro monges que, juntamente com um governador nomeado pelo Estado grego, compõem o Hiera Kinotis, ou governo). A jurisdição canônica cabe ao patriarca de Constantinopla enquanto o território pertence à Grécia, que garante a segurança do local com sua polícia.
Há uma antiga tensão entre os monges e o patriarcado de Constantinopla que surgiu na década de 1960 com o início da ação ecumênica de Atenágoras. Os monges consideravam isso uma heresia.
Já em 1992, o Patriarca Bartolomeu censurou os monges de Esfigmenou, chamando-os de “zelotes” (sectários) e exigindo que deixassem o mosteiro. Em 2003 houve um ultimato com a intervenção da polícia grega, mas eles não entraram no mosteiro devido às regras estabelecidas na constituição de Athos.
Os monges resistiram em um edifício central, enquanto o resto do mosteiro passou para a nova comunidade. Esfigmenou tornou-se o emblema não só da resistência anti-ecumênica (que, aliás, é muito difundida em Athos), mas também do apoio à tradição russa, beneficiando-se da proteção da Igreja e do poder russo. As visitas de Vladimir Putin a Athos em 2005 e 2016 são bem conhecidas. Neste caso, na companhia do Patriarca Kirill, para solenizar a presença milenar dos russos. Falando aos monges, Kirill disse:
“Rezem por nossa pátria, que hoje tem uma responsabilidade especial, inclusive pela preservação da Ortodoxia. Sabemos que o inimigo da humanidade está se levantando contra a Igreja hoje, e talvez os ecos dessa luta difícil estejam chegando até vocês. Nós, no meio do mundo, estamos na linha de frente desta luta: e quanto precisamos de sua ajuda, seu apoio espiritual, sua lembrança na oração, todos os dias e todas as horas, por todo nosso povo, nossa Igreja e por toda a humanidade”.
Mosteiro no Monte Athos. Foto: Pixabay
As generosas ofertas dos oligarcas para a restauração de igrejas, mosteiros e capelas no Monte Santo são bem conhecidas. Os maiores investimentos para restauração, no entanto, vêm do Estado grego e principalmente de fundos europeus. Dos cerca de 1.500 monges atualmente em Athos, cerca de 100 são de filiação russa.
Juntamente com sérvios, búlgaros, romenos e alguns ocidentais, formam a diversificada comunidade de residentes. O cisma intra-ortodoxo primeiro (autocefalia ucraniana) e a atual agressão da Rússia contra a Ucrânia estão testando a concórdia e a serenidade internas. A luta internacional contra o tráfico russo e as substâncias dos oligarcas reacendeu a atenção da inteligência.
Além do conteúdo dos documentos em poder do Bild Zeitung, o Ministério do Interior grego fortaleceu o serviço policial, garantindo maior controle sobre quem entra e sai de Athos. Um discurso que surgiu a partir de relatos sobre uma tentativa de envolver alguns mosteiros em jogos geopolíticos muito maiores que os 390 quilômetros quadrados da península. Alguns elementos já estavam nas mãos dos serviços de inteligência quando vários diplomatas que tinham intensa atividade na região foram expulsos da Grécia em 2018.
Além de crônicas recentes, Athos representa um dos mais preciosos locais da espiritualidade ortodoxa. O ideal Athonita é o brilho do Cristo do Tabor, a vinda da santa luz na hesychia (o estado de quietude e silêncio dos cristãos que superaram as tempestades e permanecem em Deus). Aderência estrita à liturgia, leis monásticas e o governo das regulações da vida do Monte Santo dão o panorama para uma busca espiritual que tem elevados picos.
Ícone ortodoxo russo da Transfiguração de Cristo, de Teófanes, o Grego (1408)
Teólogos e santos como Diadochos de Photiki, Máximo o Confessor, Gregório Palamas até Silvanos do Monte Athos constituem um tesouro sem paralelos. Mais valioso que o cenário e a herança arquitetural declarada como Patrimônio Mundial da Unesco em 1980. Mais central que as crônicas mencionadas acima.
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Athos e os zelotes pró-Rússia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU