04 Mai 2022
"Sou enviada por minha comunidade para anunciar o Evangelho e sou paga pelo hospital público para desempenhar meu trabalho como médica prisional. O fato de trabalhar na prisão, onde o anúncio explícito está fora de questão, me permite ler a Bíblia e viver a minha fé de uma maneira diferente".
Religiosa dominicana e médica prisional, Anne Lécu é autora de inúmeras obras, entre as quais Hai coperto la mia vergogna (2017) e Il senso delle lacrime (2018), publicados na Itália pela Edizioni San Paolo.
"Trabalho essencialmente com mulheres (prisioneiras) e, por exemplo, muitas param de menstruar. Há também muitos problemas de pele: eritema, pruridos. A pele é o maior órgão. Uma mulher que teve uma grave erupção me explicou que seu corpo que transpirava não era outra coisa senão sua alma que chorava as lágrimas que ela não conseguia derramar. Algumas mulheres que haviam sido reduzidas a trapos, engolindo doses de cocaína para contrabandear a drogas, ganharam muito peso".
A entrevista é de Marie Lucile Kubacki, publicada por Donne Chiesa Mondo, maio-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Venha e veja... - é o conselho que religiosa dá para as jovens que pretendem entrar na visa religiosa - Mas conserve seu espírito crítico. Cuidado, porque existem comunidades desviantes, e não é, por exemplo, pela presença de muitos jovens que a vida na Igreja é vivida. Às vezes, os abusos de poder estão escondidos por trás de fachadas vistosas de certas comunidades. O critério decisivo é como os institutos permitem desenvolver a liberdade interior. Devemos controlar para que as comunidades não pratiquem a clonagem, para que existam diversidades de opinião, diferentes formas de entender a fé e de votar, e conflitos ideológicos, porque é isso que permite saber se há liberdade de pensamento dentro da comunidade. E se insistem e mandam todos os dias um monte de sms para saber como você está durante o retiro, fuja".
Como você entendeu que tinha uma vocação religiosa?
Não sei exatamente o que é uma "vocação religiosa"... É comparável ao que Michel de Certeau escreve sobre o poeta. "O poeta não pode fazer nada além de escrever poesia." Se ele pode fazer outra coisa, é porque não é um poeta. Mesmo o religioso não pode fazer outra coisa senão ser religioso. É paradoxal, pois a escolha da vida religiosa é uma das tantas opções de um caminho possível para a felicidade e ao mesmo tempo não é possível fazer de outra forma. Então, quando encontrei a família dominicana, sabia que estava em minha casa. E eu quis tentar viver esta vida.
Como você concebe sua missão como médica prisional?
Sou enviada por minha comunidade para anunciar o Evangelho e sou paga pelo hospital público para desempenhar meu trabalho como médica prisional. O fato de trabalhar na prisão, onde o anúncio explícito está fora de questão, me permite ler a Bíblia e viver a minha fé de uma maneira diferente.
É a partir do que vivo lá que posso anunciar o Evangelho ao exterior, num tom que se tornou meu graças à prisão. Trabalhando em um lugar como este, a pessoa é obrigada a se posicionar e eu me coloquei do lado dos culpados.
A figura que me inspira é a de Cristo crucificado entre os dois ladrões. Quando se passa na frente dele, não se sabe a priori que ele é mais inocente do que os outros dois... Pierre Claverie, que foi assassinado um mês antes de eu professar meus primeiros votos, havia escrito, pouco antes de sua morte, que a Igreja não poderia ser a Igreja de Cristo se não estivesse ao pé da Cruz, sem a qual seria uma ilusão mundana. Deve haver pessoas entre nós presentes em lugares emblemáticos do desespero humano, para nos fazer sentir que uma vida é possível. Em primeiro lugar, trata-se de anunciar às pessoas que têm o direito de viver. Anunciar Cristo talvez seja antes de tudo anunciar às pessoas que têm o direito de viver.
É porque não acreditam mais?
Entre aqueles que frequento na prisão, esse é muitas vezes o caso. A maior condenação é pensar que não há direito de existir, que se está sobrando neste mundo e que seria melhor não existir. Mas isso não acontece apenas na prisão. Podem senti-lo também pessoas que não levam necessariamente uma vida catastrófica, como acontece também conosco, na vida religiosa. Como recordamos a nós mesmas, entre nós, que a nossa vida não é imprópria?
Existem doenças específicas na prisão?
Prefiro dizer que há razões para consultas particulares, ligadas à reclusão. Trabalho essencialmente com mulheres e, por exemplo, muitas param de menstruar. Há também muitos problemas de pele: eritema, pruridos. A pele é o maior órgão. Uma mulher que teve uma grave erupção me explicou que seu corpo que transpirava não era outra coisa senão sua alma que chorava as lágrimas que ela não conseguia derramar. Algumas mulheres que haviam sido reduzidas a trapos, engolindo doses de cocaína para contrabandear a drogas, ganharam muito peso.
O corpo tomou a forma do que lhe aconteceu.
Qual é a pior coisa na prisão?
O pior é ser abandonado, não ter respostas para as perguntas que se fazem.
Uma senhora latino-americana me explicou que não conseguia ligar para a família há dois meses porque havia um problema com o formulário a ser preenchido e que ninguém se preocupava em chamar um tradutor. Ele não podia ligar para a sua família para o Natal.
A prisão deu-lhe um tom particular no anúncio do Evangelho...
Eu não saberia, foi uma coisa que me contaram. A vida na prisão te despoja da langue de bois, da linguagem enganosa. Às vezes posso ser brutal, na vida cotidiana, o que não é necessariamente a melhor coisa a fazer, mas vou direto ao ponto. Os confrontos entre ambientes diferentes produzem coisas interessantes. Por isso penso que a vida religiosa deve respeitar as diferenças: estar com os ricos e com os pobres, estar com os inocentes e os culpados. É nessa tensão que algo pode surgir.
O fato de ser religiosa tem um impacto em sua missão?
Só quem já esteve encarcerado pode conhecer a vulnerabilidade dos detentos.... E não é o meu caso. Mas conheço a vulnerabilidade de viver em uma instituição que envelhece, que não sabe o que a espera daqui a dez anos e se a vida em comum ainda será possível. Essa insegurança básica me permite compreender uma forma de vulnerabilidade que não é a minha, aquela dos detentos. Coloca-me numa posição em que não se trata de oferecer respostas, mas de saber ouvir as lamentações. Pessoalmente, acho muito mais difícil suportar a lamentação das minhas irmãs do que a dos detentos, porque aquela lamentação é mais próxima de mim: também é minha.
Como você explica o declínio das vocações religiosas femininas?
Há uma dispersão de forças vivas ligada à multiplicidade dos institutos, que não confere o mesmo dinamismo ou a mesma atratividade que tem os institutos masculinos, por exemplo.
As grandes famílias religiosas estão, sem dúvida, destinadas a durar, mas acho que não será tão indispensável ter tal multiplicidade de congregações femininas ligadas a essas grandes famílias. Como fazer para sustentar a vida consagrada? Se as forças vivas são dispersas, se esgotam, mas se forem concentradas, o grão armazenado apodrece. São Domingos desde o início enviou seus irmãos dois a dois e foi isso que permitiu que a Ordem nascesse. Sempre nos encontramos entre dois riscos.
Que lições podemos tirar da história para o futuro da vida consagrada?
A vida religiosa, desde suas origens, é um colocar-se de lado. A figura emblemática para mim é Santo Antônio que vai para o deserto. Ficando de lado, está no centro. Como fazemos, com os números que temos, para estar presentes nas nossas comunidades ocidentais? Há coisas em que podemos contar: uma verdadeira competência sobre o envelhecimento e sobre a vida comum entre as diferentes gerações, de que a nossa sociedade necessita....Mas existe também este colocar-se lado que constitui a vida religiosa, cujos dois fundamentos são a solidão e o compartilhamentos dos bens.
O que você diria a uma jovem que deseja abraçar a vida religiosa?
Venha e veja... Mas conserve seu espírito crítico. Cuidado, porque existem comunidades desviantes, e não é, por exemplo, pela presença de muitos jovens que a vida na Igreja é vivida. Às vezes, os abusos de poder estão escondidos por trás de fachadas vistosas de certas comunidades. O critério decisivo é como os institutos permitem desenvolver a liberdade interior. Devemos controlar para que as comunidades não pratiquem a clonagem, para que existam diversidades de opinião, diferentes formas de entender a fé e de votar, e conflitos ideológicos, porque é isso que permite saber se há liberdade de pensamento dentro da comunidade. E se insistem e mandam todos os dias um monte de sms para saber como você está durante o retiro, fuja.
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Jovens, não se deixem clonar. Entrevista com Anne Lécu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU