"A comunidade eclesial vive simultaneamente a pescaria e o pastoreio, a missão em alto-mar e o cuidado pastoral em terra firme. Apascentar as ovelhas e guardar os peixes são tarefas permanentes da Igreja que requerem do/a pastor/a: discernimento, cuidado, partilha, testemunho, anúncio. Sede pastores com o ‘cheiro das ovelhas’” (Papa Francisco). "É preciso, cotidianamente, despertar nossa capacidade de atenção à vida, de missionar com outros, de deixar-nos surpreender diante da presença do Ressuscitado."
A reflexão é de Regina Candida Führ, religiosa da Congregação das Irmãs de Santa Catarina. PhD em Educação, ela é também doutora em teologia e mestre em educação. Atua como avaliadora dos artigos científicos para a Revista da ANEC, integra o grupo de mulheres do Mistério da Palavra na Voz das Mulheres – IHU/ Unisinos e é Missionária e facilitadora na etapa formativa do Juniorato em Mariveles, Província de Bataan – Filipinas.
1ª Leitura - At 5,27b-32.40b-41
Salmo - Sl 29,2.4.5-6.11.12a.13b(R.2a)
Salmo - AP 5,11-14
Evangelho - Jo 21,1-19
A liturgia deste 3º Domingo do Tempo Pascal recorda-nos que a comunidade cristã tem por missão testemunhar e concretizar o projeto libertador que Jesus iniciou. Ele, vivo e ressuscitado, acompanhará sempre a sua Igreja em missão, vivificando-a com a sua presença e orientando-a com a sua Palavra.
A primeira leitura apresenta-nos o testemunho que a comunidade de Jerusalém dá de Jesus ressuscitado. Pedro e os demais apóstolos dão testemunho da paixão e da ressurreição, e apresentam o Ressuscitado como o Salvador. Esse testemunho é concedido pelo Espírito Santo. Embora o mundo se oponha ao projeto libertador de Jesus, testemunhado pelos discípulos, o cristão deve antes obedecer a Deus do que aos homens.
A segunda leitura apresenta Jesus, o “Cordeiro” imolado, que venceu a morte e que trouxe à humanidade a libertação definitiva. No contexto litúrgico, o autor põe a criação inteira a manifestar diante do “Cordeiro” vitorioso a sua alegria e o seu louvor: tudo, no céu, adora ao Pai e ao Cordeiro.
O Evangelho apresenta os discípulos em missão, continuando o projeto libertador de Jesus, porém recorda que a ação dos discípulos só será coroada de êxito se eles souberem reconhecer o Ressuscitado e se deixarem guiar pela sua Palavra.
A palavra anunciada pelos apóstolos provoca transformações na vida do povo e enfrenta a resistência de pessoas e líderes da sociedade perversa. Trata-se de um resumo do querigma cristão: anúncio do ressuscitado como Guia e Salvador, para conceder a Israel o arrependimento e o perdão dos seus pecados (cf At 5, 31), o que supõe a conversão. Pedro, diante do sinédrio aparece como líder e porta-voz e em nome dos outros apóstolos se dirige ao sumo sacerdote: “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens” (cf. At. 5,29b) e pronuncia mais um testemunho da ressurreição de Cristo, que os chefes judaicos mataram.
Pedro e os apóstolos têm a convicção de que Deus é o absoluto de suas vidas e, por isso, são capazes de grandes sacrifícios, renúncias e de praticar gestos heroicos.
A proposta de Jesus é libertadora e transformadora e se opõe ao sistema social, político, econômico e religioso que gera injustiça, morte e opressão. Esta proposta é rejeitada e combatida por aqueles que dominam o mundo e que oprimem os pobres. Isto justifica porque o testemunho coerente e verdadeiro sobre Jesus não é um caminho de glória, de aplausos, de honras, de popularidade, mas um caminho de cruz.
Eis o primeiro anúncio – o querigma – do qual nasce a Igreja, a nova humanidade, a nova criação. “Primeiro”, aqui tem o sentido de fonte, origem, princípio para a qual se deve voltar sempre de novo conforme expressa o Papa Francisco: “Como gostaria de encontrar palavras para encorajar um estado evangelizador mais ardoroso, alegre, generoso, ousado, cheio de amor até ao fim e feito de vida contagiante! Mas sei que nenhuma motivação será suficiente, se não arder nos corações o fogo do Espírito” (EG 261).
O texto nos apresenta a essência do querigma cristão: o vigor, o fogo, o entusiasmo, a alegria do reencontro dos Apóstolos com Jesus Cristo crucificado-ressuscitado, vivo no meio deles e que, movidos pelo Espírito Santo, se sentem honrados de dar testemunho da sua presença.
O salmo retrata o sentimento do pecador arrependido que acolhe a salvação, por isso, canta o louvor pela experiência da misericórdia de Deus em nossa vida. Quem acolhe a salvação e a misericórdia de Deus vê o seu pranto transformado em festa e a alegria acontecer depois do sofrimento: “Vós tirastes minha alma dos abismos e me salvastes, quando estava já morrendo!”
A segunda leitura mostra que Jesus, o Cordeiro imolado e agora ressuscitado, é digno de receber os sete (infinitos) títulos de reconhecimento por sua obra de redenção: poder, riqueza, sabedoria, força, honra, glória e louvor.
A leitura faz parte do enigmático livro “escrito por dentro e por fora, selado com sete selos”. Trata-se do livro da história da humanidade, o livro do sentido da vida – diante do qual não se encontrava ninguém digno de abrir e romper os selos do seu significado a não ser a misteriosa figura do Cordeiro imolado.
O Cristo, o Cordeiro imolado, morrendo na cruz, revela o quanto Deus ama seus filhos, sua história e o quanto a humanidade deve amar seu Deus. Um amor que não apenas perdoa e reconcilia, mas também que cria e recria o céu e a terra, fazendo surgir um novo paraíso, pois é o caminho que Cristo apresenta com sua morte-ressurreição. Por isso, o capítulo termina com um hino litúrgico de exaltação e adoração do Cordeiro, não apenas dos anjos, mas também, “de todas as criaturas que estão no céu, na terra, de baixo da terra e no mar, e tudo o que neles existe” (cf Ap 5,13). As criaturas que O adoram estão na luz de sua glória: esta é a sua salvação.
O texto do Livro do Apocalipse nos apresenta uma mensagem “eterna”, que revigora a nossa fé, que renova a nossa esperança e que fortalece a nossa capacidade de enfrentar a injustiça, o egoísmo, o sofrimento e o pecado. Diante desse “Cordeiro” vencedor, que nos trouxe a libertação, os cristãos veem renovada a sua confiança nesse Deus salvador e libertador em quem acreditam.
Os discípulos, depois da morte de Jesus, voltaram de Jerusalém à Galileia, onde tentaram retomar a vida que levavam antes de conhecer Jesus. Para eles, a história de Jesus tinha acabado e o seguimento resultara no fracasso. Em meio a estes sentimentos querem esquecer o que lhes aconteceu e se deixar conduzir pelas rotinas bem conhecidas da vida cotidiana. Simão Pedro anuncia que vai percar e os discípulos o acompanham (cf Jo 21,3), levando consigo os pesados fardos de seu passado. Contudo, sentem-se frustrados e desiludidos diante do esforço e das diversas tentativas da pescaria. As redes estavam vazias, pois os discípulos, atrelados ao passado, tinham pescado no mesmo lugar e do mesmo modo. O convite de Jesus: “Lançai a rede à direita do barco!” é profundamente provocador: mudem de atitude, inovem suas práticas, busquem outros espaços geográficos, saiam da rotina, sejam criativos.
No meio do fracasso revela-se a presença do Ressuscitado. E é Ele que, num gesto de hospitalidade, prepara a refeição, na praia, para os seus discípulos. A presença do Ressuscitado muda por completo o panorama de suas vidas: estavam tristes, cheios de medo e, de repente, se convertem em pessoas valentes, cheios de entusiasmo, de esperança, pondo-se a pregar e a dar testemunho em meio a todas as dificuldades. É a presença do Ressuscitado no meio deles que lhes devolve a alegria, paz, perdão e o sentido da vida e da missão.
A pesca é figura da Igreja na árdua tarefa de evangelizar. Sete pescadores representam a Igreja universal. Todos estão agindo sob a chefia de Pedro e aqui se realiza o que Jesus prometeu: “Vos farei pescadores de homens” (Mc 1,17; Lc 5,10). O número de peixes nas redes demonstra a missão universal: todos os povos fazem parte da Igreja e ela se mantém una, e não rompe.
Contudo, é importante perceber que a abundância da pesca acontece quando o discípulo amado reconhece o Senhor. O texto nos faz perceber que o sucesso da missão depende da experiência com o Ressuscitado, da obediência a sua Palavra e da partilha do pão (relembra a instituição da Eucaristia).
Na continuidade do texto, Jesus dialoga com Pedro sobre três perguntas, três respostas, três conclusões: apascenta, sirva, cuida das minhas ovelhas. Com estas palavras, Jesus confere a Pedro a tarefa de supremo e universal pastor do rebanho; confere-lhe o primado que lhe havia prometido quando disse: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. E eu te darei as chaves do Reino dos Céus” (Mt 16, 18-19).
Pedro, aquele que traiu Jesus por três vezes, é chamado para liderar a Igreja com a tríplice profissão do seu amor. A fidelidade, o amor e a misericórdia de Jesus, humanizam, reconstroem a vida e reativam em Pedro a liderança para o serviço. “A pessoa amadurece constantemente no conhecimento, amor e seguimento de Jesus Mestre, se aprofunda no mistério de Sua pessoa, de Seu exemplo e de Sua doutrina” (Doc. Aparecida, n. 277). A confiança e o perdão do mestre fizeram de Pedro uma pessoa nova, forte, humana solidária e fiel para sempre.
A pescaria do lago Tiberíades aponta para a missão; o pastoreio de Pedro tem em vista os posteriores cuidados “pastorais”. O/a pastor/a precisa de um olhar amoroso/a que vai além de seu espaço geográfico, e o/a pescador/a precisa de um olhar apurado para o discernimento diante da multidão dos peixes e da amplitude do mar.
A comunidade eclesial vive simultaneamente a pescaria e o pastoreio, a missão em alto-mar e o cuidado pastoral em terra firme. Apascentar as ovelhas e guardar os peixes são tarefas permanentes da Igreja que requerem do/a pastor/a: discernimento, cuidado, partilha, testemunho, anúncio. “Sede pastores com o ‘cheiro das ovelhas’” (Papa Francisco). É preciso, cotidianamente, despertar nossa capacidade de atenção à vida, de missionar com outros, de deixar-nos surpreender diante da presença do Ressuscitado.
Enfim, o amor é que leva o/a discípulo/a a abandonar tudo e a seguir Jesus. Por isso, a conclusão de Jesus acerca do futuro de Pedro: “[...]quando, porém, fores velho estenderás os braços, e outro te cingirá e te levará para onde não queres. [...] Segue-me”. (Jo 21, 18b. 19b)
Em comunidade somos convidados/as a celebrar a beleza do amor salvífico de Deus manifestado na presença viva do Ressuscitado. É o Senhor que se revela nas “praias de nossa vida” e também nos espera nos fracassos, assim como esperou seus discípulos, com uma presença acolhedora, compassiva, misericordiosa, consoladora, por meio uma refeição de partilha singela, regada pela acolhida, amizade e humanidade. Esta sua presença renova em nós a aliança de amor, a fidelidade ao projeto do Reino e o compromisso missionário: Segue-me.
- Você percebe nos fracassos uma ocasião privilegiada para redimensionar a sua vida?
- Em que momentos da sua vida o Senhor tem se revelado de forma consoladora, misericordiosa, reconstruindo a sua história com novo sentido?
- Quais são as brasas que Jesus prepara ao amanhecer da sua escuridão e fadiga para que aconteça um missionar criativo e inovador com expressão de cuidado?