31 Março 2022
Foi um delicioso exercício "escolar": nas férias de verão pude traduzir a Sabedoria de Salomão, um livro bíblico escrito num grego bastante sofisticado e hibridizado de alusões e menções ao classicismo grego, que surgiu na diáspora judaica de Alexandria no Egito, no limiar da era cristã (talvez por volta de 30 a.C.). O pseudônimo remete ao famoso rei de Israel que viveu idealmente por quase dez séculos. Para ele, de fato, que reinou no século X. a.C., são atribuídos os Provérbios, uma coletânea heterogênea em termos de conteúdos e épocas históricas. A ele é atribuída aquela joia poética amorosa que é o Cântico dos Cânticos, certamente muito mais tarde. Até mesmo Eclesiastes se proclamará "filho de Davi", como foi Salomão, e estamos por volta do século III a.C.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 27-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sapienza di Salomone
Gianfranco Ravasi
il Mulino, pp. 160, 14€
Até mesmo o anônimo autor do livro da Sabedoria se reveste da glória e da sabedoria daquele soberano em cujos lábios é posto o programa acadêmico do Museon, uma espécie de "universidade" de Alexandria. O nosso Salomão grego, de fato, declarava: "Ele me concedeu o conhecimento exato de tudo o que existe, para eu compreender a estrutura do mundo e a propriedade dos elementos, o começo, o meio e o fim dos tempos, a alternância dos solstícios e as mudanças de estações, os ciclos do ano e a posição dos astros, a natureza dos animais e o instinto das feras, o poder dos espíritos e o raciocínio dos homens, a variedade das plantas e a propriedade das raízes. Aprendi tudo o que está oculto e tudo o que se pode ver, porque a sabedoria, artífice de todas as coisas, foi quem me ensinou”. (7,17-21).
A editora il Mulino optou para que na série “A voz dos antigos” (em tradução livre), dedicada a vislumbrar textos de autores clássicos, fosse incluída esta obra deuterocanônica, relegada entre os apócrifos pelo mundo protestante. Construída como um tríptico, o testo deste Pseudo-Salomão trata, em primeiro lugar, de um tema primorosamente grego, o da imortalidade, a athanasía/aphtharsía. É o testemunho de um espírito "ecumênico", aberto ao diálogo inter-religioso com o ambiente helenístico. No entanto, a consonância com o classicismo não impede que a proposta do nosso autor seja original, revelando assim um interessante equilíbrio entre razão e fé. O que ele delineia, sobretudo nos primeiros cinco capítulos da obra, é de fato uma imortalidade "bem-aventurada": ela não é só e nem tanto a consequência lógica de uma qualidade metafísica da psique, da alma, ou seja, da sua espiritualidade e, portanto, da incorruptibilidade, como ensinava a doutrina platônica do Fédon, mas é um dom, é uma graça divina.
Isso é demonstrado pela qualidade primorosamente teológica de tal imortalidade. De fato, implica a plena comunhão com Deus, consequência da intimidade que o fiel já desfrutava durante a existência terrena justa. Não é à toa que se afirma que "a justiça é a raiz da imortalidade" (1,15). Esse status de pessoa moralmente fiel é selado pelo episkopê, ou seja, pela "visita-juízo" que Deus realiza como sinal da história. Os ímpios, por outro lado, são relegados ao Hades, o she'ôl, o mundo inferior bíblico, que não é mais a morada indiferenciada dos mortos, mas que pode ser substancialmente ser identificável com o "inferno" formalizado mais tarde na tradição cristã.
A novidade em relação ao background bíblico e judaico também se revela em outras abordagens. A mulher estéril e o eunuco, considerados pelo antigo Israel quase como um ramo seco, são agora considerados modelos exemplares por causa da justiça por eles praticada e, portanto, são representados como aqueles que receberão um lugar qualificado na imortalidade bem-aventurada. Da mesma forma, o justo que morreu prematuramente, considerado como um amaldiçoado pela tradicional doutrina retributiva bíblica que na vida longa e patriarcal intuía uma recompensa celestial, já na Sabedoria é exaltado como favorito de Deus.
O nosso Salomão, além disso, confessa: “a imortalidade se encontra na aliança com a sabedoria" (8,17). Assim, entra em cena – nos cap. 6-9 do livro – o segundo painel do ideal tríptico, dominado pelo tema da sabedoria, outro dom divino de que o autor se sente investido. É uma visão antropológica, cosmológica e pedagógica já presente na literatura bíblica que, surgida de uma matriz principalmente egípcia, justamente com Salomão havia feito seu aparecimento em Israel. Em suma, a sabedoria - personificada como mulher amada - é marcada por uma busca "simbólica" e, portanto, global do ser e do existir. Como diz a palavra latina sapientia, trata-se sobretudo de "ter sabor", para que a inteligência se torne calorosa, capaz de unir em si mente e espírito, teoria e prática, conhecimento e paixão.
Deixamos ao leitor degustar o terceiro painel, o mais imponente, uma original meditação poética sobre o êxodo de Israel do Egito (c. 10-19). O embate entre os israelitas e os egípcios é interpretado como a eterna luta entre o bem e o mal, destinada, porém, a um desfecho mais luminoso. É confiado a uma espécie de afresco final onde aparece uma paisagem verdejante, com cavalos pastando pacificamente e cordeiros saltitando alegremente, uma pintura acompanhada por uma surpreendente metáfora musical. De fato, os elementos naturais “mudavam suas propriedades entre si, como na harpa os sons mudam de ritmo, conservando a mesma tonalidade" (19,18).
O presente artigo antecipa alguns dos temas do livro que estará nas livrarias italianas a partir de 31 de março.
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A sabedoria de Salomão, soberano bíblico envolto em classicismo. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU