28 Março 2022
A altamente aclamada reforma do Papa Francisco da Cúria Romana ascenderá ou cairá sobre as pessoas que ele escolhe para supervisionar sua implementação.
O comentário é de Robert Mickens, publicado por La Croix, 26-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Não é a revolução que tantas pessoas estão falando, mas esse pode ser um significativo passo na direção certa, dependendo do que acontecerá na sequência.
O Papa Francisco surpreendeu a todos na última semana quando ele pediu a publicação antecipada de uma nova constituição apostólica que codifica sua reforma para a burocracia central da Igreja Católica, conhecida como a Cúria Romana.
O novo texto – Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho) – foi publicado antes de sua edição final. Isso inclui no documento vários erros de gramática e até um erro factual – o uso obsoleto do termo “forma extraordinária do Rito Romano” (Sec. III, art. 93).
Ademais, o documento foi publicado apenas em italiano. Isso é inaceitável para um texto que insiste que as pessoas que são contratadas para trabalhar na Cúria Romana “devem espelhar a catolicidade da Igreja” pela consagração de “diversas culturas” de todo o mundo (Sec. II, art. 10).
Diversas culturas significa também diversos idiomas. Mas como está agora, a maioria dos católicos que vivem no planeta Terra não estão aptos a lerem Praedicate Evangelium até que as traduções sejam providenciadas.
As autoridades do Vaticano não deram indicações de quando isso vai realmente acontecer. Eles precisam primeiro corrigir a edição italiana. O tempo está do lado deles, no entanto. O novo documento não entrará em vigor até 05 de junho – o que acontecerá no Domingo de Pentecostes.
E, finalmente, a publicação da nova constituição apostólica não foi anunciada com antecedência, o que é prática padrão para um documento de tal porte.
Uma verdadeira vergonha neste caso, pois este é apenas o quinto grande texto em toda a história da Igreja para definir as estruturas e tarefas da Cúria Romana.
As razões pelas quais foi lançado tão apressadamente não são claras. A única coisa certa é que foi feito por ordem do papa. Ninguém mais tinha autoridade para fazê-lo.
Isso tudo é muito lamentável porque o Praedicate Evangelium é um grande negócio – tanto por razões históricas quanto por seu conteúdo.
A primeira constituição que regulamenta a Cúria Romana data do século XVI.
Os documentos mais recentes para “reformar” esta estrutura vaticana foram publicados por Paulo VI em 1967 (apenas dois anos após o fim do Concílio Vaticano II) e por João Paulo II em 1988 (para melhor “corresponder à eclesiologia enunciada” pelo Vaticano II).
Esta última edição de Francisco – que tem 54 páginas e inclui 250 artigos – é fruto dos esforços do atual papa durante seus nove anos no cargo para mudar o ethos e renovar as estruturas do aparato vaticano.
Seu objetivo sempre foi tornar a Cúria Romana mais apta para a evangelização e ajudá-lo em seu ministério como pastor principal da Igreja universal.
O novo documento não marca realmente uma revolução porque, francamente, a estrutura básica que foi criada pelo Papa Sisto V em 1588 permanece quase completamente intacta.
Os nomes e competências de determinados escritórios ou departamentos foram alterados. Alguns foram fundidos, outros suprimidos. Existem também algumas novas agências, conforme exigido pela passagem do tempo.
Quase nenhuma dessas alterações é uma surpresa. Francisco realizou a maioria delas peça por peça ao longo dos últimos anos.
Mas o papa jesuíta fez mais do que apenas mexer. Na verdade, ele escreveu algumas mudanças importantes neste novo texto legal. E se ele e seus sucessores realmente os realizarem, isso pode levar à “revolução” de que muitos estão falando.
O preâmbulo do Praedicate Evangelium afirma que esta nova “atualização (aggiornamento) da Cúria deve prever (prevedere) o envolvimento de leigas e leigos (laiche e laici) em funções de governo e responsabilidade” (Sec. I, art. 10).
Dar aos leigos “papéis de governo” em cargos que auxiliam o papa em seus deveres pastorais para a Igreja universal é uma mudança importante.
Cada instituição curial cumpre sua missão específica em virtude do poder que recebe do Pontífice Romano, em cujo nome atua com poder vicário no exercício de seu munus primacial. Por isso, qualquer fiel batizado pode presidir a um Dicastério ou Órgão, dependendo da competência, poder de governo e função que essas entidades tenham (Seção II, parágrafo 5).
Isso significa que a autoridade para governar na Cúria não é conferida por meio de Ordens Sagradas, mas por delegação do papa. Em outras palavras, a pessoa exerce esse poder vicariamente em nome do Pontífice Romano.
E pode-se presumir que o mesmo princípio pode ser aplicado em nível local. Um bispo deve poder delegar um leigo para ser seu “vigário” em certas áreas, o que pelo menos um bispo (Charles Morerod, dominicano, da Suíça) já começou a fazer.
Outra mudança reflete o desejo do Papa Francisco de promover uma “descentralização saudável” da autoridade decisória na Igreja Católica, concedendo mais autoridade aos bispos diocesanos, especialmente por meio das conferências episcopais nacionais e regionais.
Desde que Francisco foi eleito e começou a mudar a forma como as relações são feitas no Vaticano, os escritórios da Cúria Romana tradicionalmente funcionavam como uma ponte – ou mais frequentemente como uma barreira – entre o Bispo de Roma e os bispos locais.
O preâmbulo de Praedicate Evangelium se esforça para corrigir isso, declarando este princípio orientador:
“A Cúria Romana não se interpõe entre o papa e os bispos, mas coloca-se a serviço de ambos de modo próprio à natureza de cada um” (Sec. I, art. 8).
Um terceiro item do novo documento também é importante observar. É assim que a Cúria Romana se relaciona com o Sínodo dos Bispos.
Provavelmente será uma surpresa para a maioria dos católicos e até para alguns bispos, mas esta instituição permanente, da qual o Pontífice Romano é o presidente, não faz parte da Cúria.
Mas, em todo caso, leia o que diz a constituição apostólica:
“As instituições curiais devem colaborar, de acordo com suas respectivas competências específicas, na atividade do Secretariado Geral do Sínodo” (Sec. III, art. 33).
Uma autoridade do Vaticano confirmou para um jornalista que isso não é uma escrita desatenta ou um erro tipográfico. O texto deliberadamente usa o termo “Sínodo”, mais que “Sínodo dos Bispos”.
E então o texto diz “o Sínodo oferece colaboração efetiva para o Pontífice Romano, de acordo com as formas estabelecidas ou que são estabelecidas por ele”.
Isso não é insignificante.
Sugere que mais mudanças podem estar sendo consideradas para esta instituição que atualmente é estritamente um corpo de bispos.
Ao longo dos anos, Francisco já abriu mais espaço para não-bispos (especialmente leigos) e deu-lhes mais responsabilidades (até mesmo alguma autoridade, como um voto deliberativo) do que seus antecessores.
Será que agora ele está contemplando uma grande reforma para simplesmente torná-lo “O Sínodo”? Pelo próprio nome, isso destacaria o fato de que este corpo não é mais propriedade exclusiva dos bispos.
Todo patriarcado ortodoxo tem um Santo Sínodo que também é composto por bispos. Mas a maioria desses órgãos também inclui um conselho misto de leigos e sacerdotes que têm certos poderes deliberativos e governamentais, incluindo um voto na eleição de seu patriarca.
Imagine o Sínodo dos Bispos sendo renomeado como (Santo) Sínodo da Igreja Católica Romana. Tal mudança está além do escopo ou preocupação da Praedicate Evangelium, mas a redação propositadamente escolhida neste documento sugere que uma reforma adicional pode estar em andamento também.
Até agora estamos falando apenas de palavras no papel – diretrizes, princípios e algumas modificações estruturais. Deve-se considerar a publicação da constituição apostólica como Fase I da reforma da Cúria Romana.
Por mais essencial que isso seja (ou tenha sido), a próxima fase será ainda mais crucial e determinará como essa reforma realmente será implementada.
A Fase II diz respeito às pessoas que o Papa Francisco agora coloca no comando dos tribunais, escritórios financeiros e “dicastérios” (essa estranha palavra grega que ele escolheu para chamar entidades que antes eram conhecidas como congregações e conselhos pontifícios) que compõem a Cúria.
Sua próxima rodada de nomeações será extremamente importante.
Ele precisa encontrar pessoas que estejam 100% de acordo com a visão de Cúria que ele escreve em Praedicate Evangelium. E eles precisam estar apenas comprometidos ao tipo de dinâmica missionária da Igreja que ele coloca adiante em Evangelii Gaudium, o plano deste seu pontificado.
Os novos candidatos aos cargos mais altos no Vaticano – e especialmente aqueles no segundo e terceiro níveis de governo – precisam ter determinação, disposição e energia para implementar a reforma.
Francisco tem a chance de fazer um grande número de mudanças significativas nos funcionários imediatamente.
O chefe da Penitenciária Apostólica e os prefeitos de sete dos 16 dicastérios – os de doutrina, bispos, Igrejas orientais, ordens religiosas, ecumenismo, desenvolvimento humano e o novo escritório de cultura e educação – já têm 75 anos ou mais (ou farão nos próximos meses). A maioria será substituída.
Vários dicastérios também precisarão de novos secretários – os funcionários de segundo mais alto escalão que basicamente supervisionam as operações diárias desses escritórios. Alguns já atingiram a idade de aposentadoria, enquanto outros estão em seus cargos há mais de dez anos.
Como a constituição apostólica anterior, este novo texto diz que os funcionários da Cúria normalmente cumprem um mandato de cinco anos, que pode ser renovado por mais cinco anos.
Mas nenhum documento estabelece um limite para vários desses termos. Isso levou alguns funcionários a passar a vida inteira no Vaticano.
Francisco precisa dar o tom de sua reforma logo no início e provar que essa disposição não continuará sendo tratada como letra morta. Ele também deve agir rapidamente para garantir que outras disposições da Praedicate Evangelium sejam devidamente colocadas em prática, porque não há garantia de que seu(s) sucessor(es) o farão.
O papa aumentou as esperanças de muitos católicos com a Fase I de sua reforma da Cúria Romana.
Se essas esperanças serão cumpridas ou frustradas, depende do que realmente acontece na Fase II.
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A próxima fase da reforma do Vaticano será crucial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU