28 Março 2022
Professor da Unicamp alerta para as conexões entre o modelo de agricultura fundado na proteína animal, o desmatamento e a crise climática.
“A maior parte do desmatamento da Amazônia, hoje, advém da nossa dieta carnívora. O que estamos colocando no prato está nos levando a cavar a nossa própria sepultura”. A frase forte é utilizada pelo professor Luiz Marques, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp), para chamar a atenção para a gravidade do problema da crise climática que a humanidade enfrenta hoje e para a dificuldade da maioria das pessoas em ter uma percepção correta sobre a dimensão e as implicações dessa crise.
Luiz Marques foi convidado pelo Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) para falar sobre esse tema na 19ª edição da Festa da Colheita do Arroz Agroecológico, realizada dia 18 de março, na sede da Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita (Coopan), em Nova Santa Rita, na Região Metropolitana de Porto Alegre.
Imagem: Luiz Marques | Foto: reprodução / Twitter Mídia NINJA
O professor da Unicamp falou sobre as relações entre a crise climática e o modelo de agricultura hegemônico no mundo, destacando a experiência do plantio de arroz agroecológico do MST como um exemplo e inspiração para o que deve ser feito para enfrentar os impactos dessa crise que já impactam o nosso dia. Em entrevista ao Sul21, Luiz Marques falou sobre essas conexões e defendeu a necessidade de transitarmos para outro sistema energético e outro sistema alimentar, “sem combustíveis fósseis e sem tanto consumo de carne”. Ele apontou o que está acontecendo na Amazônia como um cenário didático e dramático para entendermos essas conexões e suas consequências.
“No caso do Brasil, algo em torno de 80% do desmatamento na Amazônia, por corte raso, substituição de floresta por pastagens – estamos falando dos 800 mil quilômetros quadrados que já foram desmatados – se deve ao sistema alimentar fundado em nutrientes de origem animal ou em agricultura destinada à alimentação de animais para consumo humano. Parte importante da umidade que recebemos no sul do continente vem da Amazônia. As secas que estamos vendo não apenas no Sul do Brasil, mas também no Sudeste, em parte advém do desmatamento na Amazônia e a maior parte do desmatamento da Amazônia advém da nossa dieta carnívora”.
O sistema alimentar e o sistema energético, destaca ainda Luiz Marques, “se intercruzam, se interpenetram, interagem sinergicamente para alterar o sistema climático e toda a biodiversidade também”. O sistema alimentar e o sistema energético são globalizados. O que estamos colocando no nosso prato, hoje, no mundo inteiro, é cavar a própria sepultura. Esse modelo é insustentável, defendeu, e o próprio agronegócio será atingido por ele, pois não está entendendo o que está acontecendo no planeta e o impacto do atual modelo de produção agrícola sobre o nosso ecossistema. “Os capitães do agronegócio não entendem que estão cavando a sua própria sepultura, pois estarão entre os primeiros atingidos”, aponta.
A entrevista com Luiz Marques é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 23-03-2022.
Na Festa da Colheita do Arroz Agroecológico, você falou sobre os impactos que a crise climática já está provocando em nossa sociedade. E essa sociedade parece ainda não ter a percepção necessária para a gravidade do que está acontecendo. Como enfrentar esse problema da percepção social coletiva em relação à situação que estamos enfrentando?
A questão climática saiu do círculo dos especialistas a partir dos meados dos anos 80. Já se sabia bastante a respeito desde os anos 60 e, se você quiser ainda mais para trás, desde o século dezenove já se entendia o mecanismo segundo o qual o sistema Terra é um sistema onde o clima se mantém equilibrado na medida em que ele recebe tanta energia quanto ele dissipa. Estamos falando de um sistema complexo mas cujo entendimento pode ser reduzido a uma coisa simples: qualquer corpo se aquece se ele receber mais energia do que ele dissipa, ou ele esfria se dissipar mais do que recebe.
Até os anos 50 e 60, a quantidade de queima de combustível fóssil não estava numa escala capaz de alterar o sistema climático. Mas esse sistema é cumulativo porque o CO2 é um gás que tem uma permanência muito longa na atmosfera. Ele tem uma cauda longa de milênios. E essa acumulação fez com que, efetivamente, em um certo momento, o sistema climático começasse a se alterar. Esse é um processo que começou muito lentamente e ficou obscurecido pela oscilação, pela variabilidade natural do sistema terra. A partir de um certo momento, porém, fica claro o que estava acontecendo. Há uma histórica declaração do grande cientista americano James Hansen, em 1988, que afirmou que o sistema climático estava se alterando, que isso não iria acontecer no futuro, mas já estava acontecendo no presente e que não havia mais dúvida nenhuma de que se tratava de um processo que não tem nada a ver com a variabilidade natural do sistema climático.
Em 1988 também foi criado o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) que já fez seis relatórios, cada um deles mostrando com mais clareza e certeza o que está acontecendo no sistema terra. Esse aquecimento já ocorreu no nível de 1,2 grau Celsius. Parece que não é muito, né? A alteração de temperatura hoje, neste dia em que estamos aqui em Nova Santa Rita, vai ser muito maior do que de 2 graus Celsius, mas, em se tratando da temperatura média do planeta é muitíssimo.
Por que essa elevação de 1,2 grau Celsius já é grave?
O problema não é exatamente esse. A Terra já esteve mais quente do que isso. O problema é a rapidez com que essa mudança está ocorrendo porque o tempo é a variável mais importante na adaptação das espécies, sejam elas vegetais ou animais. Se eu disser para você que daqui a 300 anos vai ter um grau a mais no planeta, isso vai ser ruim, mas a gente se adapta. Mas se eu disser que, daqui a dez anos, nós teremos um aquecimento de meio grau na temperatura média do planeta, isso é extremamente preocupante. E é isso o que está acontecendo agora.
O sistema da aceleração, como mencionei, é muito enganoso. Porque, na nossa cabeça, nós reagimos pensando nisso tudo a partir da nossa experiência do passado. A aceleração é traiçoeira justamente porque ela não reproduz o passado. Tudo vai ficando cada vez mais rápido. Então, essa é a questão principal que deve nos preocupar. Nós devemos transitar para outro sistema energético e para outro sistema alimentar, sem combustíveis fósseis e sem tanto consumo de carne. Sei que ao falar isso aqui no Rio Grande do Sul, corro o risco de ser apedrejado.
Qual é, mais precisamente, a relação dessa situação de crise climática com aquecimento da temperatura média global com o modelo dominante de agricultura e de alimentação que temos hoje?
O planeta Terra tem, aproximadamente, 104 milhões de quilômetros quadrados que são terras emersas onde você pode morar. Não é o pico da montanha, não é o deserto do Saara, nem a Antártida. Esse sistema, agora, está sendo ocupado majoritariamente por pastagens ou por agricultura que cria ração animal, como a soja por exemplo. No caso do Brasil, algo em torno de 80% do desmatamento na Amazônia, por corte raso, substituição de floresta por pastagens – estamos falando dos 800 mil quilômetros quadrados que já foram desmatados – se deve ao sistema alimentar fundado em nutrientes de origem animal ou em agricultura destinada à alimentação de animais para consumo humano. E isso não ocorre só no Brasil. Se você pegar um mapa do que é hoje a transferência de soja de um continente para outro, verá que Brasil, Estados Unidos e Argentina são os maiores fornecedores de soja para a China. E o que a China faz com essa soja? Alimenta o porco. E a Europa? Alimenta o frango ou alimenta o peixe. Nós estamos vivendo uma situação que exige transitar para um outro sistema alimentar.
Outro problema de percepção é que muita gente aqui no Sul pensa assim: a Amazônia está longe, né? Isso vai demorar para nos afetar. Não é verdade. Já está nos afetando. Aqui no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, Argentina, Paraguai, etc., uma parte importante da chuva advém dos famosos rios voadores. A Floresta Amazônica recicla seis vezes a umidade atmosférica que recebe dos oceanos. Chove, essa água sobe pela evapotranspiração das grandes árvores, cai novamente e assim por diante. Quando essa água vai para o oeste do continente, ela bate nos Andes e vem para o Sul. Parte importante da umidade que recebemos no sul do continente vem da Amazônia. As secas que estamos vendo não apenas no Sul do Brasil, mas também no Sudeste, em parte advém do desmatamento na Amazônia e a maior parte do desmatamento da Amazônia advém da nossa dieta carnívora.
É simples, é uma cadeia de causa e efeito que qualquer pessoa pode entender. O mecanismo básico é esse. O sistema alimentar e o sistema energético se intercruzam, se interpenetram, interagem sinergicamente para alterar o sistema climático e toda a biodiversidade também. O sistema alimentar e o sistema energético são globalizados. O que estamos colocando no nosso prato, hoje, no mundo inteiro, é cavar a própria sepultura. Nós podemos mudar isso, fazendo uma agricultura que não envenena, uma alimentação baseada em ingredientes de origem vegetal. Os impactos vão existir. Existir significa impactar. Oito bilhões de pessoas no planeta obviamente impacta. Mas dá para impactar muito menos, dá para impactar de uma maneira onde sejamos capazes de nos adaptar. E dá para entender que se reflorestarmos, se diminuirmos nossa pegada ecológica, se jogarmos menos plástico no meio ambiente, podemos transitar para uma situação ambientalmente muito mais favorável do que a temos hoje.
O grande problema, na minha avaliação, é que não entendemos que o arco do desenvolvimento dos impactos se dá hoje no nível do decênio, não é um tempo geológico, mas histórico. Eu tenho 70 anos. Se eu viver mais dez anos eu vou ver uma situação de insustentabilidade da própria agricultura brasileira inclusive. Os capitães do agronegócio não entendem que estão cavando a sua própria sepultura, pois estarão entre os primeiros atingidos. Será atingido aquele cara que desmata para plantar soja, o que grila a terra, que compra a terra do grileiro e assim por diante. É um processo que envolve uma grande irracionalidade e irresponsabilidade, no qual todo mundo tem um pouco de culpa, inclusive a universidade que não está fazendo o trabalho dela como deveria para alertar a sociedade sobre o que está ocorrendo. E a imprensa também. Vocês estão aqui para falar sobre esse tema, mas isso não está sendo dito na Globo, na Record ou em outros grandes veículos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Clima e agricultura: ‘O que estamos colocando no prato está cavando nossa sepultura’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU