11 Janeiro 2022
“A China, que se fechara com a aplicação de medidas preventivas draconianas, havia retomado a normalidade econômica, enquanto o mundo ocidental, que não haviam imposto a disciplina social, estavam em estado de confusão. Disto, a China tirou a lição política fácil de que seu sistema era melhor do que o liberal e ineficiente do Ocidente. Mas se hoje nós estamos enfrentando uma doença endêmica, que durará por anos, a China está enfrentando escolhas políticas drásticas. Isso significa que com o passar dos anos continuarão os lockdowns e a tentativa de impor uma impossível prática de zero contágio?”, problematiza o sinólogo italiano Francesco Sisci, em artigo publicado por Settimana News, 10-01-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Há uma revolução política e social a nível global trazida pela transformação da covid-19 em uma doença endêmica que deve estar conosco por muitos anos.
Um ano atrás, a crença era que nós tínhamos encontrado um ponto de inflexão e logo a pandemia encerraria porque, bem, nós temos a vacina. Então, vacinamos todos, ou quase todos, nós adquirimos imunidade, e a vida voltaria a ser como era antes.
Doze meses depois, a situação parece muito diferente, a previsão para o futuro deve mudar, e as coisas não são tão cor de rosa.
A epidemia de covid-19 está fazendo milhões de novos infectados diariamente em todo o mundo, com a mais recente variante parecendo menos letal, mas muito mais virulenta que as anteriores. Nos países desenvolvidos, que conduzem a economia global, 20 a 30% da população recusa a vacinação por razões ideológicas.
Um grupo de soros tem provado ser muito efetivo em diminuir a severidade da doença, mas não o contágio. Alguém pode adoecer, mas a covid frequentemente se torna como um resfriado regular se alguém está imunizado. A vacina, no entanto, tem mostrado um colapso na efetividade depois de quatro meses, então agora é real a possibilidade de a população ter que tomar duas ou três doses por ano. O que significa proteger 40 a 50 milhões de pessoas três vezes em um ano na Itália, por exemplo?
Todos esses elementos estão abarrotando e explodindo sistemas de saúde pelo mundo, novamente, como nos últimos invernos, com consequências o cuidado de doenças ordinárias.
Nem a imunidade do rebanho será alcançada, então não há status quo ante para o qual retornar. A epidemia de covid não é um parêntese a ser aberto e fechado, mas muito provavelmente será uma doença com a qual o mundo terá que viver por muito tempo. Nesse caso, isso mudará nossas vidas inteiras.
As máscaras se tornarão semipermanentes e, basicamente, pararemos de apertar as mãos ou de abraçar e beijar como uma saudação.
Porém, mais estruturalmente, o mundo terá que aprender a conviver com um vírus que provavelmente continuará a sofrer mutações. Algo assim aconteceu com a descoberta da América. No século XVI, doenças como a gripe comum trazida pelos conquistadores espanhóis exterminaram a população ameríndia e a situação só se normalizou depois de décadas.
Os historiadores afirmam agora: “Os europeus trouxeram o sarampo, a varíola, a gripe e a peste bubônica através do Atlântico, com consequências devastadoras para as populações indígenas. Nossa estimativa mais precisa baseada em dados é um número de mortes de 56 milhões no início de 1600 – 90% da população indígena pré-colombiana e cerca de 10% da população global na época”.
Hoje, a medicina moderna previne o extermínio, mas a vacina não tem eficácia sustentável a tempo. Portanto, razoavelmente, o mundo precisa preparar instalações de saúde que lidem permanentemente com a covid por um período indefinido, que pode ser de muitos anos. Essas instalações devem ser separadas dos serviços regulares de saúde, para evitar o congestionamento e os curtos-circuitos que estão se multiplicando e enviando todos os serviços de saúde para uma pirueta.
Mas as consequências de viver com a covid por anos vão além dos cuidados de saúde. Um problema imediato são as viagens. Se o transporte aéreo quiser recuperar um mínimo de seu esplendor anterior, deve pensar em protocolos especiais para a doença.
Hoje, entre as verificações de ataques terroristas e solicitações de saúde, as viagens aéreas se tornaram muito mais longas e incômodas. Um voo de duas ou três horas na Europa exige uma espera de cinco ou seis horas entre a partida e a chegada para as inspeções de bombas e infecções. Além disso, quem chega corre o risco de ficar isolado. As férias de fim de semana acabaram basicamente. Portanto, é impossível voar a menos que seja estritamente necessário. Trens, ônibus e metrôs têm problemas semelhantes e também problemas específicos aos meios em questão.
Questões comparáveis surgem para todos os serviços: hotéis, bares, restaurantes, escritórios, escolas, reuniões esportivas. Em suma, é uma mudança de paradigma na vida social, talvez por alguns anos, talvez permanente. A coisa toda é então um “talvez”, porque talvez em alguns meses aconteça que a covid recue ou que uma nova vacina seja eficaz por anos. Mas a partir de hoje, isso parece altamente improvável. Precisamos nos preparar para estar à frente da curva.
Esse preparo não serve para deter a economia, que continua produzindo, e se faz de fato com a criação de um novo setor: prevenção e tratamento da covid. Mas terá que ser financiado. Por enquanto, isso é às custas da comunidade e do estado, mas por quanto tempo isso será sustentável?
As consequências internacionais são gigantescas. Uma guerra de contenção para a covid ao longo dos anos deve ser global, para limitar o fluxo contínuo de variantes mais ou menos letais e mais ou menos evitáveis por vacinas.
Além disso, isso abre uma questão política e nacional não trivial com a China, o centro do primeiro surto de covid.
O mundo ocidental, há dois anos, viu o surto como o “momento Chernobyl” da China. Ou seja, assim como o desastre de 1986 na usina soviética de Chernobyl mostrou a fraqueza do sistema e apressou seu fim, covid seria a favor do Partido Comunista Chinês. Mas não foi.
Um ano depois, porém, a China, que se fechara com a aplicação de medidas preventivas draconianas, havia retomado a normalidade econômica, enquanto o Ocidente e o mundo, que não haviam imposto a disciplina social, estavam em estado de confusão. Disto, a China tirou a lição política fácil de que seu sistema era melhor do que o liberal e ineficiente do Ocidente.
Mas se hoje nós estamos enfrentando uma doença endêmica, que durará por anos, China está enfrentando escolhas políticas drásticas. Isso significa que com o passar dos anos continuarão os lockdowns e a tentativa de impor uma impossível prática de zero contágio? Se, como parece, a covid permanecerá por muitos anos, então o recente lockdown de Xi'an foi desnecessário, e altamente danoso economicamente e de outras formas.
O que então fazer com as viagens internacionais? Sem contato direto, cada acordo tornar-se-á mais difícil, especialmente se o mundo permanecer aberto mesmo com todos os seus problemas, e a China tiver se fechado. Se a China decidir mudar sua estratégia e vida com a covid, no entanto, não estará apta a oferecer segurança total para seus cidadãos. Sua estrutura de saúde nacional é muito mais fraca que a do Ocidente, e suas vacinas são talvez menos eficientes.
Por outro lado, ignorar que a covid é uma endemia rapidamente transforma a China em uma nova Coreia do Norte, separada do mundo. Essa transformação será ainda mais traumática quando se tornar aparente que o resto do mundo escolheu conviver com a covid.
Em todo caso, qualquer escolha impõe um delicado e significativo direcionamento político no país, às vésperas do delicado Congresso do Partido no próximo outono.
Além disso, o mundo que escolheu viver com a covid-19 não está isento de problemas. A doença está em constante evolução e não existe o mesmo grau de endemicidade em todos os países. Também não existe o mesmo grau de cobertura vacinal. Na verdade, esse aspecto já estava presente, por exemplo, em muitas doenças endêmicas na África, mas não na Europa, como a malária ou a febre amarela.
Essas diferenças puderam ser administradas porque não se espalharam facilmente e existem vacinas e tratamentos muito eficazes. O mesmo não é verdade para a covid, e isso criará problemas crescentes para a circulação da população, o que multiplicará os problemas sociais e políticos de todos os tipos.
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