"Nós nos encontramos em face de enormes problemas globais e locais, que exigem esforços comuns das religiões. O 'diálogo da vida' é cada vez mais importante", afirma o teólogo alemão.
Se, de um lado, as pesquisas acadêmicas indicam que cresce o número daqueles que vivem indiferentes a Deus, não participam de nenhuma matriz religiosa e confiam que o desenvolvimento tecnológico e científico será a via para resolver os problemas da humanidade, para os mais otimistas, ou o caminho para tornar a existência humana ainda mais insustentável e miserável, para os pessimistas, de outro, o tempo litúrgico do Advento continua a repetir um convite e um chamado feito por Cristo: “Convertei-vos e crede no Evangelho”.
Antes de aceitar o chamado, contudo, é preciso responder a uma pergunta anterior: "Quem é Jesus?". Essa questão, proposta pela edição 248 da Revista IHU On-Line, em dezembro de 2007, continua a nos interpelar. Como respondeu Reinhold Bernhardt naquela ocasião, "Jesus Cristo representa a verdade de Deus, no modo como ela é transmitida no Novo Testamento. Segundo Paulo, ser cristão significa: estar-em-Cristo, e isto novamente significa: estar-na-verdade-de-Deus. Isto, primariamente, não é uma verdade proposicional, que se pode 'ter' e 'afirmar' como soma de convicções, mas é uma afirmativa confiável. Ela soa: 'Nada nos pode separar do amor de Deus'. Trata-se de uma verdade existencial, a partir da qual o ser humano pode viver. Ela renovadamente transforma sua vida".
A pergunta seguinte, "concreta", como lembrou o jesuíta Adroaldo Palaoro em seu Comentário do Evangelho durante o Advento, publicado na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, é: "Que devemos fazer?" Para respondê-la, Bernhardt recorreu à parábola do bom samaritano. "No exemplo do bom samaritano, Jesus não colocou os olhos no sacerdote, que ia apressadamente ao serviço divino em Jerusalém, nem no levita, porém em um homem da Samaria, por eles considerado como descrente, como desinteressado prestador de socorro. Para Jesus, não era decisiva a confissão religiosa, também não o reconhecimento dele pela fé (Mateus 7,21), porém fazer aquilo que Deus quer: solidariedade ativa para com famintos, enfermos, estrangeiros, prisioneiros (Mateus 25,31ss.). E assim ele dizia: 'Quem faz a vontade de Deus, é meu irmão e minha irmã e minha mãe' (Marcos 3,35). Por isso, 'virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, os que sentarão à minha mesa no Reino de Deus' (Lucas 13,39)".
Reinhold Bernhardt (Foto: Wikiwand)
Reinhold Bernhardt é, desde 2001, professor de Teologia dogmática e sistemática na Universidade da Basiléia, na Suíça. Em 1989, obteve seu doutorado na faculdade de teologia, em Heidelberg. O foco principal de seu trabalho é a teologia das religiões. É autor de, entre outros, Metapher und Wirklichkeit e Ende des Dialogs? Die Begegnung der Religionen und ihre theologische Reflexion, TVZ Zürich 2006. Em espanhol, pode ser lido o seu livro La pretensión de absolutez del cristianismo. Desde la Ilustración hasta la teología pluralista de la religión (Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000).
A seguir, reproduzimos a entrevista de Reinhold Bernhardt, publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 17-12-2007, disponível aqui.
IHU - Quem é Jesus? O que pode afirmar sobre Ele a partir de sua reflexão teológica?
Reinhold Bernhardt - Jesus é o “Representante” de Deus. Ele esteve tão perpassado pela força da presença de Deus, que se podia e se pode dizer: ele é a “imagem do Deus invisível” (Colossenses 1,15). Mas isto não se deve entender fisicamente, como se Jesus fosse Deus transformado num homem. Ele é plenamente homem, mas, como tal, ele está totalmente entregue a Deus, totalmente locupletado do Espírito de Deus, do incondicional amor humano de Deus, da vontade e da graça de Deus. Ele é “unido” (união espiritual) com Deus, porém não “um só” (unicidade física). Porque ele representou o universal e incondicional voltar-se de Deus para sua criação (re-presentar = tornar presente), em seu anúncio e em sua práxis ele ultrapassou limites étnicos, sociais e também religiosos.
Por isso, ele também apreciava não-judeus como escolhidos por Deus (Lucas 4,26s) e os destacou como modelos de fé (Mateus 8,5-13; 15, 21-28) – sem incitá-los a segui-lo. No exemplo do bom samaritano, Jesus não colocou os olhos no sacerdote, que ia apressadamente ao serviço divino em Jerusalém, nem no levita, porém em um homem da Samaria, por eles considerado como descrente, como desinteressado prestador de socorro. (Lucas 10, 29-37). Para Jesus, não era decisiva a confissão religiosa, também não o reconhecimento dele pela fé (Mateus 7,21), porém fazer aquilo que Deus quer: solidariedade ativa para com famintos, enfermos, estrangeiros, prisioneiros (Mateus 25,31ss.). E assim ele dizia: “Quem faz a vontade de Deus, é meu irmão e minha irmã e minha mãe” (Marcos 3,35). Por isso, “virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, os que sentarão à minha mesa no Reino de Deus” (Lucas 13,39).
IHU - Em suas obras o senhor defendeu a singularidade de uma inclusão não exagerada para obter uma reflexão correta sobre a relação do cristianismo com as outras religiões. O senhor sublinha a validade da pretensão cristã pela verdade, enquanto ela é entendida como expressão linguística e doxológica. O senhor sublinha corretamente que ela consiste numa proposição confessional com caráter existencial. Como desenvolve esta posição?
Reinhold Bernhardt - Jesus Cristo representa a verdade de Deus, no modo como ela é transmitida no Novo Testamento. Segundo Paulo, ser cristão significa: estar-em-Cristo, e isto novamente significa: estar-na-verdade-de-Deus. Isto, primariamente, não é uma verdade proposicional, que se pode “ter” e “afirmar” como soma de convicções, mas é uma afirmativa confiável. Ela soa: “Nada nos pode separar do amor de Deus”. Trata-se de uma verdade existencial, a partir da qual o ser humano pode viver. Ela renovadamente transforma sua vida.
Quando, na Bíblia, as pessoas se declaram partidárias de Cristo, elas não falam a linguagem dos fatos, e também não a linguagem da reflexão teológica, porém a linguagem da confissão e reconhecimento pessoal. Assim, eu também entendo a palavra de Cristo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14,6) como sentença experiencial de um cristão que crê em Cristo e que quer testemunhar ao outros humanos que em Cristo realmente está aberto o caminho para Deus. Confissão de adesão é louvor a Deus. E este louvor se articula na linguagem da louvação (doxologia). Deve-se considerar conjuntamente a espécie de linguagem na exposição das tradições bíblicas.
IHU On-Line - Como, em tempos de pluralismo religioso, pode ser justificada a pretensão de absolutez do cristianismo?
Reinhold Bernhardt - O cristianismo não pode impor para si mesmo, como religião, nenhuma pretensão de absolutez. Triunfalismo religioso é expressão de pecado como separação de Deus. O centro do cristianismo não é a religião cristã, porém Cristo como representante de Deus. Karl Barth, meu predecessor na Cátedra de Dogmática na Basiléia, distinguiu nitidamente entre religião e revelação. O autocentrismo da religião ele denominou de “descrença”. A religião autêntica é reconhecida no fato de que ela se autotranscende e relativiza, ou seja, que ela aponta para a inesgotável verdade de Deus que a precede. Esta verdade é absoluta. Todas as tentativas religiosas de entendê-la permanecem como historicamente relativas. Isto deveria tornar humildes os cristãos. A certeza da fé pode ser firme, sem precisar rejeitar e excluir outras certezas de verdade religiosa.
IHU On-Line - Que aspectos de um pensar e agir plural podem ser apontados na vida e na missão de Jesus?
Reinhold Bernhardt - De um lado, Jesus sabia ser enviado aos judeus (Mateus 15,24), e ele também enviou seus discípulos aos judeus (Mateus 10,5s). Assim, ele não teve nenhum motivo para polemizar com os cultos não-judaicos e com seus deuses enquanto tais. Ele não utiliza sua palavra para falar sobre a atividade multi-religiosa na cidade helenista de Sepphoris, que só distava 8 km de sua cidade natal Nazaré. E também não nos é transmitida nenhuma sentença contra outros povos ou cultos, mas simplesmente admoestações aos destinatários de seu anúncio, isto é, aos seus próprios adeptos. A eles se diz que Deus convida outros quando eles não seguem ao seu convite (Mateus 8,11s; Lucas 14,16-24).
De outra parte, Jesus transgrediu soberanamente limites religiosos, quando se tratava do advento do Reino de Deus. Ele estava convencido que Deus busca a salvação de todos e que ele, como bom Pai e bom Pastor vai em busca daqueles que se perderam (Lucas 15) e que ele não retira o convite para sua grande ceia, quando os primeiros convidados não a aceitam, porém estende o convite tanto mais longe (Lucas 14,16-23). Quando, segundo João 4, ele se sentou com a mulher samaritana junto ao poço e até ainda permaneceu dois dias em sua aldeia, ele quebrou um tabu: era proibido aos judeus ter contato com os desprezados samaritanos. Segundo Atos dos Apóstolos 10,34s, Pedro também reconheceu “que Deus não olha para a pessoa, porém que em qualquer povo lhe é bem-vindo quem o teme e faz o que é reto”.
IHU - Em que aspectos da vida de Jesus podemos refletir sobre uma posição situada além do relativismo e do fundamentalismo?
Reinhold Bernhardt - Jesus esteve plenamente direcionado para Deus e para o advento do Reino de Deus. Nesta relação com Deus ele viveu, pregou e agiu. Nisto ele foi tudo menos um relativista que tivesse deixado ficarem lado a lado todas as pretensões de verdade religiosa. O que contradizia à incondicional vontade amorosa de Deus, ele criticava duramente: “A lei existe para o homem, e não o homem para a lei”! Assim, ele entrava renovadamente em conflito com os guias de sua própria religião, os sacerdotes e doutores da lei. Mas isto não é nenhuma expressão de fundamentalismo religioso. Jesus repetidamente desviava a atenção de si, apontando para Deus, como, por exemplo, em Marcos 10,18 e 13,32, ou em Mateus 20,23. Ele não queria nada em seu favor e não procurava sua própria glória (João 8,50). A distinção entre a verdade de Deus e a verdade da religião é um remédio contra a doença do fundamentalismo.
IHU On-Line - Que desafios comuns podemos encontrar no presente diálogo inter-religioso e no diálogo da religião com a ciência?
Reinhold Bernhardt - Nós nos encontramos em face de enormes problemas globais e locais, que exigem esforços comuns das religiões. O “diálogo da vida” é cada vez mais importante. Recentemente, 138 líderes religiosos muçulmanos se dirigiram em carta aberta aos responsáveis das igrejas cristãs e convidaram para um diálogo na base do comum mandamento do amor a Deus e ao próximo. Este é um sinal importante para uma aproximação – precisamente em vista das atualmente tensas relações entre o cristianismo e o islã. Para o Brasil, também o diálogo intra-cristão com as igrejas carismáticas livres desempenhará importante papel.
No colóquio com os cientistas da natureza, trata-se, no momento, sobretudo de um conflito entre o criacionismo, a narração bíblica da criação, a cosmologia natural científica e a teoria da evolução. Aqui, a teologia acadêmica deve realizar amplo trabalho de esclarecimento, para mostrar que a narração bíblica originária não pode ser entendida como teoria sobre a origem do mundo e que por isso também não pode entrar em concorrência com modelos das ciências naturais.