“As experiências estéticas nos orientam a ir além da busca pela uniformidade, de uma “unidade” imposta e superficial para a totalidade de uma unidade mais profunda que não apaga a diferença. Flores conclui que a tradição guadalupana ilumina um paradigma de solidariedade estética necessária à política democrática. A beleza das flores, da canção e da ternura nos encontros de Juan Diego com Guadalupe têm dimensões decididamente políticas: são expressões de sua solidariedade com ele e fontes de sua reumanização após os efeitos debilitantes da conquista espanhola”, escreve Timothy Matovina, autor de “Theologies of Guadalupe: From the Era of Conquest to Pope Francis”, em artigo publicado por La Croix International, 27-11-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Nossa Senhora de Guadalupe tem sido uma tradição disputada há séculos. No tempo colonial, povos indígenas a olhavam pela força, enquanto a Igreja e as autoridades civis disputavam se ela era uma santa das suas sociedades estratificadas.
Depois da independência mexicana, as autoridades oficiais a laurearam como o emblema de uma nova nação, embora muitos clérigos católicos afirmassem que ela estava chamando a nação para o arrependimento e um compromisso renovado para os caminhos de Cristo.
Hoje, devotos ligam Guadalupe a uma série de questões mais amplas:
Enquanto as partes competem por uma hermenêutica canalizada pela potência de Guadalupe, suas divergências e as vezes conflitos ressaltam o quanto Guadalupe se tornou um fenômeno influente.
Santuários são dedicados a ela tanto no extremo sul do continente, como a Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe, em Santa Fé, na Argentina, quanto no extremo norte, como Johnstown, Cape Breton, na Nova Escócia, Canadá.
Sua presença entre católicos é agora um fenômeno global, como evidenciado nos espaços de oração, como um altar dedicado a ela na Catedral Notre Dame, de Paris, uma capela próxima à tumba de São Pedro, na Basílica de São Pedro, no Vaticano, e uma paróquia Nossa Senhora de Guadalupe em Puchong, Malásia.
A influência de Guadalupe se estende até mesmo além dos limites da religião oficial, especialmente no México e nos Estados Unidos. Ela aparece regularmente em cenas de novelas, filmes, murais, arte, poesia, tatuagens, camisetas e ímãs de geladeira.
Hoje, o número crescente de perspectivas sobre Guadalupe apresenta o que poderia ser considerado o desafio pós-moderno para compreendê-la: quando a presença e os significados de tradições como Guadalupe se expandem, seu poder de unir as pessoas em torno de uma visão ou causa comum pode diminuir.
Alguns estudiosos responderam à maleabilidade interpretativa de Guadalupe com a afirmação ousada de que, nas palavras do falecido Stafford Poole, na ausência de uma “base histórica objetiva” documentada para a tradição da aparição de Guadalupe, “o simbolismo [de Guadalupe] perde qualquer objetividade que possa ter e está à mercê de propagandistas e interesses especiais. “
Nesta visão, a menos que haja evidências para verificar as origens históricas da tradição guadalupana, análises teológicas e outras de suas mensagens estão sujeitas à cooptação.
Claro, essas armadilhas surgem sempre que uma tradição religiosa tem uma ampla esfera de impacto, independentemente da evidência textual existente subjacente às suas origens históricas.
O principal fator que leva a interpretações manipulativas, em outras palavras, é o domínio de uma tradição religiosa sobre os corações e mentes dos crentes, não sua falta de fundamentação histórica.
Nichole Flores aborda a questão da historicidade no início de “The Aesthetics of Solidarity: Our Lady of Guadalupe and American Democracy” (“A Estética da Solidariedade: Nossa Senhora de Guadalupe e a democracia americana”, em tradução livre).
Ela reconhece a necessidade de pesquisas contínuas sobre o contexto histórico do qual surgiu a tradição de Guadalupe.
Ao mesmo tempo, baseando-se nos trabalhos de outros pesquisadores contemporâneos (incluindo os deste articulista), ela articula insights como o conceito de história dos efeitos (Wirkungsgeschichte) de Hans-Georg Gadamer, ressaltando que para símbolos religiosos como Guadalupe precisamos estudar tanto a história de suas origens quanto a de sua influência em evolução.
Assim, embora os detalhes precisos das origens do século XVI da tradição sejam debatidos, “o que é historicamente demonstrável é que a tradição devocional de Guadalupe tem sido uma narrativa religiosa e política poderosa para pessoas e comunidades no México, nos Estados Unidos e em todas as Américas e resto do mundo”.
Longe de induzir os teólogos a abandonar o campo da interpretação guadalupana, Flores conclui que o potencial de manipulação torna a avaliação teológica crítica ainda mais urgente.
A própria avaliação de Flores contribui substancialmente para essa necessidade urgente.
Ela ecoa a insistência de Roberto Goizueta e outros teólogos contemporâneos de que Guadalupe não deve ser examinada isoladamente, mas em seus encontros e relações com o neófito indígena Juan Diego, canonizado pelo Papa João Paulo II em 2002.
Assim, Flores examina as interpretações teológicas em curso e outras interpretações da tradição guadalupana, bem como performances estéticas como o drama “The Miracle at Tepeyac”, que o grupo de teatro comunitário Chicano Su Teatro desenvolveu em Denver no início dos anos 1970.
Seu volume propõe uma teologia política para a democracia dos EUA “baseada em uma antropologia relacional na qual o encontro entre iguais dentro do contexto de opressão é oferecido como a chave interpretativa da narrativa”.
Em outras palavras, o encontro de Guadalupe com Juan Diego não é apenas uma tradição histórica, mas uma lente para encontrar e aprender com os pobres e abandonados do mundo de hoje. Juan Diego modela os pobres como protagonistas de uma solidariedade robusta e transformadora.
Colocar em primeiro plano a relação entre Juan Diego e Guadalupe ressalta as dimensões éticas da tradição guadalupana e fornece um antídoto para as tentações de cooptá-la e manipulá-la.
O mais recente volume da distinta série “Tradições Morais”, publicada pela Georgetown University Press, “The Aesthetics of Solidarity”, baseia-se no trabalho de vários estudiosos, especialmente John Rawls, Martha Nussbaum e Alejandro García-Rivera.
Em primeiro lugar, Flores avalia a filosofia política de Rawls, que destaca a justiça como equidade.
Ele visualiza uma sociedade cujos membros compartilham direitos básicos e colaboram dentro de um sistema econômico igualitário que condicionalmente permite disparidades econômicas e sociais, mas apenas na medida em que deixam os menos favorecidos em melhor situação do que estariam em condições de igualdade.
A crítica de Flores a Rawls centra-se nas implicações de seu trabalho para a estética. Rawls apresenta uma visão de estabilidade política entre diversos grupos sociais, mas Flores argumenta que ele não consegue considerar adequadamente as lutas dos marginalizados.
As formas de expressão entre os povos marginalizados incluem as religiosas, como sua devoção guadalupana, que Rawls teme ser muito específica para um grupo para atender aos padrões de razão pública que ofuscam diferenças religiosas, raciais, de classe e outras diferenças dentro de uma sociedade pluralista.
No entanto, ao limitar as expressões religiosas ao domínio privado, conclui Flores, Rawls apresenta um conjunto de padrões supostamente imparciais e predominantemente racionais no discurso público que tendem a privilegiar as perspectivas das comunidades dominantes.
O resultado é a desvalorização do potencial da fé e de suas expressões estéticas para fortalecer a participação política de grupos marginalizados.
Martha Nussbaum baseia-se no trabalho de Rawls com sua teoria das emoções políticas, ou seja, emoções que tomam a nação como objeto.
Embora abrace muitos elementos do pensamento de Rawls, ela adota uma visão mais positiva em relação ao papel das emoções na vida pública.
Ela afirma que as formas estéticas baseadas em narrativas, como literatura, teatro e cinema, focam os membros da sociedade em questões urgentes que precisam ser abordadas, mesmo que essas expressões artísticas não forneçam um ponto de vista consensual sobre como abordá-las.
Assim, a estética, que pode ser uma fonte divisora de paixões tribais ou mesmo de violência, também pode motivar a vigilância e a ação para enfrentar os males sociais.
Pode acentuar os elementos humanos essenciais de problemas sociais complexos e motivar a participação política entre os vários grupos em uma sociedade pluralista.
No entanto, Flores ecoa outros críticos ao observar que a noção de emoções políticas de Nussbaum enfatiza virtudes cívicas como justiça e igualdade, que estabilizam a sociedade ao inculcar respeito por nossos concidadãos e pelas normas políticas existentes.
Mas a teoria de Nussbaum é menos simpática às emoções políticas, como a raiva contra o racismo e outras formas de injustiça.
Assim, ela não explica adequadamente as expressões estéticas particulares de comunidades racializadas, como as do grupo teatral comunitário Denver Su Teatro.
Flores destaca como o Su Teatro entrelaçou a narrativa tradicional das aparições de Guadalupe com a defesa da comunidade local em nome dos imigrantes e seu protesto contra a decisão das autoridades arquidiocesanas de fechar sua paróquia.
A raiva e o lamento manifestados neste drama são emoções políticas importantes que devem ser abordadas em qualquer tentativa de sistematizar a busca por justiça em uma sociedade pluralista.
Alejandro García-Rivera, junto com outros teólogos latines, oferece uma visão que abrange mais plenamente os grupos marginalizados, o bem comum e os direitos individuais.
García-Rivera articula a antropologia teológica comunitária nas teologias latines, uma visão do humano fundamentalmente relacional.
Como Juan Diego em seu encontro com Guadalupe, esses teólogos mostram que latinas e latinos não tendem a se ver como indivíduos autônomos, mas como seres comunais formados pelas relações que os constituem.
Ao mesmo tempo, García-Rivera se junta a vários colegas para afirmar que essa visão relacional abrangente pode encobrir as diferenças individuais.
Pode até silenciar membros marginais ou abusados de famílias e comunidades latines sob o pretexto de um falso senso de honra familiar ou solidariedade de grupo.
Para combater essas tendências, García-Rivera clama pelo avanço da “comunidade dos belos”, na qual sejam respeitados os elementos relacionais e individuais de nossa humanidade.
Sem perder de vista o todo, tal comunidade põe em primeiro plano experiências e pessoas particulares, em particular os mais vulneráveis.
Práticas estéticas como a devoção guadalupana, que englobam tanto mensagens universais quanto o encontro concreto com o pobre, Juan Diego, possibilitam esse processo de primeiro plano.
Assim, os encontros estéticos podem focar a atenção nas pessoas marginalizadas, construir pontes entre as diferenças entre os povos e formar comunidades por meio de um ato comum de interpretação e compromisso com o propósito social.
As experiências estéticas nos orientam a ir além da busca pela uniformidade, de uma “unidade” imposta e superficial para a totalidade de uma unidade mais profunda que não apaga a diferença.
Flores conclui que a tradição guadalupana ilumina um paradigma de solidariedade estética necessária à política democrática.
A beleza das flores, da canção e da ternura nos encontros de Juan Diego com Guadalupe têm dimensões decididamente políticas: são expressões de sua solidariedade com ele e fontes de sua reumanização após os efeitos debilitantes da conquista espanhola.
A experiência estética também permite que Juan Diego apreenda os elementos relacionais e individuais de sua humanidade. Ele se relaciona com Guadalupe, mas também questiona e até contesta suas diretrizes.
Ela, por sua vez, não o relega à condição de sujeito passivo, mas respeita sua parceria ativa com ela em sua missão comum.
Isso permite que Juan Diego enfrente as autoridades coloniais na pessoa do bispo.
Juan Diego exige não apenas que o bispo cumpra os desejos de Guadalupe e construa um templo para ela, mas que as autoridades coloniais e as estruturas sociais respeitem a voz e a humanidade dos povos indígenas.
O encontro de Guadalupe com Juan Diego é uma experiência estética que põe em primeiro plano o sofrimento e a humanidade dos oprimidos, aprofunda sua apreciação de sua humanidade plena e permite que sejam agentes de transformação pessoal e social.
Flores insiste que as práticas religiosas cotidianas devem ser examinadas como uma instância de expressão estética, mas ela se limita amplamente a análises da dinâmica interpessoal em relatos do encontro Guadalupe-Juan Diego, bem como produções teatrais e algumas procissões públicas com explicitamente político conotações.
A inclusão das devoções guadalupanas mais prevalentes – rosários, mañanitas (serenatas), oferendas de flores, celebrações paroquiais e semelhantes – seria um acréscimo bem-vindo à sua análise.
No entanto, teólogos, outros estudiosos, líderes pastorais, artistas e ativistas fariam bem em emular o hábil engajamento de Flores na tradição guadalupana como uma tradição ética centrada no encontro entre Juan Diego e Guadalupe.
“The Aesthtetics of Solidarity” mostra como honrar a tradição guadalupana, procurando conscientemente não cooptá-la para seus próprios fins.
Fundamentado em excelente exposição da filosofia política contemporânea e teologias latines, este volume também fornece um diálogo construtivo entre as escolas de pensamento e as tradições religiosas dos marginalizados.
O estudo de Flores oferece percepções significativas para a compreensão da importância dos grupos marginalizados, suas lutas por justiça e suas expressões religiosas no cenário político de uma sociedade pluralista.