23 Outubro 2021
"Medida Provisória cria o Auxílio Brasil e Alimenta Brasil e extingue o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, o PAA", escrevem Érica Daiane Costa, Luíza Damigo e Helen Borborema, do Coletivo de Comunicação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), em artigo publicado por Articulação do Semiárido - ASA, 22-10-2021.
No Brasil, 19 milhões de pessoas convivem
com os pratos completamente vazios.
(Foto: Helen Borborema)
Enquanto cenas de miséria e fome se espalham entre as capas de jornais e as cenas do cotidiano, Jair Bolsonaro está provocando um desmonte sem precedentes na estrutura das políticas públicas sociais e de segurança alimentar no país. Esse alerta vem dos especialistas e organizações sobre o cenário nacional e, principalmente, sobre a Medida Provisória 1.061, editada com uma canetada há poucos meses do ano eleitoral, sem justificativa técnica, sem fonte de recurso prevista e sem diálogo com os conselhos e partes da federação.
Como um clássico exemplo do Cavalo de Tróia, oficialmente, essa MP institui o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil, e extingue o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), políticas públicas que foram estratégicas quando o país saiu do Mapa da Fome da ONU em 2014.
“Vivemos um momento muito trágico de nossa história porque o número de famintos que foi identificado em dezembro do ano passado, seguramente já aumentou”, reflete a antropóloga Maria Emília Pacheco, se referindo à pesquisa que revelou o montante de mais de 19 milhões de famintos e 55% do povo brasileiro em situação de insegurança alimentar, conforme estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – Rede Penssan, em dezembro de 2020.
Maria Emília faz parte do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), é pesquisadora da FASE e foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) entre 2012 e 2016, órgão que foi extinto no primeiro dia de mandato do Governo Bolsonaro. Ao ser perguntada sobre o sentimento que fica diante desse grande desmonte que está acontecendo nas políticas sociais, ela pontua: “é um sentimento de indignação, mas ao mesmo tempo de muita determinação, porque a vida e a dignidade humana precisam ser colocadas em primeiro lugar”.
Em Carta Aberta divulgada na última sexta-feira, dia 15, durante a Semana da Alimentação, 230 organizações sociais e entidades populares apontam as incoerências e pedem a rejeição da MP 1061, que ainda não foi votada no Congresso. O documento proposto pela ANA, pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e pela Comissão de Presidentes de Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional (CPCE), lista as fragilidades e ameaças da MP e, segundo as organizações que assinam, representa mais um dos muitos ataques aos direitos sociais por este governo, que, desde seu início, vem imprimindo esforços voltados para desmonte do sistema de proteção social do país.
“Trata-se de uma proposta que fere a constituição, visto que é um dispositivo inadequado, do ponto de vista formal, para encaminhar um assunto de tamanha dimensão e que impacta na vida de milhões de brasileiros/as, além de atropelar processos democráticos historicamente construídos. A proposta reflete a visão ultraneoliberal desta gestão, e reafirma uma concepção equivocada e preconceituosa de políticas e programas que preveem transferência monetária de renda voltados para populações em situação de extrema vulnerabilidade social”, divulga a Carta Aberta.
Referência mundial e há 18 anos sendo o único benefício para milhares de famílias brasileiras, o Bolsa Família ganha novo nome e uma série de alterações que não favorecem as pessoas mais empobrecidas que se beneficiam do Programa, uma média de 100 milhões de brasileiros e brasileiras.
O novo Programa reúne Auxílio Criança Cidadã, Auxílio Inclusão Produtiva Rural, Auxílio Inclusão Produtiva Urbana, Auxílio Esporte Escolar e Bolsa de Iniciação Científica Junior, porém não especifica critérios para inclusão de beneficiários/as ou aponta reajustes periódicos dos valores pagos. Ou seja, o ideal é que novos programas apresentem melhorias para o público beneficiário, mas não é isso que têm observado especialistas que estão se debruçando sobre o estudo desta MP.
Para o professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Sílvio Porto, a criação desses novos programas é apenas uma tentativa de apagamento institucional, atende a uma intencionalidade eleitoral, uma vez que não apresenta elementos que melhorem o funcionamento dos programas, apenas traz outro nome. “Isso mostra claramente que o governo tá muito mais preocupado com uma afirmação política do que efetivamente resolver ou atender ou minimizar a problemática da insegurança alimentar e de acesso à renda por parte das famílias agricultoras”, avalia.
A MP não estabelece, por exemplo, o aumento de recursos injetados no atual Bolsa Família, assim como não fica claro como será o acesso das famílias que estão na fila do cadastro. “A questão é que o governo erra querendo dar a sensação que está criando algo novo no contexto atual para o enfrentamento da pobreza urbana e rural”, reforça Sílvio.
A ameaça central desta MP para o Brasil é o desmonte da política social; isso afeta diretamente a vida das famílias em situação de pobreza e extrema pobreza e, consequentemente, atinge a economia dos municípios, especialmente dos que possuem menor PIB (Produto Interno Bruto). Segundo relatório do IPEA intitulado “Os Efeitos do Programa Bolsa Família sobre a Pobreza e a Desigualdade: um balanço dos primeiros quinze anos”, publicado em 2019, o Programa Bolsa Família registrou, em 2017, “uma redução de cerca de 15% no número de pobres e mais de 25% no número de extremamente pobres”. Significa dizer que as transferências do Programa “retiraram 3,4 milhões de pessoas da pobreza extrema e outras 3,2 milhões da pobreza”.
Aparentemente há um salto na proteção social, mas “essa medida provisória, por si só, representa um enfraquecimento da política social”, lamenta Maria Emília. “É como se fosse uma cesta de auxílios, uma cesta de iniciativas, bolsas (…), cujos valores não estão previstos. Não se sabe a que esse conjunto vai atender (…), não são definidos os critérios”, alerta.
Na contramão da pseudo novidade apresentada pelo governo federal, “há de se dizer que o Programa Bolsa Família, que agora vem ser substituído por esse Auxílio Brasil, é um Programa grandemente reconhecido, que merece ser aperfeiçoado”, analisa Maria Emília. Para ela, “esse aperfeiçoamento vai no sentido do debate da renda básica, que não signifique a supressão de direitos conquistados, mas que mantenha um sistema de proteção social, que se avance numa proposta de renda básica”.
A MP pode ser regulamentada em até 90 dias e, conforme observa Sílvio Porto, o ideal é que a medida não seja convertida em Projeto de Lei.
"Se o que tinha funcionava, porque fazer algo para substituir o que já existia? porque não ajustar, aprimorar e melhorar ao invés de fazer uma nova regulamentação? O que precisamos é para agora, para ontem, ano passado”, questiona o professor da UFRB.
Porto se refere a tentativa de apagamento institucional, por parte do governo Bolsonaro, da teia de políticas de segurança alimentar e nutricional que existiam no Brasil. Alguns nós dessa rede ainda resistem bravamente, fruto da mobilização social, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), mas estão sob constante ataque. Soma-se ao constante corte de recursos, a ineficiência na execução do programa por parte do estado, o enfraquecimento da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) com a venda de unidades armazenadoras (responsáveis por guardar os estoques públicos de alimentos), agora o ataque à estrutura do programa, impetrado pela MP 1061.
Em um momento em que é necessário e urgente aprimorar o PAA, política pública de abastecimento alimentar já consolidada e reconhecida internacionalmente, com um maior aporte do Estado, por exemplo, vê-se o seu contínuo desmantelamento. Além de alocar mais recursos, é preciso trazer mais celeridade aos processos do programa, ao invés de uma mudança de nome e um projeto que ainda será regulamentado. Ou seja, não se sabe o que virá.
Entre as incoerências apontadas por especialistas na Carta Aberta pela Rejeição da MP 1061, está o diferente apoio à produção urbana e rural. A inclusão produtiva rural prevê que parte dos recursos acessados terão que ser pagos em alimentos, como contrapartida, a partir do terceiro mês. A regra dificulta o planejamento do ciclo produtivo e não leva em consideração a produção para a subsistência e questões que interferem nas condições de produção (acesso a água, estiagem,…) e que afetam, sobretudo, as famílias mais vulneráveis à fome. Caso as famílias não tenham condições de entregar, correm o risco de serem excluídas e até mesmo criminalizadas. Já a inclusão produtiva urbana não demanda contrapartida - nem com alimentos e nem com trabalho. Para Porto, "é uma inversão de valores e sem justificativa".
A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) exerce um importante papel de diálogo com as organizações da sociedade civil, que assumem protagonismo na execução do PAA, em todas as suas modalidades. A MP 1061 pretende retirar esta função da CONAB, estabelecendo relação exclusiva entre os entes da gestão governamental (estados e municípios). No texto, ainda há previsão de recursos para CONAB, porém o indicativo é que a destinação seja via Estado, que será centralizado no Ministério da Cidadania, mas sem apresentar nitidamente como esse processo se dará.
E, ainda, extingue a modalidade do PAA de "aquisição de sementes", uma das formas concretas de acesso a sementes crioulas para agricultura familiar camponesa. E, ao falar de agroecologia e produção de alimentos saudáveis, elas são o ponto de partida.
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Agravamento da fome e da pobreza – especialistas e organizações alertam sobre perigos da MP 1061 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU