25 Outubro 2021
De sua sentinela como professor de História Econômica, na Universidade Columbia, Adam Tooze (Londres, 1967) dissecou as crises que muitas vezes levaram de uma guerra a outra. O antes, o durante e o depois do nazismo está entre suas especialidades. Agora, faz o mesmo com a emergência econômica pela covid-19. Publica El apagón (Crítica). E sua gravidade, repete, “não tem precedentes”.
A entrevista é de Alexis Rodríguez-Rata, publicada por La Vanguardia, 17-10-2021. A tradução é do Cepat.
A crise pela covid é comparável a qualquer outra? Talvez com a da gripe espanhola de inícios do século passado?
Não é possível deixar de comparar, mas é preciso questionar se é útil, e ver em 2020 o ano de 1918 ou 1919 não é de muita ajuda. Não houve nada como o fechamento total da atividade econômica em todo o mundo visto com a pandemia. E mais, nem sequer era considerado.
Passei muito tempo em arquivos e esperava ver menções, naqueles anos, sobre como o escritório não funciona porque os empregados estão em casa, etc. Mas não há nada. Nem sequer notas sobre as pessoas que adoecem e morrem, ainda que saibamos que as pessoas adoeciam e morriam.
Como é possível?
Os especialistas analisaram as medidas que foram tomadas em algumas cidades, e sempre se cita este nível, de município a município. Nunca antes houve uma pandemia na qual houvesse um fechamento como com a covid. Nunca antes houve uma crise que produzisse uma queda econômica tão grande, em um período de tempo tão limitado. Em termos de cair no precipício, 2020 é único.
A pandemia foi inesperada. Suas consequências a longo prazo também são?
Digamos que é uma história inacabada. O que acontecerá? Haverá mais fechamentos? Depende de algo que não está fora de nosso controle, mas que não fazemos o necessário para o seu controle.
É debatido se após a Delta haverá mais variações do vírus ainda mais perigosas e infecciosas. E a única maneira de controlá-lo e fazer planos confiáveis para, por exemplo, 2022, é forçar a vacinação mundial. E não fazemos isso.
Com a pandemia, os políticos, de um tom ou outro, coincidiram em intervencionismo público, gasto público, dívidas... A política neoliberal chegou a seu limite e inicia outra era?
O neoliberalismo, como regime, ideologia, projeto, mostrou seu limite, mas a ideia de que desaparece e que simplesmente se trata de deixar que as coisas aconteçam, é absurda. É um regime de disciplina e poder. E quando se pensa nele como estrutura social, então, a lógica da crise de 2020 não é transformadora.
Houve um esforço em utilizar todos os meios necessários, tudo o que está ao alcance do governo, para um fim conservador, para restaurar a sociedade onde se estava antes da pandemia. Isso significa uma proteção social para todos, não só para as pessoas que mais precisam. E não é redistributivo, em sentido algum. Observa-se no plano, por exemplo, que se paga aos empregadores para que mantenham seus empregos.
Em que sentido?
Muitos desses empresários teriam mantido seus trabalhadores de qualquer modo, mas foram pagos para isso. Há um fim profundamente conservador nas medidas pela covid, apesar dos instrumentos utilizados serem radicais.
Por sua vez, quando se pensa no neoliberalismo como projeto do poder estadunidense, como foi o caso, então o mundo, sim, virou a página definitivamente, embora isso não abra um horizonte de social-democracia e internacionalismo, mas de um crescente antagonismo e concorrência entre os grandes poderes.
O futuro talvez não pareça liberal, mas tampouco parece que será transbordado pela paz progressista. Parece militar, nacionalista e ameaçador. Em muitos aspectos, este é um momento profundamente conservador.
Antes da crise atual, vinha-se de outra, a financeira de 2008, um pesadelo também da dívida. E agora se fala de mais e mais dívida para atenuar os efeitos da covid. Devemos ficar preocupados?
A dívida não deveria ser uma preocupação em si. A Espanha deveria se preocupar mais com os dinamarqueses, austríacos, holandeses e companheiros da Zona Euro com posições conservadoras. A dívida, em si, se o BCE continuar fazendo o que faz e a Comissão Europeia não voltar a impor regras fiscais, não é um problema.
Se o nível da dívida se tornar um problema é por uma escolha política, pela vulnerabilidade diante de um ataque dos europeus do norte, fiscalmente conservadores, uma política que causaria danos à economia e sociedade espanhola, deixando cicatrizes e fazendo com que a recuperação seja muito lenta, além de limitar essencialmente a soberania democrática espanhola, porque as regras definem o que o governo pode ou não fazer. Seria uma catástrofe.
A Espanha está novamente nessa encruzilhada?
A Espanha faz parte dos 60% da população da Zona Euro, incluindo França, Itália, Portugal, Irlanda e Bélgica, com alguns níveis de dívida superiores a 100% do PIB. Em parte alguma isto é realmente um problema. Mas pode se tornar um.
Sabemos que em 2012 foi Mario Draghi, com seu “custe o que custar”, que pôs fim à crise que pressionava envolver novamente a Espanha. Também em 2020, embora inicialmente o BCE hesitou. No entanto, isso será decidido em 2022-2023. Dependerá muito do que acontecer após as eleições alemãs. Dependerá muito do que acontecer nas eleições francesas do próximo ano. A economia está bem. É com a política que é preciso se preocupar.
A dívida e o crédito são nossa nova ‘religião’ e única solução? Não há alternativa?
Não acredito que exista. Esforçar-se em crescer sem expansão de crédito, no momento atual, seria incrivelmente duro. O dano causado pela crise é muito profundo. A diferença em relação à crise espanhola de 2010 e 2012, além disso, é que essa foi muito política.
O estouro imobiliário na Espanha veio de uma bolha do setor privado, impulsionada pelo consumidor e as empresas. Independente se a crise tivesse sido bem gestada ou não na Zona Euro, a Espanha teria um mal 2010-2012. A política entrou em jogo para ver como lidar com o boom do setor privado e houve a rejeição europeia em permitir uma solução sofisticada. Agora, não há alternativa.
Antes da pandemia, o mundo já estava cheio de dívidas e em meio a uma guerra fria entre a China e os Estados Unidos. E hoje tudo retorna, pouco a pouco, à velha senda. Há, inclusive, quem fale dos novos anos vinte do século XX, embora no XXI: crescimento, desenfreio e muito mais.
Seria muito otimista assumir que voltamos a algum tipo de cenário histórico de rápido crescimento, como nos anos 1920. Essa analogia é enganosa e simplista. Os anos 1920, em grande parte do mundo, incluindo a Espanha, foram, de fato, muito duros. Preparou-se o cenário para os distúrbios políticos posteriores.
Não foi um período de rápido crescimento econômico em nenhum outro lugar a não ser, na verdade, nos Estados Unidos. Embora não acredite que exista qualquer razão para não pensar que com estímulos suficientes poderíamos manter taxas de crescimento razoáveis.
Os jovens são os que mais sofrem esta crise, como a sofreram em 2008. Veem desemprego, precariedade e um longo etc. A principal consequência da pandemia pode ser uma luta geracional entre jovens e idosos?
A crise social na Europa após 2008 é, sobretudo, uma crise de desemprego juvenil. Na Europa do Sul são vistos níveis históricos de desemprego juvenil que são profundamente daninhos para suas expectativas de vida.
Uma experiência que pode se unir à das mudanças climáticas, que vê uma mobilização geracional, particularmente ao norte da Europa, em especial agora com pessoas entre a adolescência e seus vinte anos, com a profunda sensação de que os políticos em exercício, todos idosos, não levam suas demandas suficientemente a sério.
A combinação de tudo isso foi vista na sentença do Tribunal Constitucional alemão, que em inícios deste ano declarava inconstitucional a política climática do governo de Angela Merkel porque restringia severamente as opções futuras para as gerações mais jovens dos alemães.
E para onde leva tudo isso?
A crise do coronavírus leva tudo isto a um ponto realmente extremo. Ao menos na primeira variante da doença, a mortalidade foi avassaladora entre as pessoas idosas e a alteração avassaladora da vida entre os jovens, incluindo aqui as pessoas de meia idade com crianças, cujas vidas se tornaram incrivelmente difíceis.
Em muitos países do norte, em paralelo, nota-se um rápido aumento dos preços da moradia, o que afeta a distribuição da riqueza entre gerações, já que medidas como a da flexibilização quantitativa do banco central beneficiam, novamente, sobretudo aqueles com riqueza financeira e ativos imobiliários. E essas são pessoas idosas.
Por tudo isso, é possível dizer que a crise pressiona extremamente uma desigualdade intergeracional que já crescia antes. Não há dúvida de que um dos legados da crise será o choque intergeracional. Na China, esta lacuna não se dá na mesma medida.
Essa lacuna geracional é diferente de outras do passado?
Todas as crises marcam, mas, durante os últimos cinquenta anos, a mudança econômica tornou difícil o acesso dos jovens ao mercado de trabalho. Por um lado, os adultos de meia idade e todas as pessoas que já estão trabalhando dificultam a entrada dos jovens. E, por outro, a mudança estrutural faz com que os velhos pressupostos sobre a estabilidade e a permanência no trabalho sejam irrelevantes.
Isso não era um problema, por exemplo, nos anos 1950, 1960, e inclusive em inícios dos anos 1970. Então, um filho ou uma filha de uma família camponesa, não qualificado ou com educação primária, podia ir trabalhar em uma fábrica e pagar um apartamento, talvez comprar uma moto, um refrigerador e um rádio e formar uma família com relativa comodidade. Esses trabalhos de entrada semiqualificados e de baixo nível se tornaram cada vez mais escassos.
Para todos os jovens isso é igual?
Vemos uma polarização entre os altamente educados, flexíveis, móveis, globalizados e as pessoas que não podem participar disso. E isso é característico dos últimos cinquenta anos. Em 2020, essas diferenças se agravaram.
Com o vírus, se você tem um alto nível educacional, um trabalho de colarinho branco, se estava na universidade ou tem uma boa conexão WiFi, a crise é um inconveniente, mas não o fim do mundo. Se é um garoto que acaba de concluir o ensino secundário, pouco qualificado e cujo melhor trabalho provavelmente foi trabalhar em um restaurante ou em algum emprego de baixo nível no setor de serviços, foi um desastre.
Quais podem ser as consequências, a longo prazo, das decisões tomadas na pandemia?
É muito cedo para dizer, mas uma será, claramente, a dívida acumulada. Caberá decidir o que fazemos com ela, o que será, como dissemos, uma questão de escolha política. Além disso, 2020 alterou permanentemente as relações entre o Ocidente, em particular Europa e os Estados Unidos, e China. Entramos em uma relação muito mais antagônica em relação a que tínhamos antes. Depois, os processos de mudança estrutural se aceleraram, como o esgotamento do comércio varejista em pequena escala e seu movimento para a digitalização.
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“A pandemia de covid abre um horizonte militar, nacionalista e ameaçador”. Entrevista com Adam Tooze - Instituto Humanitas Unisinos - IHU