06 Outubro 2021
Bolsonaro, Trump, Vox, Le Pen, Javier Milei, agora na Argentina... É um mesmo fenômeno global ou esta sincronicidade é apenas uma alucinação? O lema “comunismo ou liberdade” ressoa da América Latina à Espanha. Como é possível que na sociedade atual inflame a linguagem da guerra fria? As novas direitas são tidas como rebeldes, transgressoras, até mesmo contraculturais. De fato, é isso?
Na esquerda, ocorrem debates sobre como combater esse fenômeno. Seria o caso de disputar em seu mesmo campo comunicativo?
Conversamos sobre tudo isso com Diego Sztulwark (Buenos Aires, 1971), pesquisador e escritor argentino, autor de La ofensiva sensible (Caja Negra, 2019).
A entrevista é de Amador Fernández-Savater, publicada por Ctxt, 02-10-2021. A tradução é do Cepat.
Enxerga traços comuns entre as novas direitas que emergem um pouco por todos os lugares? Como designar esse fenômeno?
Há alguns anos, Enzo Traverso falava das “novas faces da direita” e empregava o termo “pós-fascismo” para reagrupar sob uma mesma rubrica fenômenos reacionários emergentes, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. O notável de sua abordagem era sua capacidade de reter simultaneamente o novo e o velho. Em outras palavras, atendia tanto as comunidades como os fascismos históricos ou clássicos, como as inovações ou rupturas, evitando reducionismos, recobrando genealogias, atendendo aos contextos.
Se considerarmos fenômenos como Bolsonaro, Trump, Le Pen e Vox, aparece bastante claro um traço comum que é definidor para mim. Refiro-me ao aspecto “garantista”, entendido como o esforço agressivo voltado para a defesa de um privilégio ou supremacia – social, racial, nacional, sexual, étnica, proprietária – que se percebe como ameaçado, seja pela profundidade da crise ou pela fragilidade das estruturas sobre as quais se sustenta. Trata-se de uma reação paranoica, obcecada por fantasmas (“comunismo”) e decidida a proteger ativamente o que considera estar em perigo.
Esse neofascismo é muito uma reação sintomática. Vive em uma antecipação constante, produto de uma alta sensibilidade à crise, ao menor vacilo das estruturas em que seu domínio se baseia. Daí sua brutal intolerância aos questionamentos que significam os feminismos populares, o LGTBIQ, o imigrante, o comunitário-indígena, o anticolonial, a organização do trabalho precarizado. Todas essas figuras são lidas como inimigos a ser derrotados, elementos desestabilizadores da propriedade privada, da família, do trabalho e da ordem.
Você diz que as novas direitas não são rebeldes ou transgressoras, como hoje se afirma muitas vezes, mas, ao contrário, exibicionistas. Considera que dar a elas o rótulo de transgressoras ou contraculturais é um grave erro de avaliação política. Por quê?
Sim, fico muito surpreso com a ideia de que essas extremas direitas, que em minha avaliação são garantidoras do sistema, entendido como o conjunto de estruturas de dominação, sejam apresentadas como “antissistema”. É verdade que o discurso dessas direitas infringe certo consenso da política convencional ao denunciar a “casta política” ou o “status quo”, como também que ao fazer isso se conectam com os diversos descontentes.
Contudo, de modo algum a sua rebelião aponta para as relações de dominação. Sua retórica não é de forma alguma rebelde, mas exibicionista. Longe de atentar contra as linhas duras de subordinação, marginalização, exclusão e exploração de nossas sociedades, elas as enfatizam com uma linguagem desinibida, exaltando as pulsões mais obscuras.
Isso implica, no imediato, um conflito com as forças conservadoras – social-democracias, nacionalismos, liberalismos – que se dedicam a mediar a dominação por meio de um contrato do politicamente correto, de uma suposta trégua social. Essas direitas neofascistas rompem o pacto, chamam as coisas pelo nome, apelam a uma sinceridade sinistra, exibem tudo o que a política democrática convencional acoberta. Explicitam tudo aquilo que o pacto de dominação oculta por meio de eufemismos. Mas, ao contrário do que acontece com as manifestações históricas da esquerda antissistema, não sofrem punição alguma por suas supostas transgressões.
As novas direitas se proclamam rebeldes contra a tirania do “marxismo cultural” e o “comunismo”. Enquanto lamentamos o momento de maior fragilidade da esquerda em décadas, a direita denuncia sua hegemonia total. Como explicar esse paradoxo?
Não deixa de surpreender o recurso anacrônico à linguagem da guerra fria. A direita denuncia uma estratégia onipresente de “marxismo cultural” que se infiltra nos recursos de linguagem, nas instituições, no mundo inteiro da comunicação. Para entender como esse discurso “viraliza”, podemos sustentar a seguinte hipótese: existe uma certa lucidez alucinada de uma direita paranoica e ultrassensível à crise (crise mais pandemia). Essa sensibilidade e essa paranoia de proprietário levam ao ato agressivo antecipatório. Ou seja, a direita imagina preventivamente um inimigo e projeta contra ele manobras bélicas.
Parece-me que vale a pena considerar esse “delírio” em jogo. Existe uma verdade em todo delírio. E a verdade, neste caso, é que não há capitalismo sem pressentimento de comunismo. O fato de que se pretenda invocar de modo violento o que se pressente não é novo. Permite-nos compreender como pensa uma parte das classes dominantes e como esse tipo de subjetivação paranoica se inflama em uma parte da sociedade.
É impossível saber se, ao longo do tempo, as elites conseguirão controlar o que colocam em movimento. Só resta desejar que de tanto agitar o fantasma do comunismo, esse fantasma enfim se concretize e diga o que quer! Não deixa de ser interessante o fato de que uma parte das elites seja a que confessa o caráter precário de toda dominação histórica, o risco de que as rachaduras cresçam, de que as resistências se espalhem. O que mais surpreende é que seja apenas a direita que anuncie a revolta!
A esquerda eleitoral apresenta a alternativa entre “democracia ou fascismo” e convida para a criação de uma “frente ampla e popular”. Mais do que revolta, trata-se de uma barreira de contenção. Desse modo, a esquerda fica reduzida a gestos puramente defensivos, reativos?
Concordo sem titubear com todos os tipos de unidade contra as direitas fascistas. Quanto mais fascismo, mais realismo. Só que a unidade política não é em si minimamente suficiente. Dada a dimensão da crise – e da violência que a acompanha – é preciso dizer duas palavras sobre para onde queremos ir.
Vamos pegar o exemplo argentino. Após o desastre do governo Macri e da pandemia, a frente antimacrista no governo constituído com muito êxito em 2019 acaba de ser derrotada, até nos distritos onde governa. O problema, portanto, não se reduz a repetir que é preciso evitar que a direita neoliberal ou suas facções extremas voltem a vencer, mas saber como um governo pode, nesse contexto, garantir um limite à queda dos salários e da renda da população. A crise encurta os tempos, desgasta as alianças políticas, acelera definições e, no fundo, pede algo a mais do que a unidade contra o inimigo histórico.
Onde está a eficácia comunicativa das direitas? Como consegue inflamar sua mensagem entre tanta gente jovem?
Cada vez mais a política repousa em um tipo de mediação que são as “consultorias”, agentes responsáveis por tudo aquilo que se mostra. Somente por seu intermédio a política percebe – através de estudos quantitativos e qualitativos – a sociedade sob a forma das análises de “demandas sociais”. Somente por seu intermédio a política se faz ouvir e escutar. As consultorias são agentes mediadores de mercado, cuja missão é consumar todo o processo que culmina na venda de um produto particular: o político.
Pensemos no caso de Javier Milei, o candidato da extrema direita que acaba de surpreender nas recentes eleições de Buenos Aires. Pablo Fernández escreveu um texto no qual analisa duas coisas importantes: cada geração se politiza em uma plataforma que a expressa, a atual faz isso pelo Tik Tok. E o Tik Tok é ritmo. Milei, diz Pablo Fernández, é o primeiro político editável nesse tipo de formato. O segundo argumento tem tanto peso como o primeiro: Milei é ao mesmo tempo um tradutor de impulsos obscuros, inibidos pelo policiamento do politicamente correto, sem por isso descuidar dos modos de representação política e os requisitos do discurso da ciência (racionalidade econômica). Ou seja, o mais antipolítico dos candidatos é o garantidor mais enérgico do sistema de propriedade.
As consultorias fazem análise a partir dos “estudos do desejo” e pensam o estado da sociedade na pandemia em termos de um suposto recuo libidinal. A direita toma a iniciativa de explorar nos tipos de produções capazes de articular a narrativa clássica com imaginários e formatos novos, levando em conta as mutações que podem ter ocorrido durante a pandemia, sobretudo entre os mais jovens.
Certa esquerda – populista, “rojiparda” ou anticapitalista – parece fascinada com a eficácia comunicativa da direita e convida a imitá-la “para o outro lado”. Ou seja, a partir da esquerda, entrar na disputa pelo identitário, os horizontes de certezas, os símbolos de pertença e nacionais, os modos de vida tradicionais, a linguagem simplificadora e agressiva, etc. O que você pensa a esse respeito?
A esquerda, como bem sabemos, só quer dizer algo real quando designa um modo de pensar, de perceber, de viver. A esquerda perde a sua historicidade específica quando se fascina com o modo como a direita pensa, percebe e vive. E isso é válido tanto para a guerra como para a economia ou a comunicação. Não se trata, portanto, de situar dois lados simétricos. Existe esquerda, caso haja assimetria, diferença, processo de transformação. Toda vez que as esquerdas assumem as formas racionais e sensíveis da direita, não temos mais do que uma esquerda de direita.
Em relação à comunicação, portanto, é preciso levar em consideração as premissas críticas mais elementares, segundo as quais a comunicação, conforme praticada na sociedade do espetáculo, parte da captura da vida apenas como mercadoria e os indivíduos no mercado se comunicam como pessoas privadas, dispersas, incapazes de resistir coletivamente, de fazer experiências a partir de seus mal-estares. A partir disso não é possível fazer nenhuma política de esquerda. O espetáculo impõe sua gramática, independentemente dos conteúdos.
Uma política transformadora parte de outras formas de conexão, de resistências, de mal-estares, de lutas, de outros modos de sentir, de outra linguagem. Entendo que muitas pessoas experimentem uma vertigem extraordinária ao chegar aos meios de comunicação e ver seu público aumentar, mas não me parece que seja o caso de apenas expandir o público. Há problema mais sérios.
Por exemplo?
Podemos dizer assim: a extrema direita fez saltar pelos ares a linguagem do politicamente correto, que consiste em não chamar pelo seu verdadeiro nome a realidade dos derrotados. Ou seja, todos sabemos que as linhas de dominação do sistema produzem índios, negros, palestinos, puta e migrantes, mas contamos com um eufemismo politicamente correto para evitar a desagradável experiência de exibir essas relações de poder. A extrema direita, ao perceber os seus privilégios ameaçados, decidiu falar claramente, afirmar essas relações de dominação, desinibir seu verbo. O que fazemos diante disso? Reagimos como guardiões dos politicamente correto, como policiais da língua?
A retórica progressista, da esquerda que só almeja a gestão do que existe, é uma lógica discursiva sem ideias, sem força, sem vontade de transformação. Pura razão cínica. Portanto, um sério problema da “comunicação de esquerda” – se isso fosse possível – é colocar em jogo outro modo de falar, para poder enfrentar tanto o cinismo parlamentar como as ultradireitas. Evidentemente, não é só um problema de públicos, mas de como amarrar experiências, sentidos, palavras. De outro modo, só a direita capitaliza a evidente miséria do progressismo. Sem que surja um contrapoder com capacidade de narrativa própria, não há comunicação de esquerda.
A esquerda mais visível insiste na “disputa da narrativa”, mas sem atentar para a dimensão do contrapoder efetivo, essas narrativas são puros significantes flutuando no éter comunicativo, sem grande relação direta ou orgânica com experiências, vínculos ou territórios.
O aspecto narrativo me parece fundamental, mas sempre na medida em que se conceba a palavra ligada ao sentido e à constituição de mundos. De fato, não há greves sem um tecido narrativo interno, que atue transmitindo experiências e saberes entre gerações. Luta e narrativa sempre caminharam de mãos dadas.
Esse sentido materialista da narrativa, que supõe a palavra como um momento do enredo coletivo das forças, está em processo de atualização, no sentido de que talvez ainda não narramos totalmente o que foram esses anos de pandemia, crise e quarentena. Nesse campo das narrativas, estamos sempre a começar, sempre começando.
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“A esquerda perde a sua historicidade específica quando se fascina com o modo como a direita pensa, percebe e vive”. Entrevista com Diego Sztulwark - Instituto Humanitas Unisinos - IHU