Em entrevista à Mongabay, Davi Kopenawa e Luiz Bolognesi falam sobre o processo de produção de A Última Floresta, documentário que leva aos cinemas a realidade contemporânea do povo Yanomami.
A Terra Indígena Yanomami, situada em Roraima, é a maior do Brasil, habitada por 26 mil indígenas de oito povos, seis deles isolados; a reserva vive sob intensa pressão do garimpo ilegal e do desmatamento.
“O povo da cidade não conhece o povo Yanomami, nós moramos muito longe, perto das montanhas. É importante mostrar quem são os indígenas brasileiros, aqueles que cuidaram primeiro do nosso lugar, do nosso país”, diz Davi Kopenawa sobre a decisão de fazer o filme.
Davi Kopenawa, xamã e grande líder do povo indígena Yanomami, a partir de um sonho pôs-se a refletir: a televisão, o cinema e todas as imagens criadas e transmitidas são parte importante da cultura dos brancos. Concluiu que seria uma boa ideia fazer um filme. “O povo da cidade não reconhece o meu povo. Os brancos não tinham ido lá ainda para fazer um filme, para colocar na tela grande para eles olharem. Não é para ficar olhando só carro, navio, avião”, explica Kopenawa em entrevista concedida à Mongabay.
Já o diretor Luiz Bolognesi, ao ler o livro A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami, relato autobiográfico de Kopenawa escrito em parceria com o etnólogo Bruce Albert, decidiu que queria fazer um filme com o xamã. A parceria tornou-se ainda mais profunda quando Bolognesi escolheu escrever o roteiro juntamente com Kopenawa e realizá-lo em colaboração com os indígenas da comunidade Watoriki, na Terra Indígena Yanomami, no estado de Roraima, extremo norte do país. Desses encontros nasceu A Última Floresta, documentário que estreou nas salas de cinema brasileiras em 9 de setembro.
Embora essa seja a estreia oficial nas telas grandes das cidades, desde sua primeira exibição no mês de abril, na Mostra Internacional de Documentários É tudo Verdade, a produção já venceu o prêmio do público na mostra Panorama no 71º Festival de Berlim, o de Melhor Filme no 18º Seoul Eco Film Festival, na Coreia do Sul, o de Melhor Documentário no Festival Zeichen der Natcht, em Berlim, e o Prêmio Artístico de Melhor Obra no Festival dos Povos Originários, de Montreal.
“Já andou bastante e vai continuar andando. Onde eu não posso andar, o filme estará levando as histórias dos Yanomami e a nossa resistência às ameaças que estamos sofrendo principalmente por causa dos invasores, dos garimpeiros e do governo Bolsonaro”, sinaliza o líder.
Segundo o relatório “Cicatrizes na floresta: evolução do garimpo ilegal na TI Yanomami em 2020″, produzido pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume), apenas entre janeiro e dezembro de 2020 uma área equivalente a 500 campos de futebol foi devastada na TI Yanomami e 500 hectares de Floresta Amazônica foram destruídos pelo garimpo ilegal no território – o que indica um aumento de 30% em relação ao ano anterior. A maior TI do país conta com pouco mais de 9.6 milhões de hectares (96,65 km² ) e é habitada por aproximadamente 26 mil indígenas de oito povos, (os Yanomami, os Ye’kwana e outros seis povos isolados).
Estima-se que pelo menos 25 mil garimpeiros ocupem a área atualmente incentivados pelo discurso presidencial, que defende abertamente a exploração de minérios nas TIs. Durante a pandemia de covid-19, a presença dos garimpeiros tem significado também um foco de contágio na Terra Indígena. Essa ameaça constante e concreta é um dos dispositivos narrativos centrais do filme.
Na entrevista que segue, Bolognesi e Kopenawa falam sobre o processo de produção, as conexões reveladas entre a realidade contemporânea Yanomami e a dos não-indígenas – como o avanço do protagonismo feminino e a dificuldade dos jovens diante de uma realidade cada vez mais fragmentada – e como o cinema pode contribuir para os povos indígenas brasileiros no momento em que lutam contra o avanço de mecanismos legais capazes de elevar consideravelmente a ameaça às suas existências, como a tese do marco temporal e o Projeto de Lei 490.
Cartaz do filme "A Última Floresta". (Foto: Divulgação)
A entrevista é de Débora Pinto, publicada por Mongabay, 24-09-2021.
Como é estrear o filme A Última Floresta nos cinemas brasileiros em meio à votação do marco temporal e aos protestos de milhares de indígenas em Brasília? Qual a importância de trazer os Yanomami para as telas grandes das cidades exatamente neste momento?
Davi Kopenawa: Eu não estou preocupado com a votação do marco temporal, eu estou revoltado. A mesma coisa com o Projeto de Lei 490 [que visa facilitar o uso de terras indígenas para grandes projetos econômicos]. O filme conta as histórias do povo indígena Yanomami, mas isso não significa que o meu povo seja mais importante. Todos os povos indígenas são como um só povo, como um só coração, e agora todos nós estamos enfrentando sérias dificuldades. Então o filme pode ser bom para que mais gente conheça e para que as pessoas de boa cabeça se juntem a nós nessa luta.
Luiz Bolognesi: Por um lado é estranho, porque ainda estamos em meio a uma pandemia, então sabemos que não teremos um público tão expressivo. Por isso mesmo, daqui alguns meses o filme também será disponibilizado em streaming, para que o maior número possível de pessoas possa acessá-lo.
Mas é importante trazermos a potência Yanomami e desse filme para se somarem a uma luta que, infelizmente, não mobiliza a sociedade brasileira como deveria. Nós ainda carregamos essa negação da nossa raiz cultural indígena, da importância desses povos para o país que somos. E é justamente essa indiferença que permite o avanço do genocídio e do ecocídio que nós estamos presenciando no país atualmente. Então, estar estreando nos cinemas agora também pode ser considerado um ato de resistência.
Davi, por que você quis fazer esse filme?
Davi Kopenawa: Eu queria mostrar. Mostrar a minha comunidade, mostrar a verdadeira beleza moderna que temos na floresta do Brasil. Por isso eu disse ao Bolognesi: ‘vamos lá, vamos trabalhar, vamos fazer um filme bem trabalhado’. O povo da cidade não conhece o povo Yanomami, nós moramos muito longe, perto das montanhas [a TI Yanomami fica em Roraima, na fronteira com a Venezuela]. É importante mostrar quem são os indígenas brasileiros, aqueles que cuidaram primeiro do nosso lugar, do nosso país. Fazer um filme é importante porque quem não conhece pode se perguntar: ‘quem é Davi?’, ‘como serão esses Yanomami?’, ‘será que eles são morenos, será que são feinhos’, ‘será que eles são bicho’? O nosso povo Yanomami não é bicho, não é selvagem. Então eu queria mostrar a imagem do meu pessoal e também a floresta, já que a floresta é a nossa casa – onde a gente vive, onde a gente come, onde a gente faz o estudos dos xapiri [seres sagrados da floresta], aprende interagindo com a natureza. Por isso foi bom encontrar o “Cabeça de urubu” [apelido carinhoso dado por Kopenawa ao diretor Luiz Bolognesi, por este ser careca]. Eu acho que é um jeito dos não-indígenas sentirem que é importante deixar o povo Yanomami protegido, e de garantir que possa viver em suas terras.
Luiz, no filme Ex-Pajé você contou a história de um pajé que perdeu o seu poder diante da proliferação da fé evangélica em sua comunidade. Com A Última Floresta, sua intenção era deixar ver a potência dos que conseguiram preservar sua cultura e seu sagrado, tendo como central a figura de Davi Kopenawa. Como foi construir, cinematograficamente, essa potência?
Luiz Bolognesi: Era muito importante isso para o Davi, que os Yanomami não aparecessem como os coitadinhos. Afinal de contas, segundo ele, nós é que estamos doentes e enfraquecidos – e quando começamos essas conversas a pandemia ainda nem tinha acontecido.
Acho que o dispositivo fundamental foi ter chamado o protagonista do filme para ser também autor, radicalizando nesse lugar. Quando nós começamos o trabalho, foi o Davi quem tomou as decisões, no sentido de quais seriam as linhas narrativas, quais histórias seriam contadas – e ele fazia essa escolha coletivamente, com os membros da sua comunidade. Isso foi o que permitiu esse transpirar de um cinema dentro da ética e da estética indígena.
Em alguns momentos eu defendia algumas ideias e o Davi dizia “não, não é assim que nós contamos, não é assim que as coisas são, não é assim que nós sonhamos”. Eu estava ali com a minha experiência como roteirista tanto dos meus filmes quanto nos de outras pessoas, mas me deixando conduzir por esses modos diferentes de construir uma narrativa cinematográfica.
Se as entidades sagradas estão presentes no dia-a-dia, isso deveria aparecer no filme. A mesma coisa com os sonhos e a sua centralidade. Se escolheram filmar a história de Omama e Yoasi, as duas entidades criadoras de toda a floresta, vamos fazer isso. Aqui a gente assumiu que poderia existir um certo estranhamento por parte do espectador diante de uma realidade que abarca esses elementos mágicos, mas essa experiência de imersão também é parte da proposta do filme.
Outro dispositivo que fez toda a diferença foi exercitar uma certa perda de controle, algo que é muito difícil para um diretor. Em certo momento eu cheguei a perder o sono porque parecia que estava ficando tudo muito abstrato, e eu pensava na equipe ali, filmando na comunidade Watoriki [dentro da TI Yanomami] por cinco semanas, mobilizando tantos indígenas. Mas essa perda de controle foi necessária, estar aberto para o que o ambiente trazia, para a disponibilidade e relação com o tempo dos indígenas. Nós não impusemos a eles um cronograma de filmagens, então muitas decisões acabavam sendo tomadas na hora, a partir dos acontecimentos, dos pássaros, da chuva, do horário de dormir e acordar, da relação com a fogueira durante a noite. Eu precisava perder essa autoridade da branquitude para deixar a câmera se impregnar verdadeiramente da poesia daquela realidade.
Por fim, vale lembrar que os Yanomami têm em si uma força e um senso estético muito evidenciados. Eles sabem que são bonitos, não se intimidam diante das câmeras. É um tipo de noção de si que é muito difícil de alcançar para um não-indígena e que também transparece quando filmada.
Dentre as histórias escolhidas está a de um jovem que, aliciado pelas oportunidades do garimpo e do mundo dos brancos, é aconselhado a permanecer em sua comunidade – um dos momentos mais delicados do filme. Como foi lidar com a questão geracional na hora de construir essa narrativa?
Davi Kopenawa: Tem uma parte dos jovens Yanomami que está com a cabeça estragada por causa do dinheiro, com a ilusão de ganhar dinheiro com o garimpo ou no mundo dos brancos. O dinheiro é um grande destruidor da nossa mente. Eles têm curiosidade de conhecer celular, televisão, computador – eles querem conhecer tudo o que o branco usa. E assim ele está adoecendo o pensamento dele. O celular é bom para falar. Não para ficar olhando, ficar vendo filme de violência, de um machucando o outro. Essa relação com o celular é uma doença que chegou primeiro até vocês, que também precisam lidar com isso com os filhos de vocês. Eu não diria a todos, mas metade dos jovens já não tem mais tanto interesse em trabalhar na roça, em caçar, em ajudar a fazer o que precisa. E existe o perigo para a cabeça desse jovem e isso foi bom de mostrar no filme.
Luiz Bolognesi: Nós tivemos uma experiência muito forte, que foi ver um conflito geracional ocorrer na nossa frente. Embora não exista nem sinal de internet nem de telefonia em Watoriki, alguns jovens têm celular onde assistem a filmes ou se distraem com jogos e utilizando a energia da equipe para carregar as suas baterias. As lideranças pediram para que não permitíssemos mais essa ação, o que gerou uma pequena revolta por parte dos jovens. Nós não colocamos isso no filme porque não queríamos aparecer como personagens, mas foi interessante perceber esse conflito. Particularmente, eu acredito que o celular tem também se transformado em ferramenta para os jovens indígenas na criação de conteúdo jornalístico e de arte, como um instrumento de afirmação de sua cultura. Lembrando que para esses jovens a escolha por ir para o mundo dos brancos significa, em muitos casos, passar a viver em situação de vulnerabilidade nas periferias das cidades.
Outro trecho trata sobre as mulheres da comunidade, que chegam a conversar sobre a possibilidade de se unirem em uma associação para venderem seus artesanatos – e, assim, se tornarem menos dependentes dos homens. As mulheres Yanomami estão em busca dessa emancipação?
Luiz Bolognesi: Essa foi uma das etapas mais desafiadoras do processo. Eu acabava passando muito tempo conversando com as mulheres. Eram conversas muito intensas nas quais elas me contavam sobre temas como sexo, menstruação, filhos, as formas como se relacionavam com as suas atividades cotidianas. Além disso, a câmera se apaixonou por elas. Então eu sugeri ao Davi que a gente contasse uma parte da história partindo do ponto de vista das mulheres, que elas fossem escutadas. E a primeira reação dele foi negativa. Na cultura Yanomami, a tomada de decisão é exclusivamente masculina e essa estruturação hierárquica entre os gêneros é muito presente. Passado um tempo, o Davi me procurou para dizer que eu tinha razão, que nós tínhamos que contar as histórias das mulheres. Como foram elas que escolheram a narrativa, é possível afirmar que existe uma movimentação no sentido de elas entenderem, sim, como ocupar de uma forma diferente o seu espaço na comunidade e em relação aos homens.
Davi, o filme também mostra o tenebroso avanço do garimpo sobre o seu território, com o nosso modo de vida capitalista destruindo a floresta que nutre toda a força Yanomami que agora pode ser vista nas telas. O que você gostaria que nós, não-indígenas, aprendêssemos com as histórias que foram contadas?
Davi Kopenawa: A primeira coisa é que eu acho que nós fizemos um filme muito bonito. E é importante que seja bonito. Preservação é uma palavra bonita. Então eu gostaria que vocês aprendessem a pensar, a dar valor para o que é bonito e também para o que protege a vida nesta terra-planeta. Porque nós estamos lá na terra-floresta, trabalhando, protegendo. Se vocês continuarem destruindo, quem vai sofrer com isso não vai ser o povo da floresta só, vão ser vocês também. Então, eu acho que é isso. Acho que já está na hora de vocês começarem a pensar. Vocês estão precisando também começar a aprender com com o que já está acontecendo ao redor de vocês, com as mudanças climáticas. Olhar não é só só para cinema.