14 Setembro 2021
Os gritos estavam presos na garganta, mas na manhã desta sexta-feira (10) eles puderam ser ouvidos. “Não à violência contra as mulheres”, “Cadê Bolsonaro amarrado num cipó?”, “A gente precisa de vida, não de morte”, “Vamos queimar o preconceito, vamos queimar o racismo, vamos queimar o fascismo”. Havia muito o que dizer, e elas disseram com veemência em mais de uma centena de línguas nativas. E também cantaram, acompanhadas por uma sinfonia de maracás, chocalhos, tambores, violões, casacas e flautas. A 2ª Marcha das Mulheres Indígenas finalmente pode sair levando para as ruas da capital federal as reivindicações dos povos originários.
A reportagem é de Cristina Ávila, publicada por Amazônia Real, 10-09-2021.
A marcha que seria de 8 quilômetros se alongou para 11 quilômetros em um novo trajeto. Foi imensa. Cinco mil mulheres saíram do acampamento por volta das 8h30 puxadas por um carro de som de onde falaram sobre os objetivos desta luta, que aborda a conjuntura política, as ameaças que tramitam no Congresso, o julgamento sobre o marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), mas principalmente para debate de assuntos específicos femininos. Elas vieram para Brasília tratar de saúde, educação e lutar contra o machismo e o feminicídio das mulheres indígenas. O retorno para o Acampamento Primavera Indígena foi por volta do meio-dia, com muito cansaço pelo dia seco de sol escaldante.
Marchar representou uma vitória em particular. O dia oficial seria na quinta-feira (9/9), mas um dia antes elas já teriam feito caminhadas até a Praça dos Três Poderes, quando tinham se programado para assistir em telão ao julgamento do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), resultado que definirá processos demarcatórios em todos os territórios indígenas. Por precaução e para “preservar vidas”, optou-se pelo adiamento. Havia o risco de confronto com apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, que desde o feriado de 7 de Setembro ocupavam Brasília e sinalizavam que poderiam atacar os povos indígenas. As coordenações da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) consultaram as delegações dos estados e decidiram mudar não apenas o dia, mas o trajeto.
Valeu a espera. A beleza e a força da cultura nacional marcharam sob forma de protesto, mas também para expressar a riqueza genuína presente nos cantos e falas indígenas, na arte plumária, nas música, dança e pintura corporal, no artesanato em miçangas e até em moda feminina. Alguns povos criaram estilos próprios em vestidos que chamam atenção pela singularidade e criatividade, registros que ficaram na memória de quem acompanhou o acampamento desde o dia 7 – a programação é a de que o encontro termine neste sábado.
Na manhã desta sexta-feira, antes de saírem em marcha, as mulheres receberam uma visita que demonstrou o acerto das estratégias assumidas pela organização da 2ª Marcha. O comandante do Batalhão de Policiamento Rodoviário da Polícia Militar do Distrito Federal, major Keldison de Sousa, recomendou às mulheres que fizessem “uma marcha tranquila”, e informou que os policiais estavam em número suficiente para protegê-las durante todo o trajeto, que não passou pela Esplanada dos Ministérios. Para reafirmar a segurança, estava também o comandante do Batalhão da Asa Sul, tenente-coronel Juani Lopes: “É um prazer recebê-las. Sabemos a importância do local para onde vocês vão, e estamos aqui para apoiá-las”, disse ele.
O destino seria a quadra 703 da Asa Sul, na W3, onde Galdino Jesus dos Santos, aos 44 anos, foi queimado enquanto dormia na parada de ônibus por ter se perdido dos parentes, em 20 de abril de 1997. Hoje, ele foi homenageado por seu povo, Pataxó Hã-Hã-Hãe, que integrou a marcha de 172 povos originários que foram ao local em sua memória. A sobrinha dele, Nambaiá, chorava e conseguiu pronunciar poucas palavras lamentando o assassinato do tio, que deu entrada no Hospital da Asa Norte (Hran) com profundas queimaduras em 95% do corpo. Jovens de classe média assassinaram Galdino, alegando que seria “uma brincadeira”.
A Marcha fez uma pausa no Monumento a Galdino (Foto: Jornalistas Livres/Leonardo Milano)
“Estamos aqui hoje para que nem um índio mais seja queimado. Vamos, sim, é queimar o preconceito, o racismo, o fascismo. Não ao marco temporal. Viemos para dizer que não vamos acatar invasões de madeireiros, garimpeiros”, disse a coordenadora-executiva da Apib, Sonia Guajajara. Ela lembrou do Projeto de Lei 191/2020 que abre territórios indígenas para mineração e também o Projeto de Lei 2633/2020, conhecido como PL da Grilagem, “que abre a porteira para passar a boiada e a motosserra esturrar”. Ela também lembrou a nomeação por Jair Bolsonaro de um dos assassinos de Galdino, Gutemberg Nader de Almeida Júnior, para cargo comissionado na Polícia Rodoviária Federal, em 2020, onde permaneceu por um ano.
Mas, num ato simbólico, as mulheres indígenas carregaram e por fim queimaram um boneco do presidente, que portava a faixa “Fora Bolsonaro”. E uma indígena, em um sistema de som, explicava a razão do ato: “Não podemos mais permitir o autoritarismo e a ditadura no Brasil”.
No percurso da 2ª Marcha das Mulheres Indígenas, com muitos gritos contra o marco temporal, tese defendida pelos ruralistas, elas contestaram a abertura de seus territórios para exploração de recursos naturais. “Viemos aqui para dizer não. Nós temos nossos direitos. A floresta é destruída para que tanta riqueza seja transportada para outros países”, afirmou Elsa Xerente, da Terra Indígena Xerente, de Tocantins. “Estamos aqui defendendo a vida, nossos peixes, como vão viver nossos peixes? Nós conversamos com a natureza.”
O ecossistema e os povos indígenas são um só organismo. Era possível perceber essa conexão na fala de Narubia Werreria, da TI Ilha do Bananal, também do Tocantins, que conta a história de seu povo: “Somos Iny, o povo do fundo do Berohoky. Morávamos em outra dimensão no fundo das águas, onde ninguém morria; temos parentes ainda lá, mas alguns subiram nesta dimensão onde agora morremos”. Perguntada se morrer foi então um castigo, ela simplesmente respondeu: “Não. É só uma outra condição”. Na língua materna, ela se refere ao rio Araguaia e ao povo Karajá.
Segundo informações registradas pelo Instituto Socioambiental, um dos principais linguistas de idiomas de povos originários, Aryon Dall’Igna, a família Karajá é do tronco Macro-Jê e se divide em três línguas: Karajá, Javaé e Xambioá. Cada uma com formas diferenciadas de falar, de acordo com o sexo de quem fala. Em algumas aldeias, devido ao processo de contato, o português tem sido dominante.
A Marcha revelou ainda um grande número de mulheres lideranças de seus povos. Como Edimara Gavião, do Maranhão. “Nossas mulheres têm garra. Força anciã com a juventude, numa troca de conhecimentos. Elas são nosso dicionário, guardiãs de nossa língua materna, de nossa cultura, de nossos rituais. E a juventude precisa estar aqui junto para absorver essa experiência”, disse.
2ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, em Brasília (Foto: Jornalistas Livres/Leonardo Milano)
Diante de recordes históricos de desmatamento e incêndios florestais durante o mandato de Bolsonaro, com incentivo à exploração de garimpos ilegais, invasões e mortes de indígenas, Márcia Mura advertia: “Se um bioma morre, todos os biomas morrem. A Amazônia está pegando fogo, matando nossos animais, nossas plantas, nossos povos. Queremos Justiça, queremos que parem o agronegócio, não queremos nossos rios barrados por hidrelétricas, estão matando nossos rios”. Ela é natural do território Mura, que abrange parte de Rondônia e Amazonas.
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Mulheres marcham e tacam fogo em boneco de Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU