Economista-filósofo francês sustenta: projeto moderno sucumbiu quando, diante da angústia democrática, colocou mercados no lugar de deus. Mas não há volta ao passado: e o resgate radical da igualdade pode evitar o colapso civilizatório.
Giraud em conferência no IHU” (Foto: João Vitor Santos | IHU)
Gaël Giraud, economista e padre jesuíta, ex-economista-chefe da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD), é diretor de pesquisa no CNRS [Centre National de Recherche Scientifique] e diretor do “Georgetown Ennvironmental Justice Program” na Universidade de Georgetown. Atualmente, também é candidato na “Primária Popular”, uma iniciativa lançada no contexto da eleição presidencial francesa de 2022 para escolher um “candidato comum de esquerda” (no momento em que escrevemos, ele se situa em terceiro lugar, atrás de Christiane Taubira e François Ruffin).
Junto com Felwine Sarr, Gael publicou em abril L’Économie à Venir [A economia do futuro] (les liens qui libèrent, 2021), um livro em forma de diálogo que discute os fundamentos da modernidade, do liberalismo e do capitalismo, ao mesmo tempo em que procura soluções para os males contemporâneos.
A entrevista é de Matthieu Giroux, publicada por Uzbek & Rica e reproduzida por OutrasPalavras, 10-09-2021. A tradução é de Vitor Costa.
O seu livro parte de uma constatação: nós perdemos de vista o projeto inicial da modernidade. Qual era?
Em minha opinião, poderíamos resumir a promessa da Modernidade com nossa divisa republicana: liberdade, igualdade, fraternidade.
A liberdade seria a renúncia de toda heteronomia, de toda sujeição ao poder político de uma entidade exterior como a Igreja, a tradição ou a cultura de uma nação. Colocamos o destino político de um coletivo numa deliberação na qual ninguém sabe o resultado. A decapitação do rei em 1793 é um gesto fundador. Nós renunciamos a fetichização do poder descrita pelo historiador Ernst Kantorowitz (1895-1963) em Os Dois Corpos do Rei (1957): quando considerávamos o rei o representante de Deus na Terra, o seu corpo era ao mesmo tempo a significação da presença de Deus para seu povo e o representante do povo em relação a Deus. O fim desse jugo é o primeiro pilar da Modernidade: cortamos a cabeça do rei e deixamos o lugar do poder vazio. Ficamos, portanto, com um enigma angustiante que é a própria essência da democracia.
O segundo pilar é a igualdade. Acreditamos no Estado de Direito e na lei como uma instância autônoma em relação ao poder. Não posso me apoderar do direito, nem você nem eu, nem aquele que será o substituto do rei por um tempo definido de acordo com as regras dadas por um procedimento eleitoral. A lei é obrigatória para todos e visa à igualdade perante a lei. Ninguém pode ignorar isso. Essa igualdade se estabelece como instância pública para a qual todos devem ser capazes de perceber o significado e perante o qual todos prestam contas da mesma forma. O terceiro pilar é a fraternidade, que é de fato um conceito cristão.
Devemos nos reconectar com o projeto moderno original ou renová-lo à luz das questões contemporâneas?
É necessário nos reconciliar com ele e renová-lo completamente. O pós-liberalismo traiu essa promessa. O sintoma dessa traição é a explosão das desigualdades e da miséria em que mergulhamos alguns povos que havíamos prometido integrar ao projeto iluminista. Esta é a tese do intelectual indiano Pankaj Mishra, autor de L’Age de la Colère [A Era da Cólera] (2017): a globalização do mercado gerou o trumpismo nos Estados Unidos, o Brexit na Inglaterra, as pessoas que se uniram ao Boko Haram, o nacionalismo hindu, Ou Marine Le Pen na França… Não devemos misturar tudo, claro, mas há uma espécie de ressentimento generalizado em relação à globalização mercantil.
O pós-liberalismo devolveu um corpo de rei ao lugar do poder: são os mercados financeiros. Eles ocupam exatamente o lugar que Deus ocupava no Antigo Regime. São eles que decidem se uma política pública é legítima ou não. Ressacralizamos o poder e recaímos na heteronomia política. O direito é totalmente distorcido.
Veja o que o presidente Macron está fazendo na França: o direito é sequestrado para proteger os interesses de uma pequena minoria privilegiada, em vez de servir à igualdade de todos perante a lei. A evasão fiscal também é uma negação radical da igualdade para todos. Nós tornamos absoluta a propriedade privada embarcando em um programa econômico que implica na privatização do mundo: qualquer coisa pode ser transformada em mercadoria. Macron é o arquétipo do rei-criança que implementará este projeto.
Devemos tomar consciência dessa traição e nos reconectar aos dois primeiros pilares. Temos que dessacralizar o poder e regular radicalmente os mercados financeiros. Devemos nos reconciliar com o Estado de Direito. Isso pressupõe, por exemplo, ter uma proteção/vigilância impecável sobre as questões fiscais. Devemos pensar na propriedade como algo da esfera do Comum e, portanto, como uma renovação muito profunda da modernidade.
Como você vê as virulentas críticas à modernidade que vêm tanto das ciências sociais quanto da filosofia e da literatura?
Eu entendo essa crítica, mas também acho que temos que ser muito vigilantes. É um processo fundamental, profundo e construtivo. Certa crítica da modernidade, contida numa nostalgia de um mundo que garantiria a unidade de um povo, está disposta a renunciar ao sofrimento da aventura democrática. Essa crítica foi expressa em particular no início do século XIX no espaço que se tornaria [posteriormente] a Alemanha, como uma reação à violência dos exércitos napoleônicos. A vitória de Iena é um grande trauma para as elites de língua alemã. Ocorreu então uma reação antifrancesa que preconizava um retorno à terra, à natureza e que se expressava em particular no romantismo. Isso é algo fundamentalmente reacionário e não é de agora. Discordo dessa crítica “antimoderna”.
Por outro lado, existem outras críticas à modernidade que não são necessariamente antimodernas. Estou pensando naquela do sociólogo alemão Hartmut Rosa ou na de seu compatriota, o filósofo Jürgen Habermas. Este último considera que foi um erro pensar que o terceiro pilar poderia ser assegurado pela propriedade privada. Em minha opinião, devemos voltar à grande tradição do direito romano e da herança cristã: o Comum é a categoria fundamental da relação que a humanidade pode ter com as coisas que ela possui. Aí vemos a crítica pertinente que devemos fazer à Modernidade: substituir o Comum pela propriedade privada como o terceiro pilar. Este é o grande projeto de uma modernidade 2.0.
Como economista e padre jesuíta, o que você acha da frase de Charles Péguy de que “o dinheiro está só diante de Deus”?
A denúncia do dinheiro em Péguy é bastante cristã, já se encontra nos Atos dos Apóstolos e nos Evangelhos. Nisso ele se assume como um intelectual cristão. Sua denúncia é, ao mesmo tempo, nostálgica e lúcida. Concordo com Péguy sobre a segunda parte [sobre sua lucidez], mas prefiro me expressar como o filósofo norte-americano Michael Walzer, que se propõe a definir o que é uma sociedade com justiça complexa. Ele afirma, como bom modernista, que não sabe o que é justiça. Então, propõe um critério de justiça social: o fato de ser valorizado em uma esfera social nunca deve autorizar-me a sê-lo em outra. Por exemplo, o fato de ser um líder empresarial muito bom não me dá o direito de possuir todos os meios de comunicação em meu país. É o dinheiro que permite que se atravesse fronteiras assim. É o único meio que possui tal poder de abstração, que permite que todas as esferas sociais sejam violadas. Walzer vê o dinheiro como o sintoma fundamental da violação da justiça complexa. E, na obra dele, não há nenhum indício de nostalgia do Antigo Regime.
O universalismo iluminista está historicamente ligado ao projeto colonial. Devemos renunciar ao Iluminismo? Ou melhor, expurgar do universalismo sua tendência à dominação?
Devemos renunciar a qualquer universalismo abstrato [como projeto, que se sobreponha a outras coisas]. Esta é a violência colonial, mas também, de forma mais geral, a violência da metafísica ocidental. A categoria fundadora, e insisto muito nisso em Composer un Monde en Commun [“Compor um Mundo em Comum”] (a ser publicado em janeiro de 2022 pela “Editions du Seuil”), é a narrativa, não é mais a lei. Uma história pode ou não gerar outras narrativas. Ela torna-se um Comum hermenêutico, ou seja, uma história que é deixada à interpretação dos outros, que podem se apropriar dela e que são livres para escrever uma nova. Os socialistas franceses no início do século XIX se basearam fortemente na tradição cristã e no Livro do Êxodo. A seu ver, os homens precisavam de uma nova fuga do Egito, de um novo êxodo, e foram buscar fontes de inspiração. Mas eles não tentaram reproduzir um modelo exato.
Quando tentei desmascarar a falsa lei de separação bancária em 2013, procurei escrever uma narrativa francesa diferente da que prevalecerá. Para mim, há duas maneiras de entender o que é um Comum.
Por um lado, o recurso comum, o recurso compartilhado com regras de governança adequadas.
Por outro, a interpretação de uma história como comum. Se uma narrativa se apresenta como uma história entregue à liberdade dos outros e destinada a produzir novas narrativas, então também é um Comum.
E há uma ligação entre esses dois tipos de Comum. O Comum como recurso, aquilo que pensamos junto dos ecologistas, só o é se as regras de governança que permitem que ele seja cuidado sejam elas mesmas um Comum hermenêutico, isto é, aberto à deliberação e à reescrita.
Com Felwine Sarr, você parece postular que uma renovação da modernidade deve vir de fora do Ocidente. De que forma a África tem os recursos filosóficos necessários para tal desafio?
Muitas culturas e tradições africanas compartilham alguma forma de Ubuntu, ou seja, uma antropologia relacional que postula que o ser humano não é um átomo isolado, mas um nó de relações. É o oposto da monadologia leibniziana. O que define um homem são as relações que ele mantém com as coisas e com as outras pessoas. Sem isso, o homem não é nada. Eu sou apenas essas relações. O Ubuntu inclui neste nó relacional tanto o homem quanto a natureza, bem como ancestrais e descendentes. Essa antropologia relacional poderia inspirar os ocidentais porque possibilitaria implementar e compreender o que é comum. Se eu tento cuidar de algum recurso como um Comum, é porque acredito que essa relação tem precedência sobre todo o resto. Se eu acredito no primeiro pilar da liberdade e aceito entrar no desconforto da deliberação democrática, acredito que algo novo, profundo e feliz possa surgir.
Os ocidentais deveriam relativizar a oposição entre o individual e o coletivo?
Para o antropólogo Philippe Descola, a Europa cristã é essencialmente analogista. Na Idade Média, acreditava-se que tudo era relação. Diz-se que a Europa se tornou naturalista por volta dos séculos XVI e XVII. Começamos a acreditar em uma ruptura radical entre o mundo humano e o mundo não humano. O homem se distinguiria no reino animal por sua interioridade, quer se chame de alma, espírito ou ‘res cogitans’. Essa premissa nos separa da natureza e nos isola. Um forte símbolo desse estado de espírito é o Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci. Os ocidentais referem-se a este desenho como uma representação da humanidade. No entanto, ele é um homem isolado, que não tem relação com nada, nem com a natureza, nem com os outros humanos: não há mulheres, nem crianças, nem idosos. Ele é um homem branco maduro e saudável que está em uma relação de dominação no mundo por meio da técnica. Ele não precisa de nada além de si mesmo. Isso é típico do imaginário antropológico ocidental.
Não seria esse, finalmente, o grande erro da modernidade?
Parte da imaginação moderna está imbuída dessa ideia. No entanto, isso esgota a antropologia dos modernos? Espero que não, caso contrário, significaria que não há nada para salvar. Alguém como Rousseau, ao contrário de Voltaire, não participa de jeito nenhum dessa antropologia. Devemos preservar na modernidade o que não é solúvel na antropologia do Homem Vitruviano.
Hoje em dia, notamos que muitas doenças mentais (burnout, tédio) adaptam-se muito bem ao conforto material. Como a interpretação econômica do mundo que continua a predominar nas elites, é insatisfatória [para interpretá-lo]?
A economia neoclássica, que tentou copiar a física da época, reduziu os relacionamentos humanos às relações mecânicas. Esta economia é incapaz de compreender o que se passa nas relações sociais. A empresa é, então, uma caixa preta que produz dividendos para seus acionistas. Se você acredita nisso, não há mais relacional e coletivo: você destrói os seres humanos que estão envolvidos. Da mesma forma, a economia neoclássica é incapaz de compreender as instituições sociais, sejam elas o mercado ou o Estado. E, a fortiori, as instituições híbridas que devem ser inventadas hoje para dar conta do Comum.
O antropólogo norte-americano David Graeber (1961–2020) denunciou os “trabalhos de merda” [bullshit jobs] que levam ao “brown-out” (literalmente, [queda de energia]), ou seja, a consciência de estar envolvido em um trabalho que não faz mais sentido para mim e que eu sei que é inútil, ou até prejudicial. Mas estou nele porque preciso alimentar minha família. De acordo com David Graeber, um terço dos executivos/funcionários no Ocidente está convencido de que está fazendo um trabalho inútil. Em minha opinião, devemos reintegrar a Economia como disciplina acadêmica no campo das humanidades e também em um diálogo mais estreito com as ciências físicas que ela abandonou por completo. Além disso, no início, o ensino de Economia não estava separado do ensino de Direito. Só depois da Segunda Guerra Mundial é que aconteceu a colonização da Economia pelos engenheiros. A economia hoje se tornou uma técnica de engenharia.
Você afirma que nossas sociedades estão presas à esterilidade científica desde a “virada pós-liberal” dos anos 1980. Quais são as consequências de tal colapso teórico na economia?
As consequências são enormes. No encontro das gerações de três grandes matemáticos e físicos teóricos há um impasse, com o conhecimento da física das supercordas, a física das partículas e a tentativa de unificar a teoria da gravitação com a da mecânica. Estamos há quarenta anos estagnados neste programa de pesquisa para onde enviamos os melhores entre nós, e eles não produzem nada. Como resultado, ficamos muito para trás em uma série de assuntos como termodinâmica, que é fundamental para a transição ecológica, a física dos plasmas ou fusão nuclear. Destaco que a fusão nuclear, diferente da fissão clássica, é a solução para produzir um tipo de energia totalmente limpa. Entretanto investimos tão pouco nessa área que não teremos uso industrial da fusão nuclear antes de 2080.
Isso tem, portanto, grandes consequências ecológicas, econômicas e políticas. Existe uma ligação entre a esterilidade da pesquisa em física e a economia neoclássica. São duas áreas que fascinam as mentes sutis, mas não têm nenhuma conexão com a realidade. Grande parte da teoria das cordas não é apoiada pela experiência empírica. São teorias poderosas (como a escolástica, o hegelianismo ou o marxismo no passado) que funcionam como liquidificadores. Se você souber como usá-lo corretamente, será capaz de produzir qualquer tipo de resposta abstrata que faça sentido.
Você acredita que os “pós-liberais atuais” (de Margaret Thatcher a Emmanuel Macron) são os “coveiros do liberalismo”. Qual é a sua definição de liberalismo e como podemos dizer que Macron não é um liberal?
Irei assimilar o liberalismo aos pilares da modernidade de que falei acima: autonomia política, Estado de direito e propriedade privada, mas uma propriedade que não é [absolutizada] e que se coloca ao serviço do Estado de Direito. Thatcher e Macron não são liberais nesse sentido. Eles distorcem o Estado de Direito para defender os interesses privados de uma minoria. Para eles, a propriedade privada não está mais embutida nos outros dois pilares. Ela foi absolutizada e se tornou o motor da história. No entanto, a privatização do mundo destrói o laço social. Isso é o que o economista húngaro Karl Polanyi (1886-1964), autor de A Grande Transformação (1944), entendeu: a privatização excessiva do mundo leva ao fascismo.
Podemos falar também de “liberalismo autoritário”, isto é, de um Estado forte que se deteria à porta dos patrões, como queria o advogado do Terceiro Reich Carl Schmitt (1888-1985)?
Prefiro falar em “pós-liberalismo autoritário”. O destino do pós-liberalismo é se tornar autoritário. Ao destruir a deliberação democrática, a igualdade de todos perante a lei e ao tornar absoluta a propriedade privada, o vínculo social é destruído. O sofrimento das vítimas é tal que elas acabam se entregando a qualquer palhaço, seja ele Salvini, Trump ou Marine Le Pen. E o desastre ecológico adiciona uma nova dimensão a tudo isso.
Para construir uma sociedade de baixo carbono e com baixa pegada material, temos duas grandes opções extremas. Primeira opção, aquela que muitos ativistas ambientais têm em mente: estabelecer uma sociedade totalmente descentralizada, idealmente sem Estado, onde todos se tornem autônomos ao produzir eletricidade em seus jardins. Segunda opção: um Estado autoritário, centralizado, que mantém uma aliança estreita com o capital privado, que distorce as liberdades e que, dessa forma, opera uma transição ecológica, mas fazendo com que os pobres paguem a conta. Este é o modelo chinês.
Nossas sociedades estão nessa encruzilhada. Cada um dos países inventará sua própria combinação. Pessoalmente, defendo a solução de um Estado que possibilite as condições para a emergência do Comum e, portanto, a possibilidade de uma sociedade civil suficientemente rica e descentralizada para a constituição de cooperativas e produção local de energia elétrica. O Estado também garantiria a perfeita continuidade do serviço público, em harmonia com as cooperativas de produção de energia, para que cada cidadão seja abastecido decentemente onde quer que more. Macron escolheu a opção chinesa. Parte do alto escalão do serviço público é fascinado pela China. O pós-liberalismo está se movendo para a segunda opção. E as classes populares, cujo sofrimento é crescente, vão acabar pedindo por essa segunda opção.
Gaël Giraud participou em outubro de 2020 dos ciclos de estudos "Renda Básica Universal. Para além da justiça social" e "Emergência Climática. Ecologia integral e o cuidado da casa comum", promovidos pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.