Relator do processo, Edson Fachin posicionou-se a favor dos povos indígenas; STF deve retomar julgamento sobre terras indígenas na próxima semana com voto de Nunes Marques.
A reportagem é da Assessoria de Comunicação da Anmiga/MNI, publicada por Cimi, 09-09-2021.
Em um voto que já pode ser considerado histórico, o ministro Edson Fachin, relator do processo de repercussão geral sobre demarcação de terras indígenas no Supremo Tribunal Federal (STF), rechaçou a tese do marco temporal e reafirmou o caráter originário dos direitos constitucionais indígenas, que ele caracterizou como cláusulas pétreas.
Em todo o país, os povos indígenas aguardavam com muita expectativa o voto do ministro, que já havia lido seu relatório inicial do processo no dia 26 de agosto e apresentado um preâmbulo de seu voto na sessão realizada na tarde de ontem (8).
#MarcoTemporalNão Em Brasília, povo Xokleng comemora o voto do ministro Edson Fachin, que reafirmou o caráter originário dos direitos constitucionais indígenas, rechaçou a tese ruralista do marco temporal e votou a favor dos Xokleng no mérito da ação.
— Cimi (@ciminacional) September 9, 2021
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A posição expressa pelo relator em seu voto foi bastante comemorada pelas mais de 5 mil mulheres que participam da II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, em Brasília. Elas acompanharam a sessão do julgamento por meio de um telão instalado na tenda principal do acampamento, localizado na Funarte.
Segundo a votar, o ministro Nunes Marques deu início à leitura de seu voto, mas antes de entrar no mérito da questão pediu para o presidente Luiz Fux que seu voto seja concluído na próxima sessão. O julgamento deve continuar na tarde da próxima quarta-feira (15).
“O voto de Fachin foi muito importante e favorável aos direitos constitucionais dos povos indígenas. O ministro afastou a tese do marco temporal e do renitente esbulho, ressaltando também outras questões que asseguram o direito reconhecido aos povos indígenas na Constituição para a proteção dos direitos territoriais”, explica Samara Pataxó, co-coordenadora jurídica da Articulação dos povos indígenas do Brasil (Apib).
“Na próxima semana, o ministro Nunes Marques vai entrar no mérito do seu voto, no qual ele pode concordar com o voto do relator, o que seria muito positivo para os direitos territoriais dos povos indígenas, mas pode também divergir, no todo ou em parte, do voto do ministro relator”, antecipa a advogada.
“Hoje de manhã, estivemos em um momento de oração, de conexão espiritual. Isso mostra nosso poder de conexão entre nós e com o astral que a gente invoca, com nossa ancestralidade. Essa força, essa vitória, é acima de tudo dada por aqueles que nós invocamos”, afirma Cris Pankararu, da coordenação da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
Emoção do povo Xokleng após voto favorável do ministro Edson Fachin. Indígenas acompanharam votação do acampamento da II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, em Brasília. (Foto: Marina Oliveira/Cimi)
Ponto de maior discussão no julgamento, Fachin rechaçou a tese do marco temporal ao considerar que a Constituição Federal de 1988 dá continuidade aos direitos assegurados em Cartas Constitucionais anteriores e que seus direitos territoriais não tiveram início apenas em 5 de Outubro de 1988.
“A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 e independe da configuração de renitente esbulho”, afirmou Fachin.
Além disso, o ministro também foi enfático ao afirmar que a Constituição Federal reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado.
“Como se depreende do próprio texto constitucional, os direitos territoriais originários dos índios são reconhecidos pela Constituição, mas preexistem à promulgação da Constituição”, explicou Fachin.
Esta interpretação, antagônica à tese do marco temporal, corresponde à “teoria do indigenato”, consagrada na Constituição de 1988, mas questionada pela bancada ruralista e por grupos econômicos interessados na exploração e na apropriação das terras indígenas.
Fachin salientou que o procedimento demarcatório realizado pelo Estado não cria as terras indígenas – ele apenas as reconhece, já que a demarcação é um ato meramente declaratório, e não constitutivo. Essa compreensão também se estende à posse que os povos indígenas exercem sobre seus territórios.
“A demarcação não constitui a terra indígena, mas a declara: declara que a área é de ocupação pelo modo de viver indígena. Portanto, a posse permanente das terras de ocupação tradicional indígena independe, para esse fim, da conclusão ou mesmo realização da demarcação administrativa dessas terras, pois é direito originário das comunidades indígenas”, enfatizou o ministro.
A tese do marco temporal pretende restringir as demarcações de terras indígenas apenas àquelas terras que estivessem sob a posse dos povos no dia 5 de outubro de 1988 ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada – o chamado “renitente esbulho”.
Fachin também rechaça a exigência do “renitente esbulho” como um critério para a comprovação da tradicionalidade de uma terra indígena. O ministro recorda, em seu voto, que até 1988 os povos indígenas eram tutelados pelo mesmo Estado que atuava no sentido de promover a sua “integração” à sociedade envolvente – e, por isso, não tinham como recorrer judicialmente contra o roubo de suas terras.
“Desde o período colonial, estavam os indígenas brasileiros submetidos aos regimes tutelares com a finalidade de aculturá-los e de promover sua assimilação progressiva ao novo território do colonizador”, lembra o ministro.
“Restou ainda mais nítida a postura integracionista do Estado brasileiro com o Estatuto do Índio, que estimulava o progressivo abandono da condição de indígena para a aquisição plena da capacidade de possuir direitos. Evidentemente, esses subsídios não subsistem expressamente diante da ordem constitucional vigente”, concluiu o relator.
O ministro Edson Fachin também caracteriza, em seu voto, os direitos constitucionais indígenas como direitos fundamentais, de caráter coletivo e individual. Isso significa que eles são cláusulas pétreas, ou seja, esses direitos não podem sofrer retrocessos e nem ser modificados.
A proteção assegurada pela Constituição Federal aos povos indígenas e seus territórios, segundo essa interpretação, não pode ser relativizada: ela deve ser garantida de forma contínua e integral.
“Aplicam-se aos direitos indígenas todas as formas de vedação ao retrocesso e de proibição da proteção deficiente de seus direitos, uma vez que estão atrelados à própria condição de existência dessas comunidades e de seu modo de viver”, argumenta o ministro.
O voto do ministro Edson Fachin também reafirma outros aspectos garantidos pela Constituição Federal de 1988 aos povos indígenas, como a nulidade de todo e qualquer título incidente sobre terras indígenas e a garantia de que as terras indígenas, de propriedade da União, são destinadas ao usufruto exclusivo dos povos originários.
Assim, a Constituição impede a “concessão de qualquer forma de direito real ou pessoal” sobre as riquezas do solo, rios e lagos existentes nas terras indígenas, “ou mesmo a realização de atos negociais com os índios que lhes retire da condição de usufrutuários exclusivos da terra”, argumenta Fachin.
Outro argumento refutado pelo ministro Edson Fachin é o de que o STF já possuiria uma jurisprudência consolidada sobre a demarcação de terras indígenas, baseada no precedente do caso Raposa Serra do Sol. Fachin argumenta que o reconhecimento da repercussão geral do caso Xokleng reflete a necessidade de buscar uma solução para os conflitos fundiários que persistem no Brasil.
“Dizer que Raposa Serra do Sol é um precedente para toda a questão indígena é inviabilizar as demais etnias indígenas. É dizer que a solução dada para os Macuxi é a mesma dada para os Guarani. Para os Xokleng seria a mesma dada para os Pataxó”, afirma o ministro. “Quem não vê a diferença não promove a igualdade”.
O relator também afastou a aplicação das 19 condicionantes estabelecidas no caso Raposa Serra do Sol para os demais casos de demarcação de terras indígenas. Entre elas, a proposta de proibir a revisão de limites de terras indígenas, desde que com base em análise técnica e científica, baseada no estudo antropológico de cada reivindicação.
Emoção do povo Xokleng após voto favorável do ministro Edson Fachin. Indígenas acompanharam votação do acampamento da II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, em Brasília. (Foto: Marina Oliveira/Cimi)
No mérito, o processo trata de um recurso, originalmente impetrado pela Funai, contra uma ação de reintegração de posse que o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) moveu contra o povo Xokleng.
A disputa envolve a reserva ambiental do Sassafrás, criada pelo estado de Santa Catarina sobre uma parte da Terra Indígena (TI) Ibirama-La Klãnõ, já reconhecida e declarada como terra tradicionalmente ocupada pelo povo Xokleng.
“No caso concreto, o ministro anulou a sentença do TRF-4 que determinava a retirada dos Xokleng da área e determinou o reconhecimento da terra, já declarada pelo Ministério da Justiça, como de posse e ocupação tradicional do povo. Diante da tese apresentada, isso implica que a terra é de fato indígena e que a posse pertence de imediato aos Xokleng”, explica Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Cimi e advogado do povo Xokleng.
Por fim, Fachin ainda afirma que não há contradição entre a proteção ao meio ambiente e o reconhecimento de uma terra como de ocupação tradicional indígena.
Ao concluir seu voto, Fachin apresentou uma proposta de tese, sintetizando os principais pontos em debate em relação aos direitos territoriais indígenas. A proposta foi a mesma que já havia sido apresentada no plenário virtual do STF, em junho, quando o julgamento foi suspenso por um pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes.
Com dez pontos, tese proposta pelo relator do processo é a seguinte:
Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sob os seguintes pressupostos:
I – a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
II – a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
III – a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;
IV – a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição. 108 Cópia RE 1017365 / SC
V – o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;
VI – o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência;
VII – as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
VIII – as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
IX – são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;
X – há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.