02 Setembro 2021
"Uma das grandes falhas da CIPD do Cairo foi omitir e desconsiderar a análise sobre o bônus demográfico e a mudança na razão de dependência", escreve José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo e pesquisador em meio ambiente, em artigo publicado por EcoDebate, 01-08-2021.
“Não confie em ninguém com mais de 30 anos” – Jack Weinberg (1940 – )
A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada de 5 a 13 de setembro de 1994, na cidade do Cairo, no Egito, caminha para os 30 anos. Mas antes mesmo de se tornar uma balzaquiana, a concepção de população e desenvolvimento aprovadas na CIPD parece que envelheceu e as receitas apresentadas em 1994 já não dão conta nem dos velhos e nem dos novos desafios globais da década de 2021-30. A própria ONU, de certa forma, já abandonou o Plano de Ação (PoA) da CIPD ao estabelecer a Agenda 2030 centrada nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que, em grande medida, lastimavelmente, trata as questões demográficas de maneira superficial.
A CIPD aprovou o PoA – valido por 20 anos – que se tornou uma referência para as políticas de população e para os direitos sexuais e reprodutivos em todo o mundo. A ideia é que investindo em cidadania e no empoderamento das pessoas (maiores direitos e maior bem-estar) a fecundidade cairia e haveria um efeito de retroalimentação entre progresso social e menor crescimento econômico. Os parágrafos 3.14 e 3.15 colocam claramente que a queda da fecundidade é fundamental para garantir a erradicação da pobreza, para o aumento da qualidade de vida e para a proteção do meio ambiente; colocando também a necessidade de estabilização da população:
“3.14 Estão se fortalecendo mutuamente os esforços para diminuir o crescimento demográfico, para reduzir a pobreza, para alcançar o progresso econômico, melhorar a proteção ambiental e reduzir sistemas insustentáveis de consumo e de produção. Em muitos países, o crescimento mais lento da população exigiu mais tempo para se ajustar a futuros aumentos demográficos. Isso aumentou a capacidade desses países de atacar a pobreza, proteger e recuperar o meio ambiente e lançar a base de um futuro desenvolvimento sustentável. A simples diferença de uma única década na transição para níveis de estabilização da fecundidade pode ter considerável impacto positivo na qualidade de vida".
"3.15 O crescimento econômico sustentado é essencial, no conceito de desenvolvimento sustentável, para a erradicação da pobreza. A erradicação da pobreza contribuirá para reduzir a velocidade do crescimento demográfico e para se chegar de imediato, a uma estabilização da população”.
Mas a despeito desta meta demográfica, a população mundial que era de 5,6 bilhões de habitantes, em 1994, deve chegar a 8 bilhões em 2023. Portanto, segundo a divisão de população da ONU, em 30 anos, a população mundial terá um montante de mais de 2,4 bilhões de habitantes. Isto é mais do que todo o crescimento da história da humanidade até o fim da Segunda Guerra (1945). A despeito das boas intenções, as taxas de fecundidade no mundo caíram em ritmo mais veloz antes da CIPD do Cairo do que depois. A aposta no crescimento econômico para avançar com os direitos de cidadania trouxe mais desafios do que soluções, pois os problemas ambientais se agravaram no período. Os problemas sociais não foram amplamente resolvidos e os desequilíbrios ecológicos se ampliaram e se agravaram.
O gráfico abaixo mostra a transição da fecundidade no mundo, na Coreia do Sul e na Costa Rica entre 1960 e 2020. A Taxa de Fecundidade Total (TFT) no mundo era de 4,93 filhos por mulher no quinquênio 1965-70 e caiu para 3 filhos em 1990-95 (época da CIPD) e chegou a 2,47 filhos em 2015-20. A queda da fecundidade nos 25 anos antes da CIPD foi de 39% e nos 25 anos depois do Cairo foi de 18%. Já na Coreia do Sul a TFT caiu de 5,6 filhos em 1960-65, para 2,92 filhos em 1975-80 e para 1,68 filho em 1990-95, portanto, houve uma queda de 48% nos 15 anos antes (do referencial de 2,9 filhos) e 43% nos 15 anos depois. Na Costa Rica a queda foi de 42%, nos 25 anos antes e 43% nos 25 anos posteriores, conforme mostra o gráfico abaixo.
(Foto: EcoDebate)
O que os casos da Coreia e da Costa Rica mostram é que a fecundidade poderia cair rapidamente quando as taxas eram altas, mas também poderiam continuar caindo depois de uma TFT de 3 filhos por mulher. Mas não foi só o desenvolvimento da Coreia do Sul e da Costa Rica que possibilitou isto, pois foram fundamentais as políticas de apoio ao planejamento familiar e de incentivo de tamanho pequeno das famílias. Estes países deram ênfase na questão do bônus demográfico (tema ausente na CIPD/1994).
O que aconteceu na Coreia do Sul e na Costa Rica (e também em Singapura, no Irã, em Taiwan, etc.) foi uma queda rápida da TFT com apoio do Poder Público e da sociedade civil. Isto possibilitou uma mudança na estrutura etária, uma redução da razão de dependência e o surgimento de um bônus demográfico que favoreceu a redução da pobreza e o aumento do bem-estar.
Portanto, a queda da fecundidade é fundamental para retirar as pessoas da miséria e para garantir outros direitos de cidadania. Na verdade, existe uma sinergia entre a queda da fecundidade e o aumento dos direitos, com os dois fenômenos se reforçando e contribuindo para o aumento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Mas o Programa de Ação da CIPD teve como um dos eixos principais a busca do “crescimento econômico sustentado, no contexto de um desenvolvimento sustentável”, como ficou claro no preâmbulo do relatório da CIPD: “A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento acontece num momento decisivo na história da cooperação internacional. Com o crescente reconhecimento de população global, desenvolvimento e interdependência ambiental, nunca foi tão grande a oportunidade de adotar políticas adequadas de macroeconomia e socioeconômicas para promover o crescimento econômico sustentado no contexto de um desenvolvimento sustentável” (Relatório da CIPD, 1994, p. 38).
Mas o desenvolvimento sustentável, na maior parte das vezes virou “maquiagem verde”, ou virou um oximoro e o tripé da sustentabilidade (social, econômico e ambiental) virou um trilema, como mostraram Martine e Alves (2015) e Hickel (2019). O apelo ao “crescimento econômico sustentado” não encontra suporte na realidade atual marcada por uma emergência sanitária, econômica e ambiental.
A CIPD do Cairo tocou na questão demográfica, pois o item 3.15 dizia: “A erradicação da pobreza contribuirá para reduzir a velocidade do crescimento demográfico e para se chegar de imediato, a uma estabilização da população” (p. 46). Mas o que a CIPD não falou foi sobre o que acontecia no leste asiático e em outros países (como a Costa Rica) em que a redução da fecundidade ajudava na diminuição da pobreza. A CIPD foi míope para a contribuição da transição da fecundidade e para as mudanças na estrutura etária.
De fato, uma das grandes falhas da CIPD do Cairo foi omitir e desconsiderar a análise sobre o bônus demográfico e a mudança na razão de dependência. Como mostra o gráfico abaixo, a razão de dependência (RD) total do mundo estava em rápido declínio e seria o momento dos diversos países aproveitarem esta janela de oportunidade para dar um salto na qualidade de vida das populações. Mas este momento histórico foi praticamente ignorado, pois o mundo ainda estava contaminado pela discussão entre neomalthusianismo e antineomalthusianismo. Os 20 anos do PoA seriam as duas décadas de mais baixa razão de dependência do mundo. Vinte e seis anos depois, em 2020, a RD total está subindo e a janela de oportunidade começa a se fechar.
(Foto: EcoDebate)
A CIPD do Cairo aconteceu realmente em um momento histórico e poderia ser um marco no avanço da melhoria das condições de vida da população mundial e, de fato houve melhorias nos 20 anos do PoA, mas os avanços poderiam ser maiores se a questão do bônus demográfico fosse melhor abordada no relatório final da Conferência. Os países do leste asiático mostraram que a redução da fecundidade foi fundamental para a erradicação da pobreza. Agora a solução seria aproveitar o segundo bônus demográfico junto ao processo de envelhecimento. Mas sem aproveitar o primeiro bônus é difícil aproveitar o segundo bônus.
Na década de 2020 as condições gerais do mundo complicaram. A covid-19 trouxe desafios gigantescos. Além da pandemia e das questões de saúde (epidemias de Zika, Dengue, poluição do ar, etc.), existe o processo de envelhecimento populacional, a economia internacional caminha para a estagnação secular e as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade são duas ameaças existenciais à humanidade e à civilização. Atualmente, ao invés do crescimento sustentado o mundo precisaria pensar no decrescimento demoeconômico.
Como mostrei em artigo recente: “Se os conselhos fornecidos pela Economia Ecológica nas décadas de 1960 e 1970 tivessem sido considerados e se o decrescimento demoeconômico tivesse começado a ser planejado naquela época estaríamos numa situação bem melhor hoje em dia. Mas, mesmo com atraso, podemos ter esperança de que com menos gente, com redução do PIB e com regeneração dos ecossistemas, o mundo ainda teria condições de evitar um colapso sistêmico global e civilizacional” (Alves, 14/08/2020).
A CIPD do Cario, deixou de lado a centralidade da discussão sobre a contribuição da dinâmica demográfica sobre o desenvolvimento e fez uma aposta de que o “desenvolvimento sustentado” e o empoderamento das mulheres seriam suficientes para reduzir a pobreza, baixar a fecundidade e estabilizar a população. Indubitavelmente, defender os direitos humanos é fundamental, mas a estratégia do Programa de Ação da Conferência do Cairo não foi suficiente, nem para estabilizar o crescimento populacional e nem para dar um salto significativo nas condições econômicas e sociais da maioria empobrecida dos habitantes da Terra. E o mais irônico é que o país (a China) que tirou quase 1 bilhão de pessoas da pobreza e avançou com a classe média, foi exatamente aquele que atacou os direitos sexuais e reprodutivos (por meio da política de filho único), onde os homens são a maioria da população e o movimento feminista tem baixa repercussão e legitimidade social.
Muitos críticos dizem que o “Consenso do Cairo” escanteou a temática de população, ao mesmo tempo em que a perspectiva de gênero caiu na armadilha da “ideologia de gênero” e na polarização identitária, que reverteu no ressurgimento de forças retrógradas, o que possibilitou protagonismo para o conservadorismo moral e o fundamentalismo religioso, que são tradicionalmente correntes pronatalistas. Neste quadro, a implementação do PoA do CIPD não deu o suficiente destaque à dinâmica demográfica global como mostra O’Sullivan (2020 e 2021).
O fato é que os desafios atuais são muito maiores do que em 1994. A covid-19 mostrou como a economia mundial é vulnerável a uma pandemia. E os crescentes efeitos da crise climática mostram que os desastres ambientais vão aumentar nos próximos anos e décadas. Depois de 26 anos da CIPD do Cairo, está na hora da comunidade internacional pensar em ir além e construir um novo programa de ação que leve em consideração a dinâmica demográfica e a gravidade da situação sanitária, econômica e ambiental. O alerta dos cientistas mundiais sobre a emergência climática (05/11/2019) deveria ser considerado: “Ainda crescendo em torno de 80 milhões pessoas por ano, ou mais de 200.000 por dia, a população mundial precisa ser estabilizada e, idealmente, reduzida gradualmente”.
Indubitavelmente, a humanidade já ultrapassou os limites da resiliência do Planeta e mesmo que houvesse uma justa e igualitária distribuição de renda o déficit ambiental se manteria. Equidade de renda é fundamental para a justiça social, mas do ponto de vista da natureza a necessidade é de decrescimento do impacto demoeconômico. Para garantir a sustentabilidade ambiental e erradicar o déficit ecológico há 4 alternativas: 1) mudar o padrão de produção para manter uma economia de baixo carbono e de baixo impacto ambiental; 2) diminuir substancialmente o consumo; 2) diminuir substancialmente o tamanho da população; ou 4) fazer as três alternativas anteriores em conjunto. No caminho atual o mundo avança na direção da tragédia do ecocídio, que também é a estrada que leva ao suicídio humano e civilizacional.
O desafio da sustentabilidade requer respostas complexas e soluções múltiplas. Uma tarefa inadiável é promover o avanço tecnológico, a mudança da matriz energética, revolucionar a produção de alimentos e esforçar para o desacoplamento entre produção e recursos naturais. Mas isto somente não basta. É preciso também reduzir a pegada ecológica e o número de “pés”, isto é, diminuir o consumo conspícuo e o número de consumidores. “Menos é mais”, como mostra Jason Hickel em um livro que fornece o argumento mais persuasivo e abrangente em favor do decrescimento.
Ou seja, uma revisão da CIPD do Cairo precisa trocar a ideia do crescimento sustentado pela ideia do decrescimento planejado com regeneração ecológica. Se a CIPD deslocou o foco central da economia para as pessoas, agora é preciso fazer novo deslocamento para a ecologia como centro das atenções.
O mundo precisa rever a concepção antropocêntrica que levou ao Antropoceno (com a possibilidade de um colapso ambiental) e abraçar as perspectivas da Ecologia Profunda, caminhando rumo ao Ecoceno, que pode ser uma Era de respeito, harmonia e paz entre o ser humano e as demais espécies vivas da Terra.
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A CIPD do Cairo se aproxima dos 30 anos. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU