Nacionalismo e antiamericanismo: a legalidade e a política externa norte-americana. Entrevista especial com Carla Simone Rodeghero

Na visão da historiadora, o principal desdobramento da legalidade é a posse de Jango, que não acontece da forma como seria esperada por Brizola e por aqueles que apoiaram a campanha

Campanha da Legalidade no Palácio Piratini | Foto: Acervo Palácio Piratini

Por: Graziela Wolfart | 30 Agosto 2021


Entre vários desdobramentos oriundos da Campanha da Legalidade, em 1961, um deles, segundo a professora Carla Simone Rodeghero, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, é o fato de que “as forças que garantiram a posse do Jango sentiram que tinham a possibilidade de interferir na política nacional. Isso trouxe uma sensação de vitória e essa vitória criava a expectativa de novas conquistas”. Para ela, a Legalidade ajudou a criar uma consciência política no período de 1961 a 1964 e ficou para muitas pessoas que participaram e assistiram como um marco na percepção sobre o mundo. Na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line, Carla considera a Campanha da Legalidade como “um exemplo de participação política, de sucesso de iniciativa política, que marcou muito aqueles que tiveram atuação política entre 1961 e 1964”. E completa: “para o Rio Grande do Sul, o movimento da legalidade aparece como um momento importante para a constituição de uma consciência política, até para essa ideia de que o Rio Grande do Sul é um estado bastante politizado, para essa imagem que os gaúchos criaram de si”.

 

Carla Simone Rodeghero (Foto: Arquivo pessoal)

Carla Simone Rodeghero é doutora em História, professora do Departamento e da Pós-Graduação em História da UFRGS. É autora dos livros O diabo é vermelho: imaginário anticomunista e Igreja Católica no Rio Grande do Sul (1945-1964) (Passo Fundo: Ediupf, 1998) e Capítulos da Guerra Fria: o anticomunismo brasileiro sob o olhar norte-americano (1945-1964) (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007). Tem desenvolvido e orientado pesquisas sobre anticomunismo, ditadura, anistia, memória e história oral.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como a senhora define a política diplomática norte-americana no contexto da Campanha da Legalidade?

Carla Simone Rodeghero – No momento em que acontece o movimento da legalidade, os Estados Unidos estavam inaugurando uma nova política para a América Latina, a Aliança para o Progresso. Tratava-se de uma resposta à Revolução Cubana, marcada pela lógica de que a propagação da revolução na América Latina poderia ser barrada por ampla ajuda econômica, que mostrasse que a democracia (e, não dito, o capitalismo) poderia garantir crescimento econômico e melhores condições de vida. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos vinham investindo no reerguimento econômico da Europa e países como o Brasil tinham dificuldade em conseguir recursos de programas de governo para governo. Havia, sim, a pressão para que se criassem canais para a entrada de capitais privados norte-americanos, o que foi mais dificultado em alguns momentos (como no segundo governo Vargas) e mais facilitado em outros (durante o governo JK). Sobre a política externa norte-americana, é preciso dizer ainda que ela era marcada fortemente pelo anticomunismo. Depois de 1959, com Cuba, o olhar norte-americano se dirige com muito mais atenção à sua vizinhança.

 

IHU On-Line – Qual a influência norte-americana nos rumos políticos brasileiros a partir do contexto da legalidade e da posse de Jango?

Carla Simone Rodeghero – Realizei uma pesquisa com documentos de agências diplomáticas norte-americanas que funcionaram no Brasil, onde analisei como os norte-americanos avaliavam as campanhas anticomunistas em curso no Brasil entre 1945 e 1964. Acompanhando esse tema, foi possível perceber a preocupação que os norte-americanos tinham em relação a certas características da política brasileira. Uma delas era a forte presença do Estado na economia. Em muitos momentos fica explícito como os norte-americanos consideravam isso prejudicial para a economia e o desenvolvimento do Brasil, bem como o fato de que não se abriam os mercados, não se criavam as facilidades para que os capitais estrangeiros, no caso os capitais norte-americanos, aqui estivessem presentes. Ainda em 1945, último ano do Estado Novo, e depois no segundo governo Vargas, havia uma dificuldade de entender e aceitar que essa presença do Estado na economia pudesse ser positiva para o Brasil. E isso acabava também sendo visto de forma negativa pelo fato de que, muitas vezes, a bandeira do nacionalismo era entendida pelos norte-americanos como muito próxima da bandeira do comunismo. Então, acabavam se mesclando “perigos” que os norte-americanos viam em termos de política com as preocupações econômicas. Esses políticos que são herdeiros do getulismo, como foi o caso de Jango e Brizola, carregam – a partir do olhar norte-americano – esses “defeitos” que foram construídos pelo getulismo. Entre esses “defeitos” estão a questão da forte presença do Estado na economia e uma certa tolerância em relação às organizações trabalhistas e sindicais. Essa tolerância faria com que os agitadores comunistas pudessem ter mais espaço de atuação. Quando ocorre o movimento da legalidade e a posse do Jango, os norte-americanos não vão se colocar explicitamente contra a posse, porque é difícil na posição em que estão se colocar contra algo que está na Constituição. No entanto, eles têm muitas desconfianças em relação ao Jango e ao rumo que ele iria dar para seu governo. Esse rumo poderia ser (e o medo era esse) a radicalização daquelas tendências que já vinham do governo de Getúlio Vargas. As desconfianças que Jango herda são extremadas na sua pessoa, e foram manifestadas por aqueles que encabeçaram a tentativa de impedimento da sua posse. Eles consideravam inviável a posse de Jango, pois ele tinha uma história de aproximação com os trabalhadores, uma história de tolerância em relação às manifestações, às greves, à participação de sindicalistas do partido comunista.

 

IHU On-Line – Qual o papel dos militares enquanto atores políticos durante a Campanha da Legalidade?

Carla Simone Rodeghero – Se houve, desde o momento em que Vargas assume o poder, em 1930, e ao longo do Estado Novo, um forte apoio militar a ele e à ditadura do próprio Estado Novo, esse apoio começa a diminuir no ano de 1945, com toda a campanha pelo fim deste Estado e com a aproximação mais efetiva de Vargas com os trabalhadores a partir da criação do Partido Trabalhista Brasileiro e do apoio que Vargas recebeu do Partido Comunista. A partir de 1945, começa a ficar bem clara a divisão entre militares: os que veem de forma positiva esse projeto nacionalista e trabalhista de Vargas, e outros que começam a considerar essa aproximação com os trabalhadores e com o comunismo uma coisa negativa. Vão se construindo diferentes grupos políticos entre os militares. A política está entre as forças armadas desde muito antes do golpe. Entre esses militares teremos os pró-Vargas e os contrários a ele. Aqueles contrários a Vargas vão ser próximos do principal partido de oposição, que é a UDN e vão se revoltar em vários momentos; tentarão impedir a posse do JK, e alguns deles irão organizar rebeliões durante o governo de Juscelino e outros, ocupando esse postos nos ministérios militares do governo Jânio, vão tentar impedir a posse deste último. Só que além desses militares, que geralmente são oficias da alta hierarquia, toda a discussão em torno do projeto de desenvolvimento, da criação da Petrobras, em 1954, vai fazendo com que setores subalternos das forças armadas comecem a se interessar por política e comecem a fazer com que aquelas divisões entre oficiais e subalternos, entre a alta e a baixa hierarquia dentro das forças armadas, comecem a ganhar uma dimensão mais política e não só corporativa. Em 1961, teremos um protagonismo importante de cabos e de sargentos que vão decidir pelo apoio à Constituição. Ou seja, a Constituição diz que o vice-presidente ocupa o lugar do presidente nesses casos e a Constituição deve ser cumprida. Esses militares subalternos não tomam por acaso essa iniciativa em 1961 em Porto Alegre. Essa iniciativa é resultado de um processo de discussão política que já acontecia dentro das forças armadas e que não atingia esses subalternos, que sempre se sentiram muito desprezados, desvalorizados, e aos poucos começaram a perceber que a sua atuação tinha que ser também política, no âmbito do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e que poderiam, a partir dessa participação, mudar a sua condição como membros das forças armadas.

 

Brizola acompanha as barricadas no Palácio Piratini (Foto: Acervo Palácio Piratini)

 

IHU On-Line – Quais os principais desdobramentos ou marcas políticas que o movimento da legalidade deixa no Brasil?

Carla Simone Rodeghero – Os fatos que são conhecidos como movimento da legalidade são as respostas dadas a partir do Rio Grande do Sul, do governador Brizola, à tentativa de impedimento da volta e da posse de João Goulart. Houve muitas facetas nos acontecimentos que marcaram essas duas semanas que foram o movimento da legalidade. A principal faceta é a liderança de Leonel Brizola e da mobilização bastante eficaz que ele inicia e que tem a dimensão da rede da legalidade, das emissoras de rádio que passaram a divulgar os discursos do governador – sempre muito inflamados – em defesa da volta de Jango e em defesa de várias outras bandeiras que faziam parte desse projeto nacionalista, trabalhista, getulista. Uma das outras facetas é a preparação militar em torno do Palácio Piratini e a importância que nessa preparação militar tiveram esses oficiais da Brigada Militar e militares subalternos, tanto da Brigada como das forças armadas e quartéis do Exército, e também de unidades da Aeronáutica. Aí temos a questão da ordem de que o Piratini fosse bombardeado e do protagonismo dos sargentos que, em Canoas, desmontaram as bombas, esvaziaram os pneus dos aviões, impedindo que decolassem. Junto com isso, temos a mobilização popular, porque muitas pessoas passaram a se dirigir às imediações do Palácio Piratini, com cartazes e faixas de apoio à posse do Jango, à iniciativa de Brizola. Isso também revela que existem setores dentro da sociedade gaúcha que são solidários à proposta do Brizola. Naquele momento, a população na rua foi sensibilizada e conquistada pelo discurso em prol da legalidade. O fato de que Brizola já tinha sido prefeito de Porto Alegre e que já estava, havia alguns anos, como governador do estado facilitou para que ele conseguisse capitalizar apoios conquistados a partir de diversas iniciativas. Por exemplo, Brizola se destacou muito em relação a tudo o que fez pela educação.

 

Jango, no centro (Foto: Acervo Palácio Piratini)

 

O principal desdobramento da legalidade, então, é a posse do Jango, que não acontece da forma como seria esperada por Brizola e por aqueles que apoiaram a campanha, já que é uma posse sob o regime parlamentarista, na intenção de diminuir os poderes de João Goulart. Jango aceita o parlamentarismo, como indício de que talvez estivesse mais disposto a negociar do que o próprio Brizola, e se inicia um governo com base na desconfiança, na oposição, tendo que provar que não é o que se imagina que seja. O governo de Jango, para se sustentar e sobreviver dentro do regime que foi imposto, precisava conciliar forças. Por outro lado, aquelas forças que garantiram a posse do Jango sentiram que tinham a possibilidade de interferir na política nacional. Isso trouxe uma sensação de vitória e essa vitória criava a expectativa de novas conquistas.

Outro grande desdobramento do movimento da legalidade é o distanciamento da posição que Jango e Brizola assumem. Logo depois, em novembro de 1962, Brizola será eleito deputado federal pela Guanabara, o estado politicamente mais importante do Brasil naquele momento. E ele se coloca no centro das discussões políticas nacionais. Com isso, os norte-americanos se questionavam, com preocupação, até que ponto a política radical de Brizola estaria conduzindo o governo de Jango. Às vezes eles diziam que Jango era um cara muito fraco, pressionado por Brizola e utilizado pelos comunistas. E, de alguma maneira, ele poderia dar um “golpe branco”, visando mudar a Constituição e garantir sua reeleição e sua permanência no poder. Era algo paradoxal. Em alguns momentos, ele era visto como sendo muito esperto, porque iria conseguir utilizar o apoio de Brizola e dos comunistas para permanecer no poder; e, em outros momentos, ele aparecia como muito fraco, como alguém que estava no poder, fazendo, sem se dar conta, aqueles planos do Brizola e dos comunistas.

 

 

 

 

IHU On-Line – Como compreender que os brigadianos engajados na Campanha da Legalidade viam em Brizola a figura de um líder? Que características de Brizola o constituíam como um líder para esses militares?

Carla Simone Rodeghero – Como a Campanha da Legalidade teve uma dimensão de preparação armada, isso fez com que os brigadianos ficassem muito próximos do Brizola. Eles eram indispensáveis à conquista do que Brizola estava pensando. Talvez a impetuosidade e o carisma de Brizola de propor muitas vezes aquilo que estava longe do alcance tivessem conquistado esses brigadianos. O fato de que Brizola assume como deputado, e não mais num cargo do poder Executivo, é algo que cria mais facilidades para que se expressem e proponham certas coisas. Naquela época não havia nenhuma liderança com a disposição e com a visibilidade que tinha o Brizola, que pudesse ser escolhido como um líder.

 

IHU On-Line – Considera a legalidade como uma campanha nacionalista?

Carla Simone Rodeghero – Sim, por ser uma campanha que defende a posse de um presidente herdeiro de um projeto nacionalista que foi iniciado por Getúlio Vargas.

 

IHU On-Line – Em que medida a Campanha da Legalidade contribui para a constituição e consolidação da democracia no Brasil?

Carla Simone Rodeghero – Muita gente fala mal da democracia que tivemos entre 1945 e 1964, que teria sido marcada pelo populismo, pela demagogia, e essa foi uma interpretação muito forte quando aconteceu o golpe e não houve resistência nenhuma. Esses 19 anos talvez tenham sido a primeira experiência de democracia com livre funcionamento dos partidos, da imprensa, do Congresso Nacional, das assembleias legislativas. Construiu-se um mito em torno da Campanha da Legalidade, principalmente a partir de 1979, quando Brizola volta. Temo que as comemorações oficiais do cinquentenário da legalidade simplesmente retomem esse mito, acriticamente.

 

IHU On-Line – Podemos afirmar que o movimento da legalidade ajudou a formar uma consciência política no Brasil? O que resta disso ainda hoje?

Carla Simone Rodeghero – A legalidade ajudou a criar uma consciência política no período de 1961 a 1964 e ficou para muitas pessoas que participaram e assistiram como um marco na percepção sobre o mundo. É um exemplo de participação, de sucesso de iniciativa política, que marcou muito aqueles que atuaram entre 1961 e 1964. Deste ano em adiante, teremos quase que uma proibição de tocar no assunto e de se referir de forma positiva a essas lideranças e a esse evento que foi a Campanha da Legalidade. Para o Rio Grande do Sul, este movimento aparece como um período importante para a constituição de uma consciência política, e até para essa ideia de que o Rio Grande do Sul é um estado bastante politizado, para essa imagem que os gaúchos criaram de si.

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

 

No dia 02 de setembro (quinta-feira), às 17h30, o Prof. Dr. Jorge Ferreira, da UFF, ministra a palestra O contexto da Legalidade e seus legados para a democracia brasileira. A atividade integra o IHU ideias.

 

O contexto da Legalidade e seus legados para a democracia brasileira

 

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