24 Agosto 2021
A família não queria que ele saísse do Rio, mas o presidente insistiu em cumprir um compromisso oficial em Minas, onde acabaria recebendo as maiores homenagens populares antes da morte.
O relato foi publicado por www.politicaparapoliticos.com.br, 18-08-2004 e reproduzido na revista IHU On-Line, 23-08-2004.
Reproduzimos o relato juntamente com a referência da revista IHU On-Line, publicada em 2004 por ocasião dos 50 anos da morte de Getúlio Vargas.
A íntegra da revista pode ser lida aqui.
“Poucos acreditavam que o presidente Getúlio Vargas, vivendo o agravamento da crise política que se instalara no Rio, depois da morte do major da FAB, Rubens Vaz, e da ofensiva udenista com Carlos Lacerda à frente, deixasse a capital federal por mais de 24 horas. A última viagem de Getúlio Vargas em agosto de 1954, já prevista em agenda, porém, foi mantida e acabaria proporcionando-lhe momentos de reencontro com lideranças sindicais, estudantis e políticas, longe da tensão do Palácio do Catete. Na inauguração das Usinas Siderúrgicas Manesmann, a razão oficial de sua viagem, Vargas aproveitou e também fez um pronunciamento. Antes de confirmar a viagem, no entanto, o presidente teve que enfrentar resistências, conselhos e advertências, que vinham de diferentes setores. Afinal, o caldeirão político no Rio crescia e as articulações e conspirações eram a tônica”.
Quem conta o episódio é o próprio Juscelino em seu livro de memória: “Enquanto a crise se precipitava no Rio eu estava às voltas com outro problema em Belo Horizonte. O presidente havia prometido estar presente à inauguração da Mannesmann. Na véspera desse acontecimento, quando tudo já estava preparado para a solenidade, Amaral Peixoto, genro do presidente e então governador do Estado do Rio, telefonou-me revelando sua apreensão em relação àquela viagem. Temia, com razão, que na ausência do presidente pudesse ocorrer um levante no Rio, já que os ânimos estavam muito exaltados na área militar, notadamente no Ministério da Aeronáutica. Fiz ver a Amaral Peixoto que compreendia sua preocupação, mas que eu, do meu lado, não sabia como poderia evitar a viagem. O presidente fora convidado por mim e seria, portanto, meu hóspede. Qualquer atitude minha no sentido de fazê-lo desistir poderia ser mal interpretada, dando a impressão de que não desejava recebê-lo. Em seguida, Alzira Vargas veio ao telefone e renovou o pedido feito por Amaral Peixoto”.
Getúlio Vargas (Foto: Reprodução | PDT)
Diante dos apelos que se sucediam, Juscelino convocou os diretores da Manesmann para expor-lhes o ocorrido e ficou acertado que Tancredo Neves, então ministro da Justiça, diria a Getúlio que a inauguração fora adiada por um problema técnico. Vargas, porém, não aceitou a desculpa, irritou-se e perguntou a Tancredo se o governador mineiro não queria que ele fosse ao seu Estado, o que foi negado. O presidente foi, então, categórico, e disse a Tancredo: “Se as razões que levam o governador a propor o adiamento da inauguração não se prendem ao desejo de evitar minha presença, irei de qualquer maneira”.
Juscelino foi informado e não teve alternativa. Passou a preparar a recepção e o programa a ser desenvolvido, assim como as medidas de segurança que se impunham pelo quadro político existente. Vargas chegou e, em carro aberto na companhia de Juscelino, deslocou-se para a Manesmann, onde recebeu uma surpreendente manifestação de carinho dos operários e pessoas que para lá se haviam deslocado, algo de que ele se ressentia nos últimos meses. E, depois da cerimônia, em que fez um discurso sereno e enérgico, confessava sua satisfação pessoal com o evento. A viagem só lhe dera satisfações e o reanimara depois das nervosas semanas após a morte do major Rubem Vaz e o atentado da rua Tonelero. No trajeto para o Palácio da Liberdade foi intensamente saudado e viveu um de seus melhores momentos dos últimos dias. Durante o almoço, porém, diante de relatórios que recebia do Rio sobre o agravamento da situação política, o chefe da Casa Militar, general Caiado de Castro, procurou contato com Juscelino dizendo que o Presidente deveria regressar logo, não devendo pernoitar em Belo Horizonte. Era um novo problema para o governador. Juscelino, contudo, disse-lhe que o presidente era seu convidado e não poderia aconselhá-lo nesse sentido. Se ele, general Caiado, julgasse necessário então deveria alertar o presidente, o que aconteceu. Mas Vargas sentia-se bem em Minas, depois de tantos dias turbulentos, e respondeu energicamente: “Não sigo hoje para o Rio, general. Vou pernoitar em Belo Horizonte”.
A surpresa maior ainda estava reservada para o início da noite, quando apesar das observações de Juscelino às lideranças sindicais para limitar o número de representantes na audiência com Vargas, o número de sindicalistas, estudantes e mulheres superava a expectativa, tomando completamente o salão do Palácio. Um a um foram todos cumprimentados pelo Presidente, que fez questão de ouvi-los. Foi um tipo de audiência pública que se prolongou até quase 22 horas com o presidente ouvindo atentamente cada grupo. Logo seguiu-se o jantar oficial com número restrito de convidados. Vargas mostrava-se ainda mais feliz, conta Juscelino, não revelando qualquer sinal das dificuldades políticas que enfrentava. Por volta da meia-noite, a recepção chegou ao fim e o presidente recolheu-se aos seus aposentos, mas antes buscando um livro na biblioteca, pois não costumava dormir sem ler e optou por um de Eça de Queiroz. No dia seguinte, agradeceu efusivamente a Juscelino as atenções recebidas, dizendo que dormira muito bem.
Reprodução da carta de despedida de Getúlio Vargas
Do mordomo, Damásio, porém, o governador recolheria mais tarde outro tipo de informação. Por duas vezes ele fora alertado. A primeira em função de barulho estranho que parecia um deslocamento de móveis, mas era devido ao vento, e na outra, mais tarde, pouco antes de entrar no quarto do presidente, testemunhando uma cena inesperada: Vargas recostado na cabeceira da cama, com as mãos postas e os olhos fechados. E notou que parecia que seus lábios se moviam, como se estivesse rezando, mesmo se sabendo que não era um religioso. Conta, porém, Juscelino, que mais tarde, conversando com Miguel Teixeira, amigo íntimo de Vargas, soubera que ele havia se reconciliado com Deus e passou a admitir a versão do mordomo. Vargas teria feito uma prece na noite em que passou em Belo Horizonte! Ao deixar Minas, Getúlio estava menos tenso, mais alegre, e cordial como sempre, e agradeceu ao governador dizendo que jamais esqueceria as horas felizes que lhe foram proporcionadas. Getúlio Vargas voltava ao Rio para enfrentar a fase mais crítica da crise que culminaria com a reunião ministerial da noite de 23 e madrugada de 24 de agosto. E, logo depois dela, o suicídio.
Leia a íntegra da edição 112 da IHU On-Line sobre Getúlio Vargas:
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A última viagem de Getúlio antes de sua morte - 24-08-1954 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU