Santa Dulce dos Pobres e a Vida Consagrada

Foto: Arquivo Pessoal

20 Agosto 2021

 

"A conclusão a que chegamos não pode ser outra: como Ir. Dulce, encontrar a orientação basilar de nossa consagração na missão, na caridade sem limites, no serviço desinteressado aos últimos. “Nesses anos todos, tenho lutado e sofrido muito, mas sempre feliz, pois sei que estou servindo a Deus na pessoa do pobre”. Aí se escondia a “perfeita alegria”, de que falava Francisco de Assis!", escreve Vinícius Augusto Teixeira, CM.

 

Eis o artigo.

 

Dia memorável aquele 13 de março de 1992. Rapidamente, espalhou-se por todo o Brasil a notícia do falecimento de Irmã Dulce Lopes Pontes. Na Bahia – seu berço e sua terra de missão – a repercussão foi incomparável por sua amplidão e incidência. Um inenarrável sentimento de orfandade invadiu o coração do povo baiano. Afinal quem não se sentia cativado por aquela mulher franzina, de voz tênue, respiração ofegante e mãos nodosas, que se revelava interiormente robusta e misteriosamente infatigável quando se tratava de amar e servir, especialmente aos últimos e desprezados deste mundo? A comoção envolvia e irmanava a todos, desprovidos e abastados, anônimos e afamados, piedosos e céticos. Estava claro: ninguém resiste à força de atração de uma vida que transborda em generosidade. Naquele final de tarde, pois, a memória da gratidão e a dor do adeus fundiam-se na alma de toda uma multidão de conterrâneos e admiradores do “anjo bom da Bahia”, cuja autoridade se alicerçava unicamente na caridade e cujo prestígio nada mais era do que o desdobramento de uma existência esquecida de si e totalmente doada aos outros.

 

Na manhã seguinte, era impossível contabilizar quantos se aglomeravam no interior da capela e nos arredores do Hospital Santo Antônio, dispostos a acompanhar o féretro de Ir. Dulce ao longo dos quase 6 km que separam o Hospital da Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Sob um sol causticante, multiplicavam-se preces fervorosas, rostos banhados de lágrimas, suspiros de saudade já sentida, aplausos efusivos, sentimentos que afloravam do mais íntimo daqueles que um dia foram acolhidos no coração, no abraço ou nas obras da “doce Irmã”. Era como se o canto fúnebre da despedida tivesse a mesma cadência do aleluia pascal. Na medida em que o cortejo avançava, as casas comerciais iam fechando suas portas, expressando assim a gravidade de um acontecimento ímpar. Para não dizer do cancelamento dos jogos de futebol marcados para o fim de semana... Ainda mais numerosa será a multidão plangente que, nos dois dias subsequentes, se enfileirará pelas ruas do Comércio para contemplar pela última vez, ainda que só por alguns segundos, o semblante plácido da “mãe dos pobres”. Com efeito, havia chegado o dia de devolver aquele tesouro preciosíssimo a quem no-lo deu, ao Autor e Doador da vida e do amor.

 

Procuraremos esboçar aqui seu perfil biográfico e recolher algumas inspirações de seu itinerário para a Vida Consagrada (VC).

 

I – Sua vida: ser de Deus para os outros

 

1. No calor da família

 

Nascida em Salvador (Bahia), a 26 de maio de 1914, recebe o nome de Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes. De família sólida, torna-se órfã de mãe ainda em tenra idade. Seu pai, Augusto Lopes Pontes, odontólogo de renome, mostrava-se, acima de tudo, um cristão autêntico, de notável sensibilidade humana. Prova disso era o cuidado que dispensava aos mais pobres, aos quais atendia gratuitamente. Viúvo de Dulce, mãe de seus cinco filhos, contraíra segundas núpcias com Alice, que se fará madrasta solícita e discreta. Maria Rita cresceu em um ambiente familiar propício ao seu desenvolvimento, sentindo-se amada pelos seus. Era uma criança normal, cheia de sonhos e ideais. Apreciava música e futebol. E divertia-se na companhia dos irmãos.

 

Aos 13 anos, é levada por uma tia para conhecer de perto a realidade de abandono e sofrimento em que se achavam muitos doentes pobres, na periferia de Salvador. Os apelos da caridade ecoam vigorosamente no interior daquela adolescente entusiasta. Foi também graças a essa tia que Maria Rita passou a frequentar o vetusto Convento de Santa Clara do Desterro, das Irmãs Franciscanas do Sagrado Coração de Jesus. Ali, começou a palpitar-lhe o desejo de consagrar-se inteiramente a Deus, na escola de São Francisco de Assis, admirado por sua opção pela pobreza evangélica e por sua dedicação aos pobres. Maria Rita tinha aproximadamente 15 anos quando solicitou sua admissão ao Convento. Era, portanto, muito jovem. O pai interveio e ela teve que esperar. Embora se sentisse atraída pela enfermagem, Dr. Augusto a matriculou no então chamado Curso Normal, que preparava professoras primárias. Orientada por Frades Franciscanos, aos 16 anos, ingressa na Ordem Terceira de São Francisco. Aí, amadurece sua decisão de entrar na Vida Religiosa, terreno fértil, no qual haveria de desabrochar toda exuberância de sua juventude.

 

2. Primeiros passos na Vida Religiosa

 

O pai consente e, a 8 de fevereiro de 1933, Maria Rita deixa seu lar e parte para São Cristóvão (Sergipe), a fim de fazer-se postulante das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, uma congregação de inspiração franciscana, fundada em 1910, por Dom Amando Bahlmann, OFM (1862-1938), em Santarém (Pará). Escolhera esta jovem Congregação, cativada pela figura de uma Irmã a quem conhecera no Convento do Desterro e com quem se entretinha em esclarecedores diálogos. No Postulado, juntamente com outras seis moças, sua vida era austera, feita de oração e trabalho. Ali, contudo, não lhe faltava a alegria da fraternidade e da partilha, tão característica do carisma franciscano. As comodidades do lar paterno não lhe tinham facilitado o aprendizado de trabalhos manuais. Pouco a pouco, com boa disposição, ia adaptando-se às lides domésticas. Dirá, anos mais tarde: “Quando chegamos ao convento, nascemos outra vez para viver somente para Jesus”. Vem o Noviciado, tempo de conhecimento mais profundo e vivencial do carisma da Congregação. Sentia falta da família e do ambiente que esta lhe proporcionava. Convicta, porém, não dava asas à melancolia. Seu perfil se definia pela transparência e boa vontade na convivência e nos afazeres. Olhando os arredores, ansiava sair do convento para dar catequese e visitar os doentes. Entretanto, a disciplina da época não lhe permitia fazê-lo. No dia de sua primeira Profissão, Maria Rita recebe o nome de Ir. Dulce, em homenagem à sua mãe. No mesmo dia, toma conhecimento de sua destinação: Sanatório Espanhol, em Salvador.

 

Setembro de 1934. Ir. Dulce pisa novamente o solo de sua terra soteropolitana. Ao chegar, depois de um ano e meio no distante convento, sobressaltou-se com a indigência de tantas pessoas pelas ruas da cidade. De fato, a população estava em franco e desordenado crescimento, devido sobretudo ao êxodo rural provocado pela seca implacável que assolava o Nordeste e à crise econômica que o país atravessava. Eram perceptíveis a insuficiência e a precariedade dos serviços públicos de saúde, educação, saneamento básico, segurança, transporte, etc. Expandiam-se, como consequência, a criminalidade e a violência urbanas. Lapidada pelo Evangelho e pelo espírito franciscano, a jovem Ir. Dulce captara sem dificuldade o flagelo da pobreza. Contará, anos depois: “As lágrimas enchiam meus olhos. Meu coração estava invadido pela dor de ver tanta miséria ao meu redor”. Chegando a Salvador, escolhe como confessor e diretor espiritual Fr. Hildebrando Kruthaup, OFM, que a acompanhará por longos anos.

 

No recém-inaugurado Hospital Espanhol, ocupou-se inicialmente de tarefas simples, como as de sacristã, porteira e encarregada da limpeza. Ao mesmo tempo, recebia noções práticas de farmacologia. Assim, pensava, poderia preparar medicamentos para aliviar as dores das pessoas. Depois de apenas seis meses, foi enviada ao Colégio Santa Bernadete, na mesma capital baiana, a fim de aplicar-se ao magistério. Aí chegou em fevereiro de 1935. Embora indeclinável na obediência, não demonstrava pendor para a sala de aula, excedendo-se muitas vezes na condescendência para com os alunos. Transbordava de contentamento quando podia sair pelas ruas, visitando enfermos e famílias empobrecidas, bem como dando catequese a crianças carentes, estas, em sua maioria, filhas de operários. Desde então, era irrefreável sua disposição de confortar, com a luminosidade de seus olhos juvenis, aos que pareciam haver perdido a esperança de dias melhores.

 

3. Os clamores da realidade

 

Pouco a pouco, a península de Itapagipe, situada na Cidade Baixa de Salvador, onde se concentravam muitas fábricas, tornou-se o campo da atuação caritativa e missionária de Ir. Dulce. Com efeito, não lhe parecia coerente restringir-se aos muros do convento e do colégio, havendo ali tão perto pessoas necessitadas de tudo e esquecidas à própria sorte. Um apelo mais contundente ressoava no íntimo da jovem religiosa. Começou a alfabetizar crianças e adultos, com a ajuda de uma leiga. Ia inclusive às fábricas, despertar nos operários o interesse pelas letras e transmitir-lhes a fé. Os patrões autorizaram que seus funcionários participassem da catequese apenas em horário de almoço. Pouco depois, Ir. Dulce e sua colaboradora passaram às visitas domiciliares, às vezes acompanhadas de outras Irmãs. As sementes lançadas começaram a produzir seus frutos: nos lares e nas fábricas, as relações se enriqueciam e as necessidades mais prementes eram atendidas. Certa vez, o Arcebispo questionou Ir. Dulce quanto a esse apostolado inovador, ressaltando os riscos a que se expunha. Esclarecidas as dúvidas e feitas as advertências, foi-lhe dado continuar sua obra de evangelização e promoção humana.

 

Começou a contar com a ajuda voluntária de um médico, ao qual encaminhava os doentes que descobria nas casas, particularmente em suas andanças pela região dos Alagados. Seu pai também prestava serviços odontológicos. Com o apoio de benfeitores, montou um pequeno ambulatório que servia também de consultório. Naquele contexto de precariedade, assolado por desemprego, miséria e desnutrição, grassavam facilmente doenças tidas como incuráveis. A tuberculose era uma delas. No colégio, Ir. Dulce arregimentava jovens alunas para contribuir com doações e acompanhá-la em algumas visitas, irradiando assim a força contagiante da caridade. Em suas audazes iniciativas, parecia realmente consciente de que o mais longo caminho começa com um passo. Estava segura também de que, embora sozinha pudesse andar mais depressa, com os outros, iria bem mais longe. Tal convicção se fará uma prática habitual em sua trajetória. E o Senhor, a quem se entregara de coração indiviso, multiplicaria seu pouco muito além do que podia imaginar.

 

4. O Círculo Operário

 

Desde o começo, Ir. Dulce soube conjugar assistência e promoção da pessoa humana. Como os operários não estavam suficientemente organizados e não usufruíam de benefícios, descobriu uma maneira de melhorar suas condições de vida e trabalho. Para isso, contou com a ajuda de seu confessor, Fr. Hildebrando, homem de grande sensibilidade social, e de outros colaboradores. Importava-lhe despertar a consciência dos direitos e deveres dos trabalhadores, sem deixar de socorrê-los em suas necessidades elementares. Enfrentou oposições daqueles que diziam não ser este um campo de ação apropriado a uma religiosa. De outra parte, recebeu acerbas críticas dos que almejavam um movimento mais sindicalizado e aguerrido. É quase sempre assim: de um lado, os que criticam. De outro, os que trabalham. Mas, como Jesus de Nazaré, seu Mestre e Senhor (cf. Lc 4,30), Dulce prosseguia seu caminho, firme em seu propósito de amar e servir, atenta às circunstâncias e aberta a novas possibilidades.

 

Apesar das resistências, viu nascer o primeiro movimento operário cristão de Salvador. Com o passar do tempo, conseguiu estabelecer uma sede favorável às atividades do grupo que se consolidará como Círculo Operário da Bahia. Ali, seriam oferecidos diferentes serviços de proteção e promoção social: ajudas emergenciais, assistência médica e odontológica, eventos de cultura e lazer, acompanhamento jurídico, escola para os filhos dos trabalhadores, cursos profissionalizantes, etc. Além disso, Ir. Dulce visitava e socorria regularmente os associados doentes e as famílias enlutadas. Em todo seu labor, mantinha-se desvinculada de agremiações partidárias, sem jamais ceder a qualquer horizontalismo ideológico. Confiando na Divina Providência, não receava pedir quando se tratava de ajudar os mais pobres. Contava com o apoio de pessoas modestas e nobres, do simples operário ao presidente da república, passando por pequenos comerciantes e grandes empresários. Os associados também contribuíam com uma quota mensal adaptada às suas possibilidades. Assim, foram obtidos os recursos para a construção da nova sede do Círculo Operário, no Largo de Roma (hoje, Santuário da Imaculada Conceição, onde são veneradas as relíquias de Santa Dulce). O Círculo chegará a ser a associação operária mais numerosa do estado, reunindo mais de 13 mil membros e obtendo o reconhecimento do governo federal. A semente germinou. E a paciência dos esforços foi compensada pela abundância dos frutos.

 

5. Ao encontro dos mais pobres

 

Para cuidar sempre mais e melhor dos pobres doentes, Ir. Dulce obteve o diploma de Farmacologia. Na sede do Círculo Operário, tinha sob sua responsabilidade o ambulatório, a farmácia, a escola e as oficinas. Vivia feliz, integrando harmoniosamente consagração a Deus e serviço aos irmãos. Um dia, encerrado o expediente no ambulatório, deparou-se com um menino de aproximadamente 12 anos. De frágil compleição e rosto macilento, ardia em febre e demonstrava sintomas de malária. Dirigindo-se à jovem religiosa, suplicou-lhe: “Irmã, não me deixe morrer na rua”. Tocada no mais íntimo, Ir. Dulce se pôs a refletir. Sem hesitar, fez com que o rapaz entrasse e aplicou-lhe a primeira medicação. Em seguida, levou-o a um lugar chamado “Ilha dos Ratos”. Sabia que ali havia algumas pequenas casas inabitadas. Sem temer o perigo, invadiu uma das casas e acomodou o menino. Pediu a uma amiga que fosse olhá-lo enquanto iria buscar suprimentos no convento. Voltou depressa, trazendo consigo alimentos e remédios. Inclinando seu coração compassivo, cuidou daquele jovem famélico e moribundo, com desvelos tão ternos e eficazes que fazem recordar o samaritano da parábola (cf. Lc 10,25-37).

 

A notícia do arrombamento da casa começou a se espalhar. No dia seguinte, Ir. Dulce tomou conhecimento da situação de uma idosa que agonizava em um barraco insalubre, não muito longe dali. Sem pestanejar, invadiu a segunda casa. Dias depois, veio-lhe um pobre tuberculoso. Não deu outra: terceira casa invadida. Apareceu, então, o proprietário das casas, que denunciou Ir. Dulce à Secretaria de Saúde. A autoridade competente chamou-a e pediu-lhe explicações. A ordem foi dada: as casas deveriam ser desocupadas. Sem maiores detalhes, Ir. Dulce pediu aos doentes que rezassem. Quando voltou à noite, trazendo-lhes os medicamentos e a refeição, notou que já tinham sido alimentados. Quem lhes tinha trazido aquela provisão? O diretor do Centro de Saúde das redondezas, o mesmo que determinara a desocupação das casas. Ele fora ali, acompanhado de funcionários, e se comovera tão profundamente com tudo o que vira que decidiu fazer-se benfeitor daquela incipiente e desajeitada obra de misericórdia. Passados alguns dias, veio o proprietário, furioso, ameaçando mandar Ir. Dulce para a cadeia por invasão de domicílio. Quando se deparou com a situação, também ele se compadeceu. E prometeu esperar até que os doentes se restabelecessem ou viessem a falecer. Como círculos que se formam na superfície de um lago, a caridade invencível daquela frágil Irmã se difundia em proporções sempre mais amplas, alcançando a todos os que dela se aproximavam.

 

Sabendo, porém, que a generosidade não pode sufocar a justiça, Ir. Dulce se pôs a buscar outras soluções. Ajudada por alunas e por filhos dos operários, fez com que os arcos da ladeira do Bonfim se tornassem habitáveis e alojou ali os doentes, trazendo-os da Ilha dos Ratos. O prefeito interveio e, sem mais, pôs fim ao que Ir. Dulce fizera. Disse-lhe não querer tornar a cidade repugnante aos turistas. Como não era possível continuar abrigando os pobres nos arcos da Colina Sagrada, ainda era preciso encontrar um lugar que lhes fosse propício. Levou-os, então, para o Mercado do Peixe, cujas dependências se encontravam ociosas. Para alimentar sua gente, Ir. Dulce solicitava donativos às estudantes do colégio e a outros conhecidos. Com o passar do tempo, o prefeito ordenou a desocupação do Mercado, ameaçando efetuá-la à força, caso Ir. Dulce não se mobilizasse. Com a anuência de suas Irmãs, levou os doentes para o espaço contíguo ao Convento Santo Antônio, onde fora instalado um galinheiro. E, mais uma vez, com a ajuda de alunos, amigos e benfeitores, providenciou o necessário para receber ali os doentes, muitos dos quais em fase terminal de câncer, tuberculose, meningite, gangrena, etc. Foram organizados dois pavilhões, um masculino e outro feminino, ambos primorosos pelo asseio e pela ordem. Naquele antigo galinheiro, estavam lançadas as bases do que viria a ser o monumental Hospital Santo Antônio, fundado em 1970.

 

Na homilia do jubileu de ouro de Ir. Dulce (15|8|1984), Fr. Hildebrando discorrerá sobre as origens da obra: “Eram tantos e tantos os pobres que necessitavam de ti! Tantos os esfomeados que estendiam a mão em tua direção. Eram os meninos de rua, abandonados, para os quais procuraste organizar um alojamento apropriado. Eram jovens excepcionais, que confiavam em tua pessoa e que exigiam cuidados especiais de ti. Eram os velhos desagasalhados, cobertos de farrapos, que necessitavam de uma internação. Eram os tuberculosos que necessitavam de um abrigo e de um tratamento especial. Enfim, eram tantos e tantos doentes em condições precárias que necessitavam de socorro urgente e vinham cada vez mais necessitados de ajuda, pedindo, suplicando, que, certa vez, chegaste a lançar um grito: ‘Ah! Não posso mais. Não temos mais leitos, não há mais espaço! Preciso de outro hospital. De um outro hospital... mais espaçoso!”.

 

Ir. Dulce se dedicava cada vez mais aos pobres. Ao notar que o Círculo Operário ia bem, decidiu voltar-se para os mais sofridos: doentes crônicos, menores de rua, idosos abandonados. Duas vezes por semana, saía com outras Irmãs recolhendo enfermos (muitas vezes cobertos de sujeira, feridas e insetos) nas ruas da capital baiana. Havia intuído que, para aproximar-se e cuidar dos que mais precisavam, era necessário sair à noite, renunciando a seu descanso ou às exigências de uma vida mais regular. Ela mesma contou em uma entrevista, concedida ao Jornal O Globo (21|9|1961): “Fazemos esta ronda duas vezes por semana. Saímos eu, outras duas Irmãs e um guarda às 20h30 e retornamos às 23h30, fazendo quatro, cinco ou seis viagens, segundo o número de pobres que encontramos. Levamos todos para nosso albergue, onde quatro Irmãs trabalham comigo. Ali, damos-lhes sopa quente, um lugar para dormir e, às 5 da manhã, eles saem para tentar encontrar trabalho. Aos rapazes, damos frutas ou caixas de engraxate, a fim de que possam vender seus produtos e trabalhar um pouco”.

 

A visão cristã de Ir. Dulce sustentava e aperfeiçoava sua inexaurível paciência para com os pobres e os doentes. Alguns episódios ultrapassavam os limites da mera tolerância. Contam que, certa vez, Dulce servia sopa a um doente que havia recolhido na esquina de uma rua. Depois da primeira colherada, ele cuspiu a sopa em seu rosto. Sem perder a serenidade, deu-lhe outra colherada, dizendo: “A primeira era minha, mas a segunda é sua. Coma, que vai fazer bem para você”. De qualquer maneira, a caridade de Ir. Dulce não se estribava em atos heroicos ocasionais. Brotava, na realidade, de uma consistente experiência de fé, enraizava-se em convicções profundas e traduzia-se em uma entrega diuturna e sem regateios. De fato, Ir. Dulce sabia ver tudo a partir do pobre, mas, acima de tudo, sabia ver o pobre a partir de Cristo, como Cristo o via. E era o encontro com Cristo no pobre que a levava a compreender e perdoar a quem já não conseguia sequer compreender e perdoar a si mesmo.

 

6. As Obras Sociais Irmã Dulce

 

Vimos como as demandas se avolumavam e as estruturas se tornavam insuficientes. Ao mesmo tempo, novos voluntários se vinculavam à obra de Ir. Dulce: médicos, enfermeiros, educadores, pessoas de boa vontade... A finalidade era clara e inegociável: que ali ninguém deixasse de ser acolhido, atendido e ajudado de alguma maneira. Em suas palavras, “que o Santo Antônio seja sempre para o indigente, o necessitado. Que nossa porta esteja sempre aberta para os doentes, para os pobres, para as crianças”. Ir. Dulce havia transformado o então albergue em um hospital para doentes crônicos, portadores de múltiplas deficiências, indigentes sofredores, rejeitados por outras casas de saúde. As dívidas iam muito além das possibilidades imediatas. Era necessário, uma vez mais, pôr mãos à obra, com absoluta confiança na Providência de Deus, vivo desejo de cooperar com ela e apoio de benfeitores generosos. O amor gratuito e desinteressado pelos últimos tornava irresistível qualquer solicitação de Ir. Dulce, augurando-lhe ampla credibilidade social. Os colaboradores eram cativados por sua transparência e bondade. Em aproximadamente 9 meses, conseguiu liquidar a dívida do Hospital, com aquela tenacidade que contrastava com sua debilidade física. E muitos melhoramentos e ampliações ainda se efetuariam. Incontáveis pobres doentes haveriam de ser recebidos, curados e restabelecidos no Hospital Santo Antônio. E tudo gratuitamente, como ditara o espírito evangélico de sua idealizadora.

 

A preocupação central de Ir. Dulce era que o Hospital não perdesse seu rumo: “Que Deus nunca permita que o Hospital Santo Antônio se transforme em fonte de renda sob qualquer pretexto, conservando sempre sua finalidade de atender aos pobres, aos doentes e aos necessitados, gratuitamente e com toda a dedicação” (Declaração de Vontade, de 22|9|1974). E a justificativa brotava de sua fé ardente: “Nosso Hospital Santo Antônio é o único no estado que não recusa os doentes a qualquer hora do dia ou da noite. É um milagre da Divina Providência!”. Só com o passar do tempo, Dulce aceitou fazer convênios que garantissem maior estabilidade e solidez à obra, sem, contudo, jamais desvirtuar sua exclusiva destinação aos desprovidos de recursos. Uma fundação também foi constituída para dar prosseguimento ao trabalho. Este, segundo sua iniciadora, deveria continuar “com o mesmo espírito de amor aos mais necessitados”, como dirá aos cooperadores e funcionários, acrescentando que, “neste serviço de Deus e dos pobres, chega-se a um ponto em que não se vive mais a própria vida e, sim, a vida deles. Esquecemo-nos de nós mesmos para viver só para Deus e para eles. É preciso, é imprescindível, que se tenha esse espírito de doação total”. De tudo o que Ir. Dulce comunicava, seu exemplo era o ensinamento mais eloquente. Estava sempre diretamente implicada no cuidado dos doentes. Jamais aceitou fechar-se em um gabinete e resumir-se a funções administrativas. Parecia atualizar em seu modo de proceder o que recomendara, muitos séculos antes, um santo franciscano: “Quando vais ao hospital e não podes curar o sofrimento do doente, concede-lhe ao menos a esmola de teu coração e a oferta de tua presença” (São Bernardino de Sena).

 

Os dados anuais das chamadas Obras Sociais Irmã Dulce são, no mínimo, impressionantes e falam por si só: 3,5 milhões de procedimentos ambulatoriais, 954 leitos para o atendimento de patologias clínicas e cirúrgicas, 18 mil internamentos e 12 mil cirurgias, 1,8 milhão de refeições, 11,5 mil atendimentos mensais para tratamento de câncer, mais de 4,3 mil profissionais.

 

7. A luta pelos menores abandonados

 

Em frente ao galinheiro convertido em albergue e, depois, em hospital, Ir. Dulce foi, pouco a pouco, construindo um espaço para abrigar menores em situação de rua. Estes, com efeito, eram muito numerosos. E, sabemos, não havia miséria ou sofrimento que não ressoasse naquele coração dilatado pelo amor de Cristo. Anos depois, Dulce recebeu a doação de um velho núcleo agrícola no munícipio de Simões Filho, a 20 Km de Salvador. Com muito empenho, as instalações foram adaptadas e os menores transferidos para lá. Ali, seria possível efetuar um trabalho sistemático de formação integral e capacitação profissional dos jovens, de modo a inseri-los na sociedade como cidadãos de bem e cristãos convictos.

 

Deixemos que a própria Ir. Dulce narre um pouco desta sua aventura: “Para integrá-los à sociedade, procuramos transmitir-lhes valores. Eles aprendem um ofício, fazemos os documentos de que necessitam e eles saem da escola com um trabalho e um lugar decente para viver. Hoje, muitos deles são ótimos profissionais”. Em outra ocasião, dirá ainda: “Ao acompanhar de perto o processo de recuperação desses rapazes, vê-se que nada está perdido, que existe sempre um caminho para a salvação, desde que se lhes ofereça a devida oportunidade. É uma experiência única. E a melhor recompensa, recebo quando, transbordantes de alegria, ganham novas forças para superar as dificuldades futuras e esquecer as vicissitudes passadas”. São muitos os que se orgulham de pertencer ao número dos filhos de Ir. Dulce. Ainda hoje, quase 800 crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social são atendidos no Centro Educacional Santo Antônio. Ali, pode-se escutar o palpitar do coração daquela mãe zelosa, cujo cansaço era o descanso dos filhos.

 

8. Relação com a Congregação

 

Ao longo dos anos, as superioras da Congregação observavam o trabalho de Ir. Dulce e o desenrolar das obras geridas por ela. Notaram sem dificuldade a complexidade sempre maior dos serviços prestados, sobretudo no que se refere à administração dos recursos. Algumas superioras a questionaram sobre a observância das Constituições, particularmente em relação à clausura e à regularidade dos horários e exercícios. Ir. Dulce e as Irmãs de sua comunidade asseguravam o essencial da oração e da fraternidade, mas não podiam abrir mão da assistência aos pobres em vista de muitas formalidades, algumas até desejáveis e confortáveis. Pediu, pois, conselho a pessoas sábias e prudentes, inclusive ao Arcebispo. Todos lhe diziam o mesmo: mantenha-se firme aí onde está, dócil à vontade de Deus e solícita para com os pobres. De alguma forma, Ir. Dulce podia sentir-se implicada naquele mandato que São Paulo recebeu dos apóstolos: “Só nos devíamos lembrar dos pobres, o que, aliás, tenho procurado fazer com solicitude” (Gl 2,10).

 

Diante da intransigência de uma Provincial, foi obrigada a pedir exclaustração. Quanto pesar lhe custou tal medida! A comunidade do Convento Santo Antônio foi dissolvida, as Irmãs foram destinadas a outras casas e Dulce ficou sozinha. Em meio à sua desolação, sustentava-a a retidão de sua intenção: “Quero morrer como religiosa, membro de nossa Congregação”. Eco do que dissera em outra ocasião: “Nada deverá dificultar nosso caminho em direção ao Céu. Tristeza, desconforto, dúvidas, problemas de qualquer espécie, nada disso deve contribuir para o enfraquecimento de nossa vocação”. O então administrador apostólico, Dom Eugênio de Araújo Sales, encarregou-se de acompanhar o discernimento de Ir. Dulce. Ela, de fato, amava visceralmente a Congregação que a tinha formado. Assim se exprimirá, mais tarde: “Quando a Madre retirou as Irmãs, vários sacerdotes e outras pessoas recomendaram que eu me filiasse a outra congregação ou fundasse uma. Não aceitei, renovando sempre, no íntimo de meu coração, minha primeira escolha” (Carta à Provincial, de 16|5|1975). Jamais, porém, deu vazão a ressentimentos, como testemunhou uma de suas Irmãs mais próximas: “Quando a Madre retirou as Irmãs do Hospital, Ir. Dulce sofreu muito, mas não alimentou nenhum rancor em relação a ela. E todos os dias rezava pela Madre. Quando a mesma passava pela obra, Dulce a tratava com toda atenção e afeto, como se nada tivesse acontecido”. Vestida com o hábito da Congregação, continuou a observar integralmente sua vida religiosa, residindo no Convento Santo Antônio, junto aos pobres. A 8 de maio de 1969, escreve à Superiora Geral, deixando transparecer a fortaleza inexpugnável de seu espírito de fé, alento em meio à solidão e à fadiga: “Continuo, como sempre, com muito trabalho. Recebo a Santa Comunhão todos os dias e faço minhas orações (...). Estou sozinha; não só, porque estou com Deus. Às vezes, sinto saudades dos bons tempos do noviciado, dos primeiros anos. Agora, só tenho Deus e o trabalho, que é muito difícil e duro. Mas tudo aquilo que se faz por Deus na pessoa do pobre é pouco”.

 

A 5 de setembro de 1975, o Cardeal Arcebispo, Dom Avelar Brandão Vilela, interveio em favor de Ir. Dulce, escrevendo à Madre Geral: “Venho fazer-lhe um apelo com relação à readmissão de Ir. Dulce na Congregação. Acredito que tenha chegado o momento de dar-lhe esse conforto espiritual. Ela deseja, ardentemente, merecer essa graça. E, de fato, merece-a. O caso de Ir. Dulce deve ser enquadrado de maneira particular (...). Considero que a concessão solicitada seria uma obra de caridade e de justiça”. No dia 2 de janeiro de 1976, a Congregação reintegra Ir. Dulce ao seu quadro. Assim, era reconhecida a singularidade do carisma pessoal que ela havia recebido do Espírito, agora devidamente recolocado no panorama mais amplo do carisma da Congregação das Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, do qual Ir. Dulce jamais abrira mão. “Um chamado dentro do chamado”, para usar a expressão com que Madre Teresa de Calcutá costumava traduzir a especificidade de sua vocação de servidora incondicional dos pobres enxertada na comum vocação à VC.

 

Não resta dúvida de que Ir. Dulce sofreu com os revezes de seu vínculo com a Congregação. Contudo, jamais permitiu que o lamento prevalecesse sobre a confiança, a desolação superasse a entrega e a amargura esmagasse a alegria. Sabia encharcar de sonhos as areias do realismo e cultivar utopias que infundiam esperança. Assim, ensinava que apostar nos rebentos vale mais do que chorar as folhas que caem e comunicava a segurança de quem vê iluminar-se o horizonte com os primeiros raios do sol.

 

9. Fundadora

 

Em 1984, Ir. Dulce recebe algumas jovens desejosas de dedicar-se inteiramente ao serviço dos pobres. Depois de comunicar ao Arcebispo, reúne-as no educandário de Simões Filho. Sua intenção era fundar uma associação de mulheres consagradas que pudessem dar continuidade à sua obra, uma vez que nem o Arcebispo, nem a superiora de sua Congregação, nem Madre Teresa de Calcutá (com quem se encontrara em 1979, em Salvador) aceitaram assumir a empreitada. O pequeno grupo inicial, composto de 11 moças, era orientado por sacerdotes amigos de Ir. Dulce e apoiado economicamente por benfeitoras. Nascia, assim, a Associação das Filhas de Maria Servas dos Pobres.

 

10. No entardecer da vida

 

Em 1988, Ir. Dulce foi indicada pelas autoridades brasileiras para o Prêmio Nobel da Paz. Indicação aplaudida de pé pelo povo. Na ocasião, um parlamentar escreveu: “A fragilíssima santa baiana é merecedora desse reconhecimento pela grandiosidade de sua obra, por sua eloquente prática de amor ao próximo, por seu exemplo de abnegação e humildade”. O Nobel não lhe foi outorgado, mas, para os brasileiros, o legado de Ir. Dulce continua sendo um dos mais belos prêmios concedidos aos pobres e à nossa inteira nação.

 

Com o avançar dos anos, a saúde de Ir. Dulce ia se deteriorando sempre mais. O enfisema pulmonar acarretava-lhe contínuos sofrimentos e, cada vez mais frequentemente, era obrigada a submeter-se a um balão de oxigênio. Já em 1990, seu quarto foi transformado em uma UTI para que ela estivesse perto dos pobres e desfrutasse do afeto de seus familiares, Irmãs e colaboradores. No dia 20 de outubro de 1991, recebe, quase sem poder falar, mas plenamente lúcida, o Papa João Paulo II. Em julho de 1980, já o tinha recepcionado por ocasião de sua primeira passagem por Salvador, fortemente aclamada pela multidão. No dia 13 de março de 1992, às 16h45, aos 77 anos, visitada pela irmã morte, Ir. Dulce adormece na paz do Senhor.

 

II – Impulsos à Vida Consagrada

 

De acordo com o Magistério e a Teologia atual, três são os elementos que definem e estruturam a VC: experiência de Deus, comunidade fraterna e missão evangelizadora. Vejamos como esta tríade identitária se fez presente na trajetória de Ir. Dulce Lopes Pontes e deixemo-nos interpelar por sua maneira de responder às exigências dessa vocação específica que nos coloca em um mesmo caminho de santidade.

 

1. O primado de Deus em uma vida de doação e serviço

 

Em todos os tempos e lugares, a VC tem radical necessidade de sedimentar e aprofundar sua experiência de Deus como único absoluto, no seguimento de Jesus Cristo. Foi o que fizeram os discípulos da primeira hora, introduzidos na intimidade de Jesus com o Pai, eixo dinamizador de sua vida doada por amor (cf. Lc 11,1-13). Com limpidez ainda maior, adverte-se tal necessidade em tempos de crise de sentido e secularização. Sem o referencial fundante da experiência cristã de Deus, a VC languidesce, esvazia-se e fenece. Seu Deus é seu tudo, diríamos parafraseando o Poverello de Assis. Nas palavras contundentes e acertadas de um teólogo contemporâneo, “quando falta a experiência de Deus ou o sabor evangélico, a VC se converte em uma farsa, que envergonha os de dentro e escandaliza os de fora” (Felicísimo Martínez Díez, OP).

 

Ir. Dulce parecia ter essa convicção gravada com letras de ouro em sua existência inteiramente consagrada ao Senhor e generosamente doada aos irmãos. Por isso, não hesitava em explicitar: “Minha vida é toda dedicada a Deus e aos pobres”. Com efeito, o amor gratuito do Senhor era a fonte da qual hauria o sustento de sua fidelidade e o impulso de sua perseverança: “É tão bom amar a Deus e ser amada por ele!”, escreverá à sua irmã, nos albores de sua juventude. Por ocasião de seu jubileu de prata de Profissão Religiosa (15|8|1959), fez que se imprimisse na lembrança distribuída aos presentes: “Tenho apenas um desejo: que Deus seja glorificado. Um único padecimento: vê-lo ignorado e ultrajado. Um único temor: ofendê-lo e contrariá-lo por qualquer infidelidade”. Ressonância talvez do que aprendera na escola de São Francisco: “O Amor não é amado”. A paixão por Deus era o centro vital de tudo o que Ir. Dulce empreendia em favor dos pobres. Ela se dizia tão somente um pequeno instrumento, do qual a Providência se servia para realizar seus desígnios de bondade: “Somos um simples e humilde instrumento de Deus. Tudo o que fazemos é apenas uma gota d’água no oceano da vida”. Esta autopercepção dilatava sua liberdade e encorajava sua prontidão, preservando-a da soberba, da vaidade e do afã de protagonismo. Para Ir. Dulce, seguir a Cristo consistia em amá-lo como esposo, contemplá-lo na cruz, recebê-lo na Eucaristia e servi-lo nos menores dos irmãos. Dar-lhe tudo sem cálculos e dele tudo esperar, eis aí sua busca e sua recompensa, seu caminho e sua coroa: “Quando se ama a Jesus e se entrega a alma e o amor somente a ele, deixando tudo por ele, quanta ternura, amor, constância ele tem por nós!”.

 

E onde Ir. Dulce revitalizava constantemente sua intimidade com Deus e sua identificação com Cristo? Ela mesma no-lo responde: “Toda nossa força está na oração. Sem ela, não podemos fazer nada. É por intermédio da oração que obtemos de Deus as graças necessárias para executar bem nossa missão entre os pobres. Somos criaturas humanas, frágeis e sujeitas às tentações. Através da oração, Deus nos transmite todas as graças de que necessitamos para levar a cabo nosso trabalho de amor e dedicação sem reservas aos nossos irmãos sofredores, os pobres”. E, com a autoridade de seu exemplo, conclui: “A oração é o alimento de nossa alma, não podemos viver sem rezar”. Não obstante sua intensa e vasta ação caritativa, com todos os seus desdobramentos práticos e compromissos diários, não era raro encontrar Ir. Dulce de joelhos diante do sacrário, em silente recolhimento. Estava, pois, convencida daquela lapidar afirmação de Santa Teresa de Calcutá: “Sem Deus, somos muito pobres para ajudar os pobres”.

 

A experiência espiritual de Santa Dulce dos Pobres é mais uma demonstração da certeza que um autor sintetizou assim: “Em termos de VC, o que nos nutre em profundidade não são as atividades desempenhadas em nome do carisma, por mais importantes e intransferíveis que sejam. Tampouco nos nutrem os conceitos intelectuais elaborados a partir da razão iluminista e suas argumentações, e tampouco os conceitos teológicos sobre a história da salvação. O que nutre, de fato, e mantém de pé a vocação à VC e, em última instância, a vocação de todo cristão batizado, é o encontro pessoal com Jesus. Encontro regular, perseverante, tanto nos momentos de alegria quanto nos momentos de tristeza e fracasso” (Alfredo José Gonçalves, CS).

 

2. A audácia da caridade 

 

A VC não existe para si mesma. Sua finalidade não se reduz à manutenção de suas estruturas e à preservação de seus membros. A VC existe para o Reino de Deus, para encarnar o Evangelho “sine glosa”, proclamando-o mais com a presença e a ação do que com a palavra (cf. 1Jo 3,18). De fato, lembrava o grande Santo Antônio, “a palavra é viva quando são as obras que falam”. Portanto, a missão não é um acessório ou uma alternativa. A missão pertence à essência mesma da VC, como irradiação de seu ser e elemento constitutivo de sua identidade na Igreja e no mundo. Em outros termos, no terreno da VC, não se separa jamais ser e agir. Se somos, agimos. Quando agimos, somos.

 

Ir. Dulce soube traduzir em obras inspiradas pelo amor o que significa ser de Deus para os outros, especialmente para os esquecidos e espoliados. Não havia hora ou situação que a impedisse de acercar-se aos pobres e atender a quem lhe procurava. “A caridade não pode ter as mãos amarradas”, afirmava. E, em outra ocasião: “Prefiro trabalhar em silêncio. O importante é praticar a caridade, não falar de caridade. Não me canso, esta é minha missão. Considero tudo o que foi conseguido até hoje como graça de Deus”. Desde o começo de sua vida de religiosa, eram impressionantes a disposição e a coragem que demonstrava quando se tratava de sair ao encontro dos pobres, visitando-os em seus tugúrios, recolhendo-os das sarjetas, pensando suas feridas, sanando suas enfermidades, formando-os para a vida, transmitindo-lhes a fé, reivindicando seus direitos. Como Francisco de Assis, Ir. Dulce abraçou para sempre os mais sofridos e abandonados deste mundo. E o fez com gentileza e firmeza, ternura e vigor. Pelos pobres, vistos e amados como irmãos, não temia expor-se a incompreensões e perigos, ainda mais quando se tratava de defendê-los e promovê-los: “Muitas pessoas afirmam que faço mal em proteger e defender os pobres. Só quem convive diariamente com eles pode avaliar o quanto sofrem, o quanto necessitam da Palavra de Deus, de uma mão amiga que se estenda em direção a eles. Muitos de vocês me criticam, dizendo que faço mal, que mimo os pobres. Quem de nós que se encontrasse na mesma situação não gostaria de receber tudo? A estes, ao contrário, digo-lhes: ‘Ajudem-me! Deem-me a possibilidade de ajudar esses pobres irmãos a saírem dos barracos cobertos de papelão ou de latas velhas, famintos, desempregados, doentes. Seus filhos, suas mulheres também têm fome. Eles hoje estão morrendo e não sabemos se estarão vivos amanhã, quando conseguirmos aquilo que é, sem dúvida, um sacrossanto objetivo”.

 

O olhar transfigurado pela fé ampliava as fronteiras do coração de Ir. Dulce e incentivava suas ações, inclusive em face dos preconceitos e discriminações que pesavam sobre os pobres. O princípio cristão de ver a Cristo nos menores dos irmãos não se restringia a um exercício piedoso. Tratava-se, na verdade, da melhor maneira de compenetrar-se da dignidade dos pobres e da urgência de salvaguardá-la e fazê-la respeitar: “Muita gente acredita que não devemos dar aos pobres a mesma atenção que damos às outras pessoas. Para mim, o pobre, o doente, aquele que sofre, o abandonado, é a imagem de Cristo (...). Se virmos o pobre com esses olhos, seu exterior, o estar sujo, cheio de parasitas, com grandes chagas, não nos incomodará, pois em sua pessoa está presente o Cristo sofredor. Somente quem convive com o pobre pode compreendê-lo. Muita gente pensa que faço muito, que concedo muita atenção aos pobres, e me criticam por isso. Cada um de nós não gostaria de ser bem recebido, de ser bem tratado? E o pobre não possui o direito de ser bem acolhido, de receber todas as atenções espirituais e materiais? (...). Fazemos muito por eles? Eu pergunto: É muito o que fazemos por Deus? Ele não merece tudo de nós? Se o pobre representa a imagem de Deus – estava nu e me vestiste, doente e me visitaste, com fome e me deste de comer (cf. Mt 25,35-36) – então, pode ser demais aquilo que fazemos pelos pobres?”.

 

Ir. Dulce sabia colocar-se no lugar dos pobres e adaptar-se às circunstâncias para fazer-se mais eficaz no atendimento das demandas provenientes das situações com as quais se deparava. Não se perdia em considerações ingênuas e idealizadas a respeito dos pobres, muito menos em infrutíferos e ácidos discursos ideológicos. Seu realismo era carregado de esperança e sua pedagogia encharcada de amor. Era o que se podia inferir, por exemplo, em sua compreensão da situação dos menores que viviam pelas ruas: “Esses jovens são muito violentos e agressivos. Desde pequenos, aos quatro, cinco anos, são muito violentos. Procuramos educá-los através do amor, sem castigos físicos. É necessário ter muita paciência e amor a Deus para trabalhar com esses jovens. Eles estão habituados a ser maltratados em casa, são perseguidos na rua, são espancados e revidam. Somente com muito amor conseguimos recuperar jovens como esses”. A Ir. Dulce, o que mais lhe importava era recuperar o ser humano naquilo que ele tem de mais profundo, em sua dignidade de pessoa, de filho amado de Deus, por mais desfigurada que essa dignidade pudesse parecer.

 

A conclusão a que chegamos não pode ser outra: como Ir. Dulce, encontrar a orientação basilar de nossa consagração na missão, na caridade sem limites, no serviço desinteressado aos últimos. “Nesses anos todos, tenho lutado e sofrido muito, mas sempre feliz, pois sei que estou servindo a Deus na pessoa do pobre”. Aí se escondia a “perfeita alegria”, de que falava Francisco de Assis!

 

3. Uma missão compartilhada

 

Na estrada da VC, não caminhamos sozinhos. Recebemos do Senhor um chamado que nos irmana em comunidade e nos confere uma mesma missão. Em seu Testamento, São Francisco escreveu: “Depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrava o que deveria fazer, mas o próprio Altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do Santo Evangelho”. Assim como a vida espiritual e o apostolado, também a fraternidade nasce e se nutre de uma visceral experiência de fé que nos confirma na vocação e nos pede viver em comunhão a aventura do Evangelho (cf. Mc 3,13-19).

 

Ir. Dulce estava muito consciente dessa verdade. Por isso, jamais quis apartar-se da Congregação a que pertencia e sofreu muito quando a exclaustração lhe foi imposta como condição para prosseguir em sua missão junto aos pobres. Sentia falta de suas Irmãs e ansiava pelo dia em que poderia voltar a viver em comunidade e compartilhar os serviços com suas companheiras de carisma. Curioso notar como nenhuma influência, nem mesmo as mais sinceras e abalizadas, conseguiu demovê-la do propósito de viver e morrer como membro de sua família religiosa. Em 6 de fevereiro de 1970, em pleno período de exclaustração, escreve à Superiora Geral: “Sinto muitas saudades das Irmãs, da comunidade, mas enfrento até mesmo este sacrifício pelos pobres”. E encerra sua missiva com estas palavras: “Adeus, cara Madre! Abençoe a filha que lhe quer muito bem e que deseja morrer como Ir. Dulce, Missionária da Imaculada Conceição”. À Madre Geral seguinte, assegurará: “Serei Irmã da Imaculada Conceição até o fim, com a graça de Deus” (3|1|1971). Este firme sentido de pertença era o fruto sazonado de seu discernimento iluminado pela fé.

 

Por outro lado, Ir. Dulce compartilhava sua vida e missão, suas convicções e seus esforços, sua oração e seu trabalho com voluntários e colaboradores. E estes eram muito numerosos. Sabia cativá-los, respeitando, valorizando e integrando as diferentes competências. Como jamais menosprezava as exigências da caridade, estava persuadida da necessidade de formar e capacitar, a fim de suscitar motivações mais consistentes naqueles que se colocavam a serviço dos pobres em suas obras. Deixará por escrito aos dirigentes: “O mais difícil vai ser conseguir pessoas capazes para este trabalho. Mas não desanimem. De vez em quando, façam reuniões, procurem na medida do possível manter em suas mentes e despertar em seus corações a chama da caridade, da doação àqueles que nos estão confiados. Deus os recompense” (15|2|1984). Outro traço característico da missão compartilhada de Ir. Dulce dizia respeito à confiança demonstrada na generosidade de seus benfeitores: “Não existe gente melhor do que esta da Bahia. Cada dia que amanhece e em casa não temos nada, quando volto, encontro sempre o necessário para aquela jornada”. Nas providências humanas, atua a Providência de Deus, revelando sua predileção pelos pobres e sofredores.

 

Em uma recente entrevista sobre o passado, o presente e o futuro da VC, assim se expressou o Papa Francisco, ao referir-se à partilha de nossa missão com os leigos: “Quando falamos das obras, um sinal claro de que nelas há vitalidade é o fato de serem capazes de agrupar leigos comprometidos com a missão que ali se realiza. Sem dúvida, temos que animar e formar os leigos que trabalham com as diferentes congregações e com as pessoas consagradas, mas temos também de convocá-los a obras e instituições capazes de ser significativas. O cuidado pastoral que devemos ter com os leigos há de chegar ao ponto de não deixar nenhum deles tanto sem formação quanto sem uma clara pertença. Temos de criar instituições e obras capazes de provocar essa pertença carismática” (La fuerza de la vocación, pp. 106-107). Belo retrato do empenho de Ir. Dulce Lopes Pontes!

 

O alentador testemunho de Santa Dulce dos Pobres pode despertar em todos nós, consagrados(as), o anseio inadiável de revitalizar nossa forma de vida desde seus fundamentos, passando da superficialidade à profundidade, do isolamento à fraternidade, das zonas de conforto às periferias. Resta-nos, pois, compartilhar daquela fé confiante e audaz que movia seus passos e fortalecia seus braços. Suas palavras são a melhor garantia de que vale a pena palmilhar o mesmo caminho que ela trilhou: “Se fosse preciso, começaria tudo outra vez, do mesmo jeito, andando pelo mesmo caminho de dificuldades, pois a fé, que nunca me abandona, me daria forças para ir sempre em frente”.

 

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