02 Agosto 2021
“Para Inácio era mais importante a pessoa do que o ofício ou a atividade que exercia, e deixava os superiores provinciais em liberdade, exortando-os para que fizessem o mesmo com os superiores locais. Em minha opinião, esta delegação de responsabilidades foi um dos segredos da eficácia da Companhia”, escreve Pedro Miguel Lamet, padre jesuíta espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 29-07-2021. A tradução é do Cepat.
No dia 31 de julho, celebramos a Festa de Santo Inácio, este ano dentro do quinto centenário do ferimento que o transformou internamente, uma boa oportunidade para revisar a famosa lenda negra que apresenta Inácio de Loyola como um militar rígido e distante, no qual a obediência dominava sobre o coração, criador de uma Companhia onde a autoridade e a eficácia estão acima da pessoa.
Em meu recente romance histórico Para alcanzar amor, seu amigo Pedro de Ribadeneira, ao final de sua vida, revisando a biografia do fundador e seus primeiros companheiros, também aborda a questão de como tratava as pessoas. Inácio amava sua gente. Claro, como bom basco, era terno por dentro, sóbrio por fora.
Copio alguns parágrafos:
“Em uma palavra, agia como um verdadeiro pai, que sabia, como dizia Auger, conhecer “a anatomia da alma”. Sabia ver além da aparência, e se voltava especialmente às consciências atribuladas e aflitas, devolvendo-as muitas vezes a serenidade interior. Um dia, o padre Ministro se queixou de um irmão jovem. Inácio lhe respondeu:
- Eu acredito que, nesses últimos seis meses, este moço progrediu mais do que fulano e beltrano juntos, em um ano.
Referia-se a dois noviços que passavam uma imagem muito boa.
Tinha um curioso critério:
- Mais mortificação da honra do que da carne, e mais mortificação dos afetos do que da oração.
E com os estudantes? Afirmava que os estudos exigiam o homem inteiro, mesmo que naquele momento relaxassem na oração.
- Para um homem que tem as suas paixões mortificadas, um quarto de hora de oração deve bastar para encontrar a Deus – acrescentava.
Ajustava-se ao processo de cada qual, com grande tato e flexibilidade.
- Nas coisas espirituais, não há erro mais pernicioso do que pretender governar os outros por si mesmo, e pensar que o que é bom para um é bom para todos.
Em casa, todos sabíamos que tinha muita aptidão em saber dar e tirar a dor. Só provava mais aqueles que valiam mais. Foi o que experimentou bem o padre Laínez, a quem tratou duramente, talvez porque intuísse que seria o seu primeiro sucessor. Era mais duro com aqueles em quem mais confiava. Disso também sabiam os padres Nadal e Polanco. Mas, em geral, tinha o dom de suavizar a prova dos que sofriam.
Como fez comigo mesmo, amava de verdade seus súditos. Nas coisas espirituais não há erro mais pernicioso do que pretender governar os outros por si mesmo, e pensar que o que é bom para um é bom para todos.
Dava muita importância aos momentos de recreação. Lembro-me que um dia alguém lhe perguntou:
- Em dias de jejum, claro que não temos ceia, deveríamos suprimir a recreação?
- Esses momentos não são apenas para descansar do estudo, mas para que os irmãos se conheçam e estimem entre si, que é o que fomenta a caridade.
Primeiros votos de Montmartre (Fonte: Religión Digital)
Os doentes eram os seus prediletos, a ponto de mandar o comprador diariamente lhe informar se tinha ido adquirir tudo o que o enfermeiro havia pedido. Não tolerava os descuidos com aqueles que caiam doentes e queria que o superior lhe avisasse assim que alguém adoecesse.
- Venda esses pratos de estanho para comprar remédios. E precisamos vender até mesmo os vasos sagrados e até nossos cobertores, se necessário.
Muitas vezes, eu o vi atender e servir pessoalmente aos vitimados por alguma aflição. Nisto não fazia distinção entre pessoas. Quando delegou ao padre Nadal algumas de suas funções, reservou para si o atendimento aos doentes.
- O que se dá aos doentes nunca é uma singularidade, nem uma falta à vida em comum.
Dava tanta importância ao descanso dos estudantes que em uma época na qual passávamos por muitas dificuldades econômicas, comprou uma vinha situada aos pés do Aventino, perto da Igreja de Santa Balbina e das Termas de Caracala, onde arranjou uma casa para o descanso dos estudantes do Colégio Romano.
Tudo isso faz cair por terra o perfil duro e rígido com o qual alguns o pintaram. Claro, talvez tivesse a sensibilidade do basco: terno por dentro, sóbrio por fora. Falava com simplicidade e quase não usava superlativos, como em seu estilo ao escrever, que certamente não era o de um literato, mas de um conciso, quase lacônico no que queria expressar.
Possuía um magnetismo especial para alcançar a simpatia das pessoas. Certa vez, ouvi dizer sobre ele:
- O padre mestre Inácio é o homem mais cortês e comedido do mundo.
Talvez conservasse algo do antigo gentil-homem e quando queria acolher uma pessoa, parece que desejava colocá-la em sua alma e, com frequência, convidada as pessoas para comer em sua mesa. Um dia apareceu um jovem flamengo, que era alto e grande como um castelo. Então ele, que era baixo de estatura, deu um pulo para abraçá-lo.
Deixava os outros falarem, sabia escutar, com um peculiar dom para conversar. Nunca nos interrompia, ainda que falássemos de coisas inúteis, e se pedíamos a ele algo importante, solicitava que deixássemos por escrito para refletir sobre o assunto. Se precisava dizer não, agia de tal forma que ficávamos convencidos que aquela era a melhor decisão possível.
Era muito cuidadoso com a fama de seus súditos, protegendo-a quando precisava se consultar a respeito de um tema espinhoso com outros. Um dia, quando um companheiro repetiu as palavras que um doente disse delirando, advertiu-o severamente.
Para chamar a atenção de alguém, agia com boas palavras e razões. Se recebia uma pessoa de quem suspeitasse que poderia acusá-lo de algo, levava testemunhas para que houvesse um registro fiel do que havia sido dito. Nem os afetos e nem as más palavras o atingiam, mas se calava, entrava dentro de si e depois respondia.
Acredito que foi o padre Romei quem disse:
- No tempo em que esteve entre nós, com sua presença e diálogo, em casa reinava grande alegria.
Se esse, sem exagero, era o seu perfil humano, é preciso acrescentar que possuía uma boa visão na hora de enviar os companheiros. Já nas Constituições fez constar que era necessário repartir os cargos de acordo com a aptidão de cada um, segundo suas inclinações. E antes de enviar alguém, perguntava sobre suas inclinações para os trabalhos, sem impor fardos maiores do que suas forças. Quando encomendava algo, depois dava liberdade para a pessoa agir por sua própria iniciativa. Curiosa foi a resposta de alguém quando ele perguntou ao que se inclinava:
- Eu me inclino a não me inclinar – respondeu o sujeito, o que agradou muito ao nosso padre.
Conta Gonçalves da Câmara que quando um companheiro voltava para casa, após realizar um negócio, limitava-se a lhe perguntar:
- Volta alegre com você?
Para Inácio era mais importante a pessoa do que o ofício ou a atividade que exercia, e deixava os superiores provinciais em liberdade, exortando-os para que fizessem o mesmo com os superiores locais. Em minha opinião, esta delegação de responsabilidades foi um dos segredos da eficácia da Companhia.
E como tomava as decisões? Primeiro, informava-se amplamente. Depois deliberava sobre o assunto aplicando suas regras de discernimento, uma de suas maiores intuições descritas nos Exercícios Espirituais. Depois, confrontava-a com outros, levava o assunto à oração e, finalmente, decidia. Quando via com clareza, raramente recuava.
- Já bateu o martelo – era a típica frase dita por alguns deles, como acredito ter mencionado.
Seu grande critério era usar todos os meios humanos e depois colocar toda a confiança em Deus.
Em algum lugar, descrevi isso assim:
Nas coisas do serviço a nosso Senhor que empreendia, usava todos os meios humanos para alcançá-las, com tanto cuidado e eficácia como se deles dependesse o bom êxito, e de tal maneira confiava em Deus e dependia de sua divina providência, como se todos os outros meios humanos que tomava não tivessem qualquer efeito.
Nisso de assumir os meios humanos e depois deixar o assunto para Deus era obstinado. Uma anedota confirma:
Nuvens negras cobriam o céu no mês de novembro de 1552, quando mancando, portando um simples chapéu e bengala na mão, dirigia-se a um pequeno povoado chamado Alvito, acompanhado de seu eficaz secretário Polanco. Tinha uma finalidade: buscar a reconciliação da senhora Juana de Aragón com o seu marido, senhor Ascanio Colonna, pais do célebre Marcantonio Colonna, herói que era de Lepanto.
De repente, o céu escureceu e começou a chover forte. O padre Polanco sugeriu:
- Padre Inácio, se seguirmos assim, ficaremos encharcados. Não deveríamos retornar para casa e adiar a visita para outro dia?
- Voltar? Nem pensar. Há trinta anos, não deixo de fazer algo previsto, seja pelo mau tempo, chuva, trovão ou vento forte.
- E se encontrar pessoas com más intenções?
- Devemos nos convencer de que em nossa tarefa apostólica também nos encontraremos com pessoas perversas. O verdadeiro companheiro de Jesus não deve se inquietar com isso. Usemos para os nossos propósitos a simplicidade da pomba e a inteligência da serpente.
As duas sombras, uma delas mancando, fundiram-se entre a bruma, o dilúvio e os ventos, alcançando Alvito encharcados, mas felizes em realizar sua missão, uma missão que durou dez dias, sem que fosse possível reconciliar o egrégio casal. Então, pelo caminho, o céu azul de Roma se abriu sereno”.
(Pedro Miguel Lamet, Para alcanzar amor, cap. 24, pág. 436 e ss. La Esfera de los Libros, Madrid 2021)
Seu grande lema resume sua vida: “Em tudo amar e servir”. O que evidentemente supõe renúncias ao nosso pequeno eu, mas que se realiza plenamente em um amor pessoal, fraternal e cósmico.
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Inácio de Loyola amava sua gente. Artigo de Pedro Miguel Lamet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU