Notas para discussão sobre a Amazônia brasileira

Foto: Bruno Cecim/Ag.Pará | Fotos Públicas

21 Julho 2021

 

"O desafio é compreender a realidade amazônica, identificando os entraves à melhoria das condições socioambientais, traçar e implementar democraticamente as iniciativas econômicas, assim como distribuir de modo justo seus resultados", escreve Marcelo Seráfico, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFAM e coordenador do PPGS/UFAM.


Eis o artigo.


1. Proponho-me aqui a falar sobre algumas das dinâmicas político-sociais características das atividades econômicas realizadas na Amazônia brasileira. Isso significa que precisamos olhar para as formas como a região tem sido vista pelos agentes sociais, como eles têm tomado decisões políticas com fins econômicos e quais são alguns dos impactos sociais de tais decisões.

2. Acredito que esse tipo de abordagem nos ajude a apreender alguns dos atuais impasses, conflitos e desafios que cercam, ameaçam e movem as forças sociais ocupadas em formular, discutir e implementar políticas para a Amazônia.

3. Em primeiro lugar, há uma ideia amplamente difundida de que a Amazônia é, antes de tudo, a natureza, o lugar onde se localiza a maior floresta tropical e bacia hidrográfica do mundo, um complexo sistema ecológico rico em plantas e animais. Vista assim, observa-se nela uma biodiversidade impressionante, assim como a disponibilidade de um magnífico patrimônio natural e um fator importante para o equilíbrio ambiental do ecossistema global.

4. A Amazônia como natureza é provavelmente a forma predominante de pensá-la. Com nuances ao longo do tempo, lembra uma região que representa as promessas do paraíso ou as maldições do inferno. As dificuldades de adaptação, exploração ou proteção de seus recursos parecem ser um desafio a ser enfrentado por cientistas, movimentos sociais, empresas transnacionais, governos e ONGs que se articularam ou não em busca de meios para usar e / ou proteger a natureza.

5. Alguns lutam para transformar, de várias maneiras, os recursos naturais em mercadorias. As árvores, o solo, os minerais, as águas e até o sangue das etnias que habitam a região são tidos como fontes potenciais de rentabilidade econômica. Outros lutam para conservar os recursos naturais, isto é, para mantê-los como estão, de modo a evitar mais perdas e a proteger uma espécie de “jardim botânico da humanidade”. E ainda outros tentam imaginar estratégias para combinar interesses econômicos com proteção ambiental, preservando e conservando a natureza, mas utilizando-a para reproduzir sua própria existência.

6. Porém, quando se concentra o olhar na realidade social que habita e produz a natureza, passa-se a entender que a Amazônia é muito mais do que meio ambiente, biodiversidade e patrimônio. A estreiteza das concepções movidas pela natureza torna-se clara quando confrontada com a existência de grupos, camadas e classes sociais que dão vida histórica à floresta e seus recursos.

7. Desse ponto de vista, a Amazônia passa a ser um lugar produzido pelo jogo de forças sociais locais, nacionais e globais que, em conflito e articulação, configuram a dinâmica da apropriação e uso da natureza, assim como a dinâmica da dominação política.

8. Separando os Estados que compõem a Amazônia Legal, os seis Estados (Amazonas, Pará, Amapá, Roraima, Rondônia e Acre) que compõem a floresta tropical somam aproximadamente metade do território nacional brasileiro, dezessete milhões de pessoas, duzentos e cinquenta grupos indígenas e mais de quatrocentas comunidades quilombolas. Além disso, a maior parte da população da Amazônia é urbana.

9. Essa complexa realidade social inclui os grupos indígenas urbanos que se mudaram para as capitais dos Estados expulsos pela violência ou pelas precárias condições de vida em seus assentamentos de origem; inclui imigrantes de toda parte fugindo de desastres políticos, econômicos ou naturais, como os venezuelanos e haitianos mais recentemente. Todos tentando se encaixar na vida urbana junto com outros trabalhadores.

10. Essa realidade social pode ser um subproduto da forma como esses grupos sociais locais foram integrados às atividades e planos de desenvolvimento econômico. A partir dos anos 60, a Amazônia se tornou objeto de iniciativas que articulam nos níveis nacional, estadual e municipal interesses de grupos cujo foco é a dinamização da economia centrada na criação de condições políticas de rentabilidade econômica.

11. Por exemplo, as políticas de contra-reforma agrária da ditadura militar, assim como os grandes projetos de construção de barragens e estradas, o incentivo à mineração, a agricultura intensiva e a extração de madeira estão, em muitos aspectos, diretamente relacionados às lutas que culminaram com a criação de Terras Indígenas, Quilombolas e Unidades de Conservação na Amazônia. Tudo isso no contexto dos esforços dos anos oitenta e noventa para a democratização do país.

12. Um dos muitos projetos postos em prática pela ditadura militar que sobreviveu às diversas crises econômicas do país, é a Zona Franca de Manaus. Sendo parte da Operação Amazônia, com ela pretendeu-se desenvolver em Manaus condições adequadas para a dinamização da agricultura, do comércio e da indústria. Acredito que este exemplo pode ser tomado como emblemático de alguns dos grandes desafios enfrentados pelos interessados ​​em propor políticas que contemplem, ao mesmo tempo, a prosperidade econômica, social e política.

13. Por quê?

14. Em primeiro lugar, porque a Zona Franca é o resultado de um esforço político-econômico internacional para, ao mesmo tempo, exportar uma certa concepção de desenvolvimento, neste caso vinculada à Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial; modernizar, à maneira capitalista, as relações sociais na Amazônia; e fazê-lo através da articulação dos interesses das corporações transnacionais, governo nacional e burguesias locais-nacionais.

15. O principal objetivo, então, era, por meio da dinamização econômica, promover a ocupação da Amazônia, vista como um vazio demográfico. Povos indígenas, comunidades negras, populações ribeirinhas faziam, nesse sentido, parte do vazio.

16. Como a dinâmica da Zona Franca se concentrava, como se concentra ainda hoje, em Manaus, e a região experimentava, desde os anos quarenta, uma retração econômica da exploração dos recursos naturais, um dos efeitos de sua criação foi a migração de trabalhadores agrícolas para a capital do Amazonas.

17. Essas pessoas tiveram, então, que se adaptar ao trabalho industrial e a outros tipos de trabalho demandados por empresas privadas beneficiadas pelos incentivos públicos, fiscais e de infraestrutura, da Zona Franca.

18. Embora na década de 1970 o governo estadual tenha tentado comprometer as empresas beneficiadas pelos incentivos com o investimento na agricultura, isso não foi longe. No entendimento dos tradicionais empresários locais, significaria dispersar energia política e econômica.

19. A dinâmica dos incentivos, então, se desenvolveu, fundamentalmente, na atividade comercial baseada nas importações e no setor industrial, concentrando-se nas fábricas de eletroeletrônicos e motocicletas / bicicletas.

20. No início dos anos noventa outra crise se instala na economia da Zona Franca. As contra-reformas empreendidas pelo governo nacional com vistas a ajustar estruturalmente o país às condições de acumulação de capital em escala global, teve sérios efeitos econômicos localmente. O comércio de bens importados foi duramente fragilizado pela liberalização da economia nacional. A oferta de produtos importados, que só podiam ser comprados pelas classes média e alta em Manaus, agora podia ser obtida em qualquer lugar do Brasil.

21. Desde então, a Zona Franca é mais do que qualquer coisa uma zona de incentivos às empresas nacionais e transnacionais e até mesmo a demanda por empregos está sendo enfraquecida pelas mudanças nos processos de produção e na legislação trabalhista.

22. Mas também a partir da década de noventa, após a Rio 92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e mais especificamente a partir do Protocolo de Kyoto, formulado em 1997 e adotado em 2005, muitas propostas foram formuladas e apresentadas a fim de abordar questões em relação à dinâmica econômica e à proteção ambiental. Todo um conjunto de novas ideias e propostas surgiu no debate público. Sequestro de carbono, comércio justo, ecodesenvolvimento etc. e com eles a criação de novas cadeias produtivas, como a da indústria cosmética.

23. Localmente, a experiência de gestão da Zona Franca se aliou à intenção de construir uma infraestrutura científica voltada para a pesquisa e aplicar, em parceria com investidores privados, conhecimentos científicos para o desenvolvimento de novos negócios a partir dos recursos naturais. É o caso do Centro de Biotecnologia da Amazônia. Uma experiência que está em espera devido a conflitos políticos e econômicos envolvendo setores regionais e nacionais da indústria.

24. Essa nova perspectiva envolve questões importantes relacionadas aos mecanismos de desenvolvimento limpo como meio de conter as mudanças climáticas e criar um ambiente global mais saudável.

25. Ora, o que significam tais propostas para as pessoas que moram em um local assumido como recurso estratégico para o equilíbrio ambiental do planeta?

26. Eu acredito que significa muito. Mas não se esses povos forem objetos da ação de Estados, empresários, corporações ou organizações interessadas apenas em proteger a floresta e gerar receitas a serem apropriadas privadamente.

27. A questão, então, não é apenas sobre quais benefícios os amazônidas podem obter com projetos de desenvolvimento, mas também como esses projetos, quaisquer que sejam, devem ser concebidos e como seus bons resultados devem ser socializados. Em outras palavras, o desafio é compreender a realidade amazônica, identificando os entraves à melhoria das condições socioambientais, traçar e implementar democraticamente as iniciativas econômicas, assim como distribuir de modo justo seus resultados.

28. Nesse sentido, a participação direta das organizações de grupos, camadas e classes sociais amazônicas é, na minha modesta opinião, um pré-requisito para qualquer projeto econômico voltado para a supressão das desigualdades e da subordinação das sociedades amazônicas a interesses e necessidades que lhes sejam estranhos. Em outras palavras, em minha opinião, a imaginação de alternativas de projetos políticos de dinamização econômica da região deve fundar-se, de um lado, na combinação entre estratégias de democratização política e econômica com a proteção ambiental; portanto, deve exigir a ampliação e aprofundamento da resistência e rejeição a todo e qualquer interesse e perspectiva cuja realização implique ainda mais destruição, concentração econômica e de poder político.

 

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