15 Julho 2021
Na semana passada, eu chamei a atenção para o artigo de George Packer, intitulado “Como os Estados Unidos se dividiram em quatro partes” [disponível em inglês aqui], publicado na The Atlantic. O artigo detalha quatro narrativas dos Estados Unidos que, segundo Packer, moldam a política nacional. O subtítulo enquadra o enigma dos nossos dias: “As pessoas nos Estados Unidos não concordam mais com o propósito, os valores, a história ou o significado da nação. A reconciliação é possível?”.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado em National Catholic Reporter, 12-07-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.
Nenhum de nós consegue ver o futuro, então não há como saber se a pergunta pode ser respondida afirmativamente. Muitas vezes, eu me peguei pensando que somente algo realmente terrível e indiscriminado poderia unir o país, algo como uma pandemia. Pobre de mim...
Mas o artigo de Packer aponta para um dos maiores obstáculos para alcançar a reconciliação, e eu acho que tenho uma ideia sobre como os déficits nas quatro narrativas que ele descreve podem se tornar menos tóxicos.
Os “quatro Estados Unidos”, de acordo com Packer, são:
- os “Estados Unidos Livres” [Free America], com os quais ele se refere ao movimento reaganita, libertário e antigovernamental que se aliou a preocupações conservadoras mais tradicionais como o anticomunismo e um populismo racista latente, e que refez o cenário ideológico depois de 1980;
- os “Estados Unidos Inteligentes” [Smart America], o tipo de progressivismo clintoniano e, mais tarde, obamiano, que não questionou a orientação ao mercado dos reaganitas, mas tentou redirecioná-la para fins mais comunitários, adotando uma compreensão meritocrática da sociedade estadunidense na qual eles viam a si mesmos como líderes naturais, geralmente com uma forte dose de presunção;
- os “Estados Unidos Reais” [Real America], que Packer atribui corretamente a Newt Gingrich, mas cujo nome se deve ao hábito de Sarah Palin de contrastar o público presente em seus comícios de campanha em 2008 – os “estadunidenses reais” – com as elites que ela percebia que participavam nos eventos de campanha de Obama, uma visão mais distópica sem o brilho de Reagan e mais disposta a se posicionar sobre o racismo latente em iterações anteriores do conservadorismo; e
- os “Estados Unidos Justos” [Just America], a narrativa que vem de estadunidenses jovens e despertos que insiste que os estadunidenses enfrentem as razões pelas quais ainda somos tão oprimidos pelo racismo, embora introduzam ideias novas e difíceis que vão contra duas das qualidades mais características da mente estadunidense que as gerações anteriores apregoavam: o otimismo e o pragmatismo. Nenhuma das qualidades parece tão resplandecente, tão capaz de suportar a causa da renovação, depois que assistimos ao vídeo do assassinato de George Floyd.
Packer argumenta que cada narrativa contém elementos de verdade, mesmo que cada uma tenha ajudado a desempenhar um papel no desvendamento de um ethos estadunidense compartilhado. Packer é especialmente incisivo ao captar o lado negativo de cada narrativa e é brilhante ao detalhar as conexões entre os grupos, como neste parágrafo:
“Mas a maioria dos ‘estadunidenses justos’ ainda pertencem à meritocracia e não querem abrir mão das suas vantagens. Eles não conseguem escapar das suas ansiedades de status, eles apenas as transferiram para a nova narrativa. Eles querem ser os primeiros a adotar a sua terminologia especializada. No verão de 2020, as pessoas de repente começaram a dizer ‘BIPOC’ [Black, Indigenous, and People Of Color], como se tivessem feito isso durante a sua vida inteira (negros, indígenas e ‘pessoas de cor’ era uma forma de separar grupos que haviam sido agregados sob a categoria das ‘pessoas de cor’ e dar-lhes o seu lugar de direito na ordem moral, com as pessoas de Bogotá, Karachi e Seul na retaguarda). Toda a atmosfera dos ‘Estados Unidos Justos’ em seu aspecto mais restrito – o medo de não dizer a coisa certa, o desejo de apontar uma arma fulminante sobre falhas menores – é uma variação do espírito competitivo feroz dos ‘Estados Unidos Inteligentes’. Apenas os termos de credenciamento foram alterados. E como a realização pessoal é uma base frágil para a identidade moral, quando os meritocratas são acusados de racismo, eles não têm nenhuma fé sólida em prol de si mesmos para se sustentar.”
E Packer é igualmente claro no sentido de que as duas narrativas mais recentes, os Estados Unidos “Reais” e “Justos”, deixam intocadas as relações econômicas estipuladas pelas duas narrativas anteriores, dos Estados Unidos “Livres” e “Inteligentes”, levando o conflito delas para os âmbitos da cultura, e não das finanças. Ao lê-las, se alguém tivesse uma mente conspiratória, seria difícil não pensar que o interesse monetário, nos últimos 30 anos, havia dirigido com sucesso as mentes mais jovens para o âmbito da cultura, esperando que as suas fortunas sobrevivessem à competição.
Eu diria, no entanto, que a melhor maneira de melhorar as piores características de cada uma dessas quatro narrativas é com a forte tônica do ensino moral católico, e o ensino social católico, mais especificamente.
Portanto, ao considerar a ideologia libertária dos “Estados Unidos Livres” que associamos a Reagan, podemos detectar facilmente que ela reconhecia os direitos individuais, mas divorciava esses direitos das suas responsabilidades. O pressuposto do reaganismo, e de todas as ideologias do laissez-faire, é que a vontade do indivíduo, deixada livre pela regulamentação social ou governamental, alcança os resultados sociais ideais, um pressuposto que era comprovadamente falso como resultado, mas era igualmente deficiente teoricamente. O reaganismo esqueceu que os fundamentos estadunidenses não diziam respeito apenas à proteção dos direitos individuais, mas, especialmente na elaboração da Constituição, também no erguimento de um governo federal forte, capaz de articular e alcançar o bem comum. O ensino social católico mantém a dignidade do indivíduo e o bem comum em constante tensão, nunca se contentando em sacrificar um ao outro, equilibrando suas reivindicações conflitantes, como exige a prudência.
O sistema de valores meritocráticos da narrativa dos “Estados Unidos Inteligentes” esquece dois princípios fundamentais do ensino católico. Primeiro, que a dignidade humana não é conquistada e, portanto, pertence tanto aos subempreendedores quanto aos superempreendedores. Quando Hillary Clinton falava dos “deploráveis”, ela não apenas condenava as suas perspectivas eleitorais, mas também demonstrava como é repugnante uma indiferença pela dignidade humana compartilhada.
O segundo princípio católico corretivo sustenta o primeiro: a vida humana é um dom, e não um produto, e, portanto, deve ser tratada com um certo respeito. A disposição dos “Estados Unidos Inteligentes” de adotar as leis liberais do aborto e da eutanásia é uma consequência direta dessa falha em reconhecer a vida como um dom.
A narrativa dos “Estados Unidos Reais”, que agora poderia ser traduzida como trumpismo, pega um pouco do patriotismo barato do reaganismo, revitaliza a tendência paranoica do anticomunismo, prega uma ética antigovernamental, mas o otimismo da “Cidade resplandecente sobre uma colina” da Revolução Reagan dá lugar a uma visão distópica.
Ambas as narrativas negociam em ressentimento, mas, com o trumpismo, o resultado é uma narrativa agressiva, ao estilo de Mussolini, sombria e ameaçadora, sem a força da natureza solar de Reagan. O teor antidemocrático da linguagem dos “Estados Unidos Reais” é profundamente discordante da nossa história. O resultado – e não é exclusivo de Trump, pois você vê isso em seus acólitos como o governador do Texas, Greg Abbott, e o governador da Flórida, Ron DeSantis – é tão desprovido de virtude moral que é espantoso ver católicos adotarem-no.
Esta coluna, nos últimos quatro anos, tem sido em grande parte um registro das depredações morais da Casa Branca de Trump, mas, sem dúvida, o corretivo mais necessário oferecido pela doutrina social católica é a nossa crença na necessidade moral da solidariedade. Trump ofereceu uma falsa solidariedade aos seus seguidores, definida apenas pela antipatia deles pelas elites. Ao mesmo tempo, ele perpetuava o poder econômico arraigado das elites.
A narrativa dos “Estados Unidos Justos”, assim como as outras três, falha porque não entende a relação do indivíduo com o grupo e do grupo com a nação. A doutrina social católica, com o seu necessário universalismo, o seu compromisso com a subsidiariedade como meio de estruturar a solidariedade e a sua crença fundamental na dignidade da pessoa humana, melhora esse problema fundamental da política identitária. O fato de os proponentes dos “Estados Unidos Justos” estarem tão completamente fora de contato com os membros da classe trabalhadora da raça ou etnia que esses proponentes afirmam ser defensores destaca o fato de que a sua iteração de solidariedade é, assim como a dos devotos dos “Estados Unidos Reais”, falsa.
Há outra semelhança entre os trumpianos dos nossos dias e os seguidores despertos e altamente instruídos dos “Estados Unidos Justos”: ambos optaram por abandonar a esperança que sempre esteve associada ao caráter estadunidense, uma parte central da mente ou alma, ou se você preferir identidade, estadunidense. A linhagem cristã da esperança se encontra mais explicitamente no capítulo 55 de Isaías e na Primeira Carta de Pedro 3,15: “Estejam sempre prontos a dar a razão de sua esperança a todo aquele que a pede a vocês”. Tanto as narrativas dos Estados Unidos “Reais” e “Justos” evitam intencionalmente e até zombam de qualquer sensibilidade aspiracional e, ao fazerem isso, deixam o eleitorado estadunidense diante de uma escolha incômoda.
As narrativas dos Estados Unidos “Livres” e “Inteligentes” estão em declínio. As duas que restam são profundamente insatisfatórias, mas é impossível não ter mais simpatias com a narrativa dos “Estados Unidos Justos” e os seus proponentes. Eu poderia até endossar muitas das suas intuições, se essas intuições não recebessem uma vocação intelectual e moral abrangente e totalizante que é incapaz de se alcançar. Ou seja, por mais importantes que sejam a raça e o gênero, eles nunca são a história toda. A política identitária nunca fornece todas as informações que uma pessoa e um povo precisam saber a fim de entenderem o seu mundo.
Mas a multidão dos “Estados Unidos Reais” vai vencê-las nas urnas todos os dias e sempre. O patriotismo de Trump é superficial e pior do que superficial; ele distorce a história estadunidense e nega os melhores anjos da nossa natureza. Mesmo assim, os adeptos dos “Estados Unidos Justos” adicionam uma camada detestável de condescendência à sua distopia, não encontrada entre os trumpianos, e esse é o tipo de coisa que custará à esquerda as eleições, a menos que ela encontre maneiras melhores de canalizar a energia dos despertos.
O artigo de Packer vale a pena ser lido por qualquer pessoa que está preocupada com o futuro do país. E confirma aquilo em que eu acredito há muito tempo: não há nenhuma ideologia nem questão na vida pública estadunidense que não seja estimulada por um encontro com a doutrina social católica.
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EUA: como o ensino social católico aprimora as várias facetas nacionais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU