14 Julho 2021
“É inquestionável o dano econômico e comercial que o bloqueio estadunidense causou em Cuba, a partir dos anos 1960. Um dano que se agravou no período de Trump, ao deixar para trás a etapa do degelo fomentada por Obama. Mas o mal-estar social já não se circunscreve à penúria econômica”, opina César G. Calero, jornalista espanhol, em artigo publicado por Público, 12-07-2021. A tradução é do Cepat.
Manuel Vázquez Montalbán aproveitou, em 1998, a histórica visita de João Paulo II a Cuba para escrever todo um tratado sobre as diferentes arestas da Revolução Cubana. Intitulou-o E Deus entrou em Havana. Naquela viagem, o papa polonês deixaria para a posteridade um célebre adágio: “Que Cuba se abra ao mundo (...) e que o mundo se abra a Cuba”. A ilha ainda se ressentia pelos estragos do Período Especial de inícios dos anos 1990 e a chegada do Pontífice vaticinava uma nova era de mudanças que, no entanto, não frutificaram.
Duas décadas depois, uma nova deidade está operando o milagre dos pães e os peixes. Lá onde aparecem demandas por mudanças, as redes sociais difundem e geram um efeito contagioso. Ocorreu em novembro de 2020, com as mobilizações de um grupo de artistas e intelectuais e aconteceu agora, de maneira explosiva, com a rejeição popular mais contundente que se tenha lembrança na ilha, há muito tempo.
Quando Fidel Castro adoeceu gravemente, em fins de julho de 2006, e delegou o poder a seu irmão Raúl (na época, ministro da Defesa), um zunzum circulou pelas ruas de Havana: “Isto com Raúl não se sustenta”. Ao general se atribuía uma falta de conexão com o povo, o que Fidel tinha de sobra. Frente ao carisma e a eloquência do comandante para manter em vigor a Revolução, Raúl só parecia propor seu férreo controle das Forças Armadas Revolucionárias (FAR).
Contudo, logo o general se encarregou de silenciar as vozes mais derrotistas com uma habilidade política desconhecida. Seu governo não seria continuísta, mas reformista. Em vez de esperar um novo maleconazo (o protesto anticastrista de 1994, que o próprio Fidel desfez, ao se apresentar pessoalmente e dissolver a concentração), Raúl foi propondo pequenas mudanças nos modos de vida de uma população exausta, após anos de austeridade econômica e exigências políticas.
O lento reformismo de Raúl e, mais tarde, de seu sucessor político, o hoje presidente Miguel Díaz-Canel, gerou mais decepções do que esperanças ao longo dos últimos 15 anos. Em 2006, bem poucos cubanos tinham acesso à Internet. Uma conta de correio eletrônico era um objeto de desejo e um celular, um artigo de luxo. A tímida abertura do regime permitiu um progressivo acesso dos cidadãos à Rede. Era, então, questão de tempo que a crescente conectividade se associasse ao mal-estar de amplos setores da sociedade, diante de uma crise crônica agravada pela pandemia.
No tédio por um presente desolador e um futuro nada auspicioso está o germe das marchas de domingo. Diferente de outras épocas em que um protesto se localizava em um lugar concreto e, em seguida, era contido pelas autoridades sem que o resto dos países se inteirasse, hoje, a Internet funciona como um alto-falante difícil de silenciar.
As manifestações começaram em San Antonio de los Baños, um tranquilo povoado próximo de Havana e célebre por abrigar a escola de cinema internacional. E foram reproduzidas em outra ponta da ilha, no município de Palma Soriano, localizado no leste cubano, onde a Revolução se enraizou nos anos 1950. E chegou ao próprio coração da Havana Velha. A escassez de produtos básicos e o preocupante aumento dos contágios pelo coronavírus ampliaram o descontentamento cidadão. As redes sociais fizeram o resto: tornar essa rejeição um evento em massa.
Se a extensão do protesto é fruto da implantação da Internet na ilha, a primeira resposta do regime parece extraída dos tempos da Guerra Fria. Em sua primeira alocução televisionada, Díaz-Canel voltou a culpar os Estados Unidos pela precária situação econômica da ilha. O embargo que Washington ainda impõe a Havana estaria na raiz da agitação social que, segundo o mandatário cubano, poderia servir como desculpa para uma intervenção estrangeira.
É inquestionável o dano econômico e comercial que o bloqueio estadunidense causou em Cuba, a partir dos anos 1960. Um dano que se agravou no período de Trump, ao deixar para trás a etapa do degelo fomentada por Obama. Mas o mal-estar social já não se circunscreve à penúria econômica. Foi o que demonstraram, em fins do ano passado, os coletivos de artistas que gritavam “liberdade”. Nos dois casos, as redes sociais foram cruciais. Hoje, muitos jovens têm acesso ao Facebook, Twitter e Instagram e se informam através destes canais sobre o que acontece em qualquer canto do país.
O regime deveria prestar atenção nessa mudança de época. No entanto, a retórica militar não desapareceu do Palácio da Revolução: “A ordem de combate está dada”, despachou Díaz-Canel ao chamar os “revolucionários” a tomar as ruas. É possível que a Polícia e as brigadas parapoliciais possam conter mais protestos de rua com repressão e detenções em massa, mas aqueles que foram às praças exigindo uma vida mais digna, cansados dos apagões e da escassez de produtos de primeira necessidade, aqueles que também exigem mais liberdade de um regime preso ao passado, contam com uma ferramenta nova para potencializar o seu descontentamento. O protesto se tornou viral em Cuba. As redes sociais vão modificar (já estão modificando) as relações entre o poder e a cidadania. O combate deveria ser dialético.
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E Deus entrou em Havana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU