Brasil não precisa de grande reforma tributária, basta cumprir a Constituição. Entrevista especial com Paulo Gil

Para ele, “nossa Carta Magna elegeu princípios de tributação afinados com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”

Manifestação contra carga tributária realizada em Brasília em 2017 | Foto: José Cruz/Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 13 Julho 2021

 

Na última semana, o Governo Federal alardeou que já está no Congresso uma nova etapa de sua Reforma Tributária. Em outro ponto, há quem defenda o fim do atual governo para estancar o estado de crise, mas que no fundo defendem mesmo é uma passividade para levar a cabo as “reformas que o Brasil precisa”. Afinal de contas, o país precisa de reformas? Para o auditor federal Paulo Gil, especialista em Economia do Trabalho, ao menos no quesito tributação, não. “O Brasil não precisa de uma reforma tributária ampla. Basta cumprir o estabelecido na Constituição Federal. Nossa Carta Magna elegeu princípios de tributação afinados com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”, defende na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Gil é mais um dos estudiosos que defende a real tributação dos super-ricos, o que para ele não representa nenhuma reforma, por, inclusive, estar presente na Constituição. “Os impostos devem, sempre que possível, ter caráter pessoal e ser graduados segundo a capacidade econômica dos contribuintes”, observa. “Para materializar esses princípios, definimos que o imposto de renda será informado pelos critérios da generalidade, universalidade e progressividade, o que significa dizer que incluímos no campo de incidência todos os rendimentos e todas as pessoas e a obrigação tributária de cada uma delas será proporcionalmente maior na medida em que suas rendas forem mais elevadas”, completa. Isso porque, ainda seguindo com a Carta Magna, com o objetivo de dar “melhor destinação possível aos tributos arrecadados, previmos a possibilidade de instituição de contribuições sociais, fontes de recursos estritamente vinculadas ao financiamento da Seguridade Social, para as políticas de assistência, previdência social e saúde”.

 

Para Gil, a atual reforma proposta não toca nesses princípios, mantendo vivas lógicas que aos poucos vão desvertebrando os rendimentos do Estado. Com isso, surge o argumento de que o Estado não consegue arcar com tantos benefícios sociais. E quando não se assegura nem o básico, debates mais amplos, como sobre uma renda básica universal, por exemplo, acabam sufocados. “Segundo alguns especialistas no tema, recursos da ordem de 2% do PIB seriam suficientes para financiar um programa de renda básica, ou seja, o equivalente à metade do que se poderia arrecadar com as mencionadas medidas de tributação sobre os super-ricos”, compara.

 

Ele ainda destaca que debater uma renda básica universal não é algo fechado em si, para subsistências em situações-limites como no caso do Auxílio Emergencial agora na pandemia. É algo muito mais amplo, com impacto e conexão com o próprio trabalho e geração de renda e empregos em nosso tempo. “A renda básica deve ser um complemento e uma ampliação dos direitos sociais existentes”, insiste. Afinal, compreende que “a renda básica teria um papel relevante na erradicação da miséria e na redução da desigualdade. Seria ainda mais importante diante da perspectiva de continuidade da atual política econômica, que implicará na explosão do desemprego. A renda básica representaria uma espécie de colchão social”.

 

Na entrevista, Gil ainda analisa o contexto econômico global, os desafios da tributação de fortunas e as experiências latino-americanas nesse sentido, além de outros debates que aponta como muito mais urgentes do que celebrações vazias de um crescimento pífio que ainda é insustentável. “Estamos aprofundando um modelo econômico extremamente dependente do mercado internacional. O núcleo decisório sobre os rumos da economia encontra-se fora do país. Esse padrão de crescimento não traz solução para os nossos principais problemas”, adverte.

 

Paulo Gil (Foto: Arquivo pessoal)

Paulo Gil Hölck Introíni é servidor público federal, no cargo de auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil. Graduado em Ciências Contábeis, é especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Atualmente, é diretor de assuntos institucionais do Instituto Justiça Fiscal e integrante do coletivo Auditores-Fiscais pela Democracia.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – No Brasil da pandemia, os super-ricos aumentaram sua fatia em 2,7% no ano passado e agora respondem por quase 50% da riqueza do país. Segundo o Relatório de Riqueza Global do banco suíço Credit Suisse, é a maior proporção entre as 10 nações pesquisadas. O que esses dados revelam?

Paulo Gil – Esses dados escancaram o traço mais marcante do modelo econômico praticado no Brasil, a concentração de renda e riqueza com a consequente exclusão de amplas parcelas da população das condições mínimas de cidadania. Pode-se objetar que estas sejam características intrínsecas ao capitalismo. É fato que, por toda parte, os super-ricos tiram proveito da pandemia e multiplicam suas fortunas. A riqueza dos dez maiores bilionários do planeta, na sua maior parte constituída por ações, aumentou em 540 bilhões de dólares em 2020.

A explicação mais geral desse fenômeno aponta para dois fatores em especial. O primeiro é a redução do custo da força de trabalho na maior parte dos países, pela ausência de políticas públicas voltadas à proteção social dos segmentos vulneráveis das populações, agravando o quadro em que se verificava o desemprego estrutural e a acentuada precarização do trabalho. O segundo, entrelaçado ao primeiro, são as restrições à presença física dos consumidores, impostas pela pandemia. As atividades “intensivas em contato” são prejudicadas, enquanto as grandes empresas com capacitações tecnológicas para atuar predominantemente pela via digital crescem vertiginosamente, elevam seu faturamento, obtêm lucros extraordinários e expandem sua fatia de mercado, em detrimento das demais empresas. É o que ocorre, por exemplo, com as gigantes da tecnologia e as empresas de comércio eletrônico.

 

 

No entanto, estes fatores não explicam como os bilionários brasileiros enriqueceram mais do que seus pares no resto do mundo durante a pandemia. As razões devem ser procuradas nas nossas singularidades. No momento, somos o único país cujo governo escolheu a contaminação em massa como estratégia para enfrentar a Covid. Somos o único país que inseriu em sua Constituição Federal um teto para os gastos públicos e um dos poucos que insistem nas reformas neoliberais que esvaziam o protagonismo do Estado e retiram direitos sociais e trabalhistas. E, muito importante, somos um país no qual os ricos não precisam pagar impostos.

 

 

IHU – Enquanto a equipe econômica do atual governo comemora um crescimento do PIB de 1,2% no 1º trimestre deste ano, o número de pessoas em situação de rua e dentro da faixa de insegurança alimentar aumenta. Como compreender essas contradições?

Paulo Gil – Algumas ressalvas são necessárias em relação à consistência do próprio índice de crescimento do PIB. As bases de comparação estão em patamar bem inferior, uma vez que os períodos anteriores foram de queda acentuada da atividade econômica. Há, ainda, um carregamento estatístico, uma herança do período anterior. E, não se pode desconsiderar o mero efeito da recomposição de estoques, que não implica, automaticamente, em aquecimento da demanda.

Ainda que o índice signifique um sinal de alguma recuperação da economia em futuro próximo, será, esta, no padrão referido por alguns economistas como “crescimento em K” ou “boca de jacaré”, devido à sua característica de enriquecer os mais ricos e empobrecer os mais pobres, aprofundando as desigualdades econômicas e sociais.

Os setores da economia que apresentaram maior crescimento foram a agropecuária (5,7%) e a indústria de extração mineral (3,2%), beneficiários imediatos da retomada da economia mundial e da recuperação dos preços das commodities no mercado internacional. Para se ter uma ideia, impulsionados pelo preço recorde do minério de ferro, os lucros da Vale atingiram R$ 30,5 bilhões apenas no 1º trimestre de 2021, acima dos R$ 26,7 bilhões apurados no ano de 2020 e superior ao lucro anual de qualquer outra empresa com ações na Bolsa de Valores brasileira. Os lucros dos exportadores de bens primários também foram muito alavancados pela alta do dólar.

 

 

Crescimento sem emprego

Acontece que o agronegócio e a indústria extrativa mineral não geram uma quantidade significativa de empregos diretos, pois não são intensivos em trabalho. E têm como característica o baixo encadeamento intersetorial e com outros setores. Então, também não cumprem um papel relevante na geração de empregos indiretos. Além disso, quando investem, adquirem máquinas e equipamentos com alto conteúdo importado. Em suma, pouco contribuem para a geração de empregos e renda aos trabalhadores. Em outro sentido, a indústria de transformação, com maior potencial de encadeamentos produtivos e geração de emprego e renda, teve crescimento negativo no 1° trimestre do ano.

Não podemos nos esquecer dos bancos. Mesmo durante a gravíssima crise econômica, seus lucros aumentaram em 18,6 bilhões (35,2%) no 1º trimestre do ano. Vários dos bilionários brasileiros operam no sistema financeiro. E convém prestar atenção nas novas fortunas dos bilionários da saúde e educação privadas.

Enfim, voltando às contradições apontadas, não se poderia obter outro resultado no contexto de desindustrialização do país, de precarização do mercado de trabalho e de desmonte das políticas de proteção social, que não fosse a geração de lucros exorbitantes aos financistas e exportadores de bens primários e a deterioração das condições de vida da população mais pobre.

 

IHU – Recentemente, o ministro Paulo Guedes entregou à Câmara um Projeto de Lei sobre o Imposto de Renda, anunciado como a 2ª fase de sua proposta de Reforma Tributária. Como o senhor analisa essa proposta?

Paulo Gil – Alterações no Imposto de Renda devem sempre ser analisadas com lupa, pois este é o tributo que melhor expressa os conflitos sobre a repartição do ônus de financiar o Estado entre os diversos segmentos de classe. O mais importante da análise é identificar os principais interesses econômicos atendidos no Projeto e os respectivos interessados. Fixada a natureza política do governo proponente e a quem ele serve, não está difícil identificá-los.

 

 

Na minha avaliação, as principais medidas são as voltadas à desoneração tributária do mercado financeiro. O projeto de lei elimina as alíquotas de 17,5% e 22,5% das aplicações financeiras de médio e curto prazo, restando apenas a de 15%, mesmo para as operações diárias. Também traz alterações nas regras de apuração dos ganhos no mercado de capitais, que ampliam as possibilidades de compensação de resultados negativos. As corretoras de valores estão comemorando as alterações.

 

 

Outra disposição de atendimento ao grande capital é a redução do percentual máximo de incidência do imposto de renda sobre os lucros da pessoa jurídica de 25% para 20%. Enquanto os EUA elevam o IR das empresas, invertendo o sentido da pressão que os governos nacionais sofrem para reduzi-lo, Bolsonaro e Guedes acolhem o principal pleito das corporações transnacionais. Aqui, o governo conta a conhecida história da carochinha de que a diminuição de tributos sobre os lucros atrairá investimentos. A história se encarrega de desmenti-lo. Nenhuma das três rodadas de redução de impostos sobre os lucros ocorridas desde a década de 1990 resultou em aumento de investimentos.

Em outra frente, o governo quer permitir a atualização dos valores de bens imóveis informados nas Declarações do IRPF, com incidência de apenas 5% de imposto sobre a diferença, e não estabelece qualquer critério para isto. Deixa a medida da atualização ao gosto do proprietário do imóvel. Imagine que alguém tenha comprado, por R$ 6 milhões, uma mansão que vale R$ 10 milhões. Ao invés de pagar R$ 600 mil (15% sobre a diferença de R$ 4 milhões), pagará apenas R$ 200 mil (5% de IR). Se aprovado, o dispositivo legal será uma porta aberta para “esquentar” recursos de origem ilícita. Estou convencido de que estas são as medidas centrais para atingir os objetivos governistas, sem prejuízo de avaliarmos as demais.

Para finalizar, e não cometer injustiças com o quadro técnico da Receita Federal, é preciso reconhecer a importância das medidas de combate à elisão e à sonegação fiscal. São bem-vindas e estão muito bem formuladas de forma a desestimular a esperteza evasiva e a delinquência tributária.

 

 

IHU – O projeto do governo trouxe de volta a tributação de lucros e dividendos. Como explicar que um governo ultraliberal esteja propondo a volta da tributação de lucros e dividendos?

Paulo Gil – De fato, estamos diante de uma curiosidade histórica, um governo ultraliberal desfazendo uma das medidas nucleares das políticas neoliberais do governo FHC. Lembro-me de o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, um dos intelectuais brasileiros mais respeitados, eleger a desoneração do imposto de renda dos mais ricos como uma síntese sobre aquele governo. Apesar disso, vejo boas explicações para isso.

A condição de regressividade do sistema tributário brasileiro é patente. A isenção de lucros e dividendos recebidos pelos sócios e acionistas, aliada à ficção legal que permite a dedução de “juros sobre o capital próprio” (JCP) constituem a principal causa da injustiça tributária. São a fratura exposta da tributação brasileira e foram questionadas desde a sua instituição.

Dos países estudados, só restaram o Brasil e a Estônia a manter essa renúncia tributária escandalosa. Nossos ricos estão há um quarto de século sem pagar imposto de renda. É uma situação insustentável. No período recente, ganha volume a pressão social para a revogação desses benefícios, a partir de campanhas organizadas pela sociedade civil para a tributação dos super-ricos.

Por tudo isso, mais dia, menos dia, essa injustificável renúncia às rendas do capital iria ser revista.

Recorro novamente aos ditados populares para explicar a aparente contradição apontada na pergunta. O gato havia subido no telhado e o governo, na defesa das classes endinheiradas, resolveu fazer as mudanças antes que outros as façam.

 

 

Reações do empresariado

O grande empresariado, por sua vez, prefere entregar os anéis a perder os dedos. Nem por isso deixaram de aproveitar a oportunidade para barganhar a redução da tributação sobre os lucros das empresas. No Congresso Nacional, já se articula reduzir a alíquota máxima do IRPJ para 15%, o que representará uma redução de 40%.

Notem, ainda, que, segundo o projeto, as rendas recebidas pelos sócios e acionistas a título de lucros e dividendos serão tributadas à alíquota de 20%, portanto, em nível inferior aos rendimentos recebidos pelo trabalho assalariado, submetidos à tabela progressiva de incidência em percentuais de até 27,5%. E que também existe a possibilidade de o parlamento brasileiro reduzir a alíquota a 15%.

Os micro e pequenos empresários que receberem lucros de até R$ 20 mil mensais estarão isentos. Permanece, portanto, o estímulo à contratação de trabalhadores sob a forma de pessoa jurídica (pejotização), que retira direitos trabalhistas, como férias, 13º e outros, e aprofunda e contribui para desregular o mercado de trabalho, fragilizando-o.

Por fim, conforme mencionei, o governo está abrigando pautas centrais da banca financeira e das grandes corporações transnacionais. De outra parte, não tratou de questões relevantes para aumentar o IR sobre os mais ricos, como a estipulação de alíquotas positivas para as aplicações financeiras efetuadas por estrangeiros, hoje fixadas em zero, e a criação de alíquotas maiores para as faixas de rendimentos elevados.

 

IHU – Dentro dessa proposta de Reforma, o governo aumenta o limite de isenção do Imposto de Renda de R$ 1,9 mil para R$ 2,5 mil, mas não mexe nas grandes fortunas. O que esse tipo de proposta representa? Em que medida ações como essa confundem o debate sobre tributação de grandes fortunas?

Paulo Gil – A tabela progressiva de incidência do IRPF deveria ser atualizada todo ano, pois a sua não correção de acordo com a inflação do período representa um aumento disfarçado de imposto. Neste caso, porém, o governo não cumpriu a obrigação básica como deveria. Propôs um índice de correção maior para a faixa de isenção (31%) e bem menor para as faixas de renda intermediárias e superior (13%). Além disso, em outro dispositivo, restringiu a utilização do desconto simplificado na Declaração do IRPF aos contribuintes que recebem até R$ 40 mil por ano. Esta opção permite substituir as deduções legais por um desconto padrão de 20% sobre os rendimentos tributáveis e, por conseguinte, é preponderante entre os declarantes que não efetuaram despesas com planos de saúde e escolas particulares, justamente por serem usuários dos serviços públicos de saúde e educação.

A resultante da combinação das duas medidas provocará efeitos opostos a depender da faixa de renda do contribuinte e uma transferência de carga do Imposto dos estratos inferiores de renda para os intermediários. A tendência é de algum alívio no valor do IR para os contribuintes da faixa de renda inferior. Efeito distinto ocorrerá para os contribuintes das faixas de renda intermediárias, principalmente a dos que recebem entre 5 e 7 SM e se utilizavam do desconto simplificado. A tendência para estes é de aumento no valor do imposto devido. Somente nesta faixa de renda encontram-se quase 5 milhões de declarantes.

Para os declarantes dos estratos superiores que recebem rendimentos do trabalho e não costumam optar pelo desconto simplificado, a tendência é de uma pequena redução no imposto de renda devido, em virtude do reajuste dos limites das faixas.

 

 

Presente para classe média?

Correções na tabela do IR interessam a um universo de 30 milhões de contribuintes e suas famílias. É possível que o governo tenha pretendido passar a ideia de que está beneficiando a classe média, para tirar o foco das críticas à diminuição do IR das pessoas jurídicas e das aplicações financeiras. Penso, entretanto, que a cortina de fumaça no debate sobre a tributação dos super-ricos é a previsão de incidência moderada de IR sobre as rendas do capital, em desrespeito ao critério constitucional da isonomia, porque transmite a falsa impressão de que finalmente os ricos pagarão de forma justa.

 

IHU – De que reforma tributária o Brasil precisa?

Paulo Gil – O Brasil não precisa de uma reforma tributária ampla. Basta cumprir o estabelecido na Constituição Federal. Nossa Carta Magna elegeu princípios de tributação afinados com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Estabelecemos, pela vontade popular, o princípio de que os impostos devem, sempre que possível, ter caráter pessoal e ser graduados segundo a capacidade econômica dos contribuintes. Em respeito ao princípio da isonomia, vedamos, em nossa sociedade, o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente e proibimos qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.

Para materializar esses princípios, definimos que o imposto de renda será informado pelos critérios da generalidade, universalidade e progressividade, o que significa dizer que incluímos no campo de incidência todos os rendimentos e todas as pessoas e a obrigação tributária de cada uma delas será proporcionalmente maior na medida em que suas rendas forem mais elevadas. Com a finalidade de dar a melhor destinação possível aos tributos arrecadados, previmos a possibilidade de instituição de contribuições sociais, fontes de recursos estritamente vinculadas ao financiamento da Seguridade Social, para as políticas de assistência, previdência social e saúde.

 

 

Como reduzir desigualdades

Considerando que estamos de acordo sobre a desigualdade ser o principal problema da sociedade brasileira, e sua redução um dos objetivos fundamentais da nação brasileira, como justificar a permanência de um sistema tributário regressivo que constitui um instrumento de concentração de renda e riqueza? Como naturalizar os desvios, para outras finalidades, dos recursos destinados à Seguridade Social, por meio da Desvinculação de Receitas da União - DRU?

À luz dos mandamentos constitucionais que devem orientar o nosso sistema tributário, como é possível aceitar que os sócios e acionistas das pessoas jurídicas estejam livres do imposto de renda ou estejam sujeitos a percentuais inferiores aos demais contribuintes? Como entender justa a fixação de alíquotas de aplicações financeiras e dos ganhos de capital em nível inferior aos dos rendimentos do trabalho? Como se conformar com a postergação continuada da instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas decidida há mais de quarenta anos?

A subsunção do sistema tributário aos princípios que devem orientá-lo, eliminando as distorções que o deixam regressivo, requer apenas alterações infraconstitucionais, a maioria destas por aprovação de lei ordinária e o IGF, de lei complementar. Alguns aperfeiçoamentos progressivos podem necessitar de emendas constitucionais.

 

 

IHU – Quais são as principais medidas necessárias para que tenhamos uma tributação justa?

Paulo Gil – São as medidas que alteram a distribuição da carga tributária entre as bases de incidência renda, patrimônio e consumo. Quase 60% da arrecadação tributária é extraída dos tributos que incidem sobre bens e serviços e, pela translação aos preços, penalizam os consumidores de baixa e média renda. Na outra ponta, a carga suportada pelos recebedores de altas rendas e detentores de grande patrimônio é pífia.

Há duas formas de dizer que o sistema tributário é regressivo. A primeira é afirmar que a tributação sobre o consumo é muito elevada e, por isto, penaliza os mais pobres. A segunda inverte o sentido da determinação, afirma que a tributação sobre a renda e o patrimônio dos mais ricos é muito baixa e, por isto, a tributação sobre o consumo é elevada. Prefiro esta última assertiva, porque representa com fidelidade a trajetória histórica da tributação desde o final da década de 1990.

É preciso destacar que os pobres pagam muito porque os mais ricos foram desonerados. Este foi o sentido da reforma tributária “silenciosa” ocorrida no primeiro governo de FHC. Consequentemente, o caminho para a justiça tributária não se inicia pela reforma dos tributos sobre o consumo, como defendem os liberais, mas, sim, pelas alterações de natureza progressiva nos tributos sobre a renda e patrimônio.

 

Invertendo o sentido

O melhor começo é inverter o sentido da reestruturação neoliberal do IR ocorrida em 1995 e, finalmente, afirmar o respeito aos princípios da isonomia e da não discriminação de qualquer segmento de contribuintes na incidência do IRPF, submetendo todos os rendimentos a uma única tabela progressiva de incidência, sejam rendimentos do trabalho ou do capital, incluídos os resultantes de aplicação financeira. Garantida a aplicação dos critérios de generalidade e universalidade, cabe, na sequência, efetivar a progressividade, por meio da criação de alíquotas mais elevadas para as altas rendas. Sem a garantia dos dois primeiros critérios, alíquotas maiores atingirão apenas as rendas do trabalho.

A segunda prioridade é a elevação dos níveis de tributação sobre o grande patrimônio, por meio da instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, e aumento de alíquotas do imposto sobre heranças e doações. Vale lembrar que as alíquotas vigentes no Brasil estão entre as menores do mundo.

Impostos progressivos sobre a renda e o patrimônio não são concorrentes entre si, na verdade se complementam. O primeiro incide sobre o fluxo da renda e os segundos sobre a renda acumulada sob a forma de bens e direitos. Atingidos os objetivos anteriores, surgirão as condições para a diminuição da tributação sobre o consumo, sem que sejam comprometidas as finanças dos Estados e Municípios ou as políticas de proteção social.

 

IHU – O Brasil pandêmico também vive o aumento do desemprego na mesma proporção em que os direitos assistenciais e sociais são sufocados. A tributação dos super-ricos poderia ser uma saída para esse cenário?

Paulo Gil – No ano passado, o Instituto Justiça Fiscal e um conjunto de 70 entidades do campo popular lançaram a campanha “Tributar os Super-ricos” [disponível abaixo]. Estimamos que as medidas propostas têm o potencial de gerar um acréscimo de arrecadação próximo a R$ 290 bilhões, mesmo desonerando cerca de 10 milhões de pessoas.

 

 

Estes recursos adicionais seriam arrecadados no topo da pirâmide social, aumentando a carga de apenas 0,3% da população brasileira e aproximadamente metade desse montante seria distribuído aos Estados e Municípios. Estamos nos referindo a recursos, hoje, esterilizados, localizados fora do circuito da produção e do consumo, sem qualquer função econômica ou social relevante que não a da sua automultiplicação na ciranda financeira.

Os orçamentos públicos seriam fortalecidos não apenas para enfrentar a pandemia e os seus efeitos, como também para ampliar o alcance das políticas sociais, e também para pavimentar o caminho a um novo ciclo de desenvolvimento no próximo período, quem sabe sob a hegemonia das forças populares e democráticas.

 

IHU – O que a experiência da concessão do Auxílio Emergencial na pandemia revela? A partir dessa experiência, podemos afirmar que o debate sobre uma renda básica universal é emergente?

Paulo Gil – A renda emergencial evitou a degradação e o caos social, ainda que tenha vindo com atraso e o seu recebimento tenha sido muito dificultado pelo próprio governo. O auxílio constituiu também um elemento amortecedor do tombo da economia durante a crise sanitária. Penso ter sido uma experiência que avaliza, sim, a instituição de uma renda básica universal, mas o considero um ponto de partida, não o ponto de chegada.

 

 

IHU – Uma efetiva tributação de super-ricos poderia viabilizar a criação de uma renda básica universal? Que transformações essa renda básica poderia promover no Brasil?

Paulo Gil – Segundo alguns especialistas no tema, recursos da ordem de 2% do PIB seriam suficientes para financiar um programa de renda básica, ou seja, o equivalente à metade do que se poderia arrecadar com as mencionadas medidas de tributação sobre os super-ricos. Mas é preciso definir bem a natureza da renda básica que estamos propondo. Os liberais a defendem como uma política de substituição aos atuais direitos sociais. Ao contrário, a renda básica deve ser um complemento e uma ampliação dos direitos sociais existentes.

Sem dúvida, a renda básica teria um papel relevante na erradicação da miséria e na redução da desigualdade. Seria ainda mais importante diante da perspectiva de continuidade da atual política econômica, que implicará na explosão do desemprego. A renda básica representaria uma espécie de colchão social.

 

Renda básica e emprego

Há uma outra consideração obrigatória. O modelo econômico de interesse dos setores populares não pode depender da existência de uma massa de desempregados. Dito de outra maneira, a função da renda básica não é a de substituir os empregos de qualidade. Nem por isto devemos desprezar o seu papel no aquecimento do mercado de consumo de massa e, consequentemente, na produção de produtos essenciais, melhorando os níveis de emprego e renda.

Michal Kalecki, economista polonês, tocou no ponto crucial, em seu Aspectos Políticos do Pleno Emprego, de 1943. Explicou por que os capitalistas não querem o pleno emprego. A razão fundamental é o receio do empoderamento dos trabalhadores. Esta é também a razão pela qual combatem a atuação do Estado na economia. A partir da reflexão de Kalecki, reforçamos nosso convencimento de que as políticas que levem ao pleno emprego devem ser objetivos prioritários da organização popular.

 

 

IHU – Hoje, qual o maior entrave para os avanços de projetos para a tributação dos super-ricos no Brasil?

Paulo Gil – Os entraves são de natureza eminentemente política. Indivíduos muito ricos e grandes corporações empresariais financiam um exército de bem remunerados políticos, advogados e economistas para empurrar a carga tributária que lhes cabe para os ombros da classe média e dos mais pobres. Nicholas Kaldor afirmava que a configuração do sistema de tributação, de modo a produzir maior ou menor igualdade econômica, está relacionada ao sentido de justiça social da comunidade. Segundo o economista húngaro, trata-se de uma questão puramente política sobre “quanta desigualdade quer tolerar a sociedade”.

Outro intelectual de relevo, Noam Chomsky, afirma que a oligarquia estadunidense se transformou numa plutocracia por meio de dez regras, entre as quais se encontra destacada a transferência do fardo dos impostos para os mais pobres e a classe média. Vale a pena ler seu livro ou assistir ao documentário Réquiem para o Sonho Americano. A tributação, segundo ele, é um instrumento de concentração de renda, riqueza e poder.

 

 

Portanto, o maior desafio para tributar os super-ricos é, justamente, romper esse círculo vicioso. No caso brasileiro, teremos que transpor a resistência histórica das classes proprietárias e de renda mais elevada. Somente a forte mobilização social dará conta dessa tarefa. Será preciso que o debate sobre a justiça tributária chegue a amplas parcelas da população, principalmente àqueles mais prejudicados com o modelo econômico brasileiro.

 

IHU – Estima-se que os 10% mais ricos da América Latina possuem 71% da riqueza e 60% dos bilionários latino-americanos receberam suas fortunas de herança e nunca pagaram impostos sobre os ativos financeiros e patrimoniais, segundo a Rede Latino-americana por Justiça Econômica e Social. Quais os desafios para mudar essa realidade no continente?

Paulo Gil – A desigualdade é o principal problema na maioria dos países da América Latina e os seus sistemas fiscais são os principais responsáveis pela sua permanência. Como mostram as experiências históricas dos países desenvolvidos, a saída do abismo social passa necessariamente pela elevação substantiva dos gastos públicos. Entre 1880 e 1985, a despesa governamental do Japão multiplicou-se por 3; a da França, por 3,5; da Alemanha, Inglaterra e EUA, pouco mais de 4,5; e a da Suécia, um dos países que mais ampliaram os direitos sociais, mais de 11 vezes.

 

 

É um engano, porém, imaginar que a desigualdade será superada somente por essa via. Os países que construíram Estados de bem-estar social combinaram aumento robusto do gasto público com tributação fortemente progressiva. O Reino Unido e os EUA, países de tradição liberal, chegaram a aplicar alíquotas superiores do imposto de renda de 98% e 94%, respectivamente. Entre 1932 e 1980, a média da alíquota superior do IR federal norte-americano foi de 81%. É o que relata Thomas Piketty, para quem as “alíquotas confiscatórias” deixavam uma mensagem clara às sociedades: a desigualdade é intolerável.

O capital se organiza globalmente. Os movimentos sociais devem fazer o mesmo em relação à pauta da justiça fiscal. A solidariedade entre os povos da América Latina e a atuação política articulada é imprescindível para enfrentar as resistências das classes dominantes da região.

 

IHU On-Line – Como esse debate de tributação de super-ricos vem ocorrendo na América Latina? Há países em que poderíamos nos espelhar?

Paulo Gil – Há exemplos de êxito, como também de insucessos, que nos avisam sobre os cuidados que devemos tomar em relação a esse tema. O governo de Rafael Correa, no Equador, tentou fazer alterações na tributação de heranças e lucros imobiliários. As classes dominantes locais promoveram uma intensa e raivosa campanha de desinformação, que punha medo nos mais pobres. Diziam que estes iam perder suas pequenas propriedades etc. A pressão dos mais ricos obrigou o governo a retirar os projetos de lei.

Chile, Colômbia e México discutem projetos de taxação de grandes fortunas. Bolívia instituiu o tributo e a Argentina, que já contava com a previsão, voltou a cobrá-lo. O governo de Alberto Fernandez propôs e conseguiu aprovar no parlamento a incidência temporária de um imposto sobre grandes fortunas de forma a enfrentar os efeitos da pandemia. Chamado de “Aporte Solidário”, o tributo consiste numa parcela única incidente sobre ativos cujo montante supere US$ 2,2 milhões, pela aplicação de alíquotas de 2,25% a 5,25%, a depender do valor da riqueza e da sua localização, no país ou no exterior. De 12 mil contribuintes, 10 mil pagaram o imposto no prazo.

 

 

IHU – De que forma organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional - FMI, têm visto esse debate sobre a tributação de super-ricos?

Paulo Gil – Quem se lembra das recomendações do FMI na década de 1980 e 1990 percebe nitidamente a mudança de orientação. De difusor das políticas neoliberais, o organismo foi, paulatinamente, se afastando e passou a criticá-las em 2016. É fato que as críticas vieram atrasadas. As consequências sociais nos países que seguiram aquele receituário foram desastrosas.

 

 

Segundo o organismo, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade, ao invés de promover o crescimento. Ainda que as críticas tenham sido pontuais, tiveram como alvo aspectos centrais do projeto neoliberal, como as políticas de austeridade, as privatizações, o livre comércio e, inclusive, a abertura da conta de capitais, ou seja, a desregulamentação financeira, dispensando o controle sobre os fluxos de capital. O documento do Fundo afirmava, ainda, que “o aumento da desigualdade prejudica o crescimento” e que os defensores da agenda neoliberal deveriam se preocupar com os efeitos de distribuição.

Em outubro de 2020, o FMI confirmou essa orientação, ao recomendar que os governos considerassem aumentar impostos progressivos sobre indivíduos mais ricos e sobre aqueles relativamente menos afetados pela crise econômica causada pela pandemia. Recomendou também aumentos de tributos sobre as empresas e sobre propriedades de luxo, ganhos de capital e fortunas. Quando olhamos para a posição atual do FMI, percebemos o quanto o Brasil está na contramão do mundo.

 

 

IHU – Voltando ao Brasil, o quão consistente o senhor considera essa recuperação econômica bradada pelo atual governo?

Paulo Gil – Nada consistente. Como disse anteriormente, caso se confirme, será uma recuperação puxada pelo segmento agroexportador e extrativo mineral, com baixo encadeamento produtivo, baixa geração de emprego e concentração de renda e de riqueza, circunstâncias que não dinamizam o mercado interno e os investimentos.

A taxa de desemprego entre os jovens de até 17 anos está se aproximando dos 50%, na faixa de 18 a 24 anos atingiu 31%. No entanto, esses números podem apontar para uma situação de maior gravidade, porque decresceu a taxa de participação, calculada pela divisão da População Economicamente Ativa - PEA, pela quantidade de pessoas em idade de trabalhar. Isso significa que a retirada das pessoas do mercado de trabalho durante a pandemia impediu que a taxa de desemprego fosse ainda mais elevada.

A desigualdade não se aprofundou mais, porque foi aprovado pelo parlamento o Auxílio Emergencial, diga-se de passagem, praticamente à revelia do governo federal. Estamos aprofundando um modelo econômico extremamente dependente do mercado internacional. O núcleo decisório sobre os rumos da economia encontra-se fora do país. Esse padrão de crescimento não traz solução para os nossos principais problemas.

 

 

IHU – Uma recuperação econômica consistente e que passe pelos mais pobres depende essencialmente de quê?

Paulo Gil – Os problemas do nosso modelo econômico têm razões estruturais, remetem à crise do padrão de acumulação capitalista. Em seu movimento de expansão, o capital intensifica a exploração do trabalho, avança sobre a riqueza nacional, mercantiliza crescentemente serviços públicos essenciais, captura os fundos públicos e agride a soberania dos Estados nacionais.

A superação dessa crise, portanto, depende de um projeto de desenvolvimento nacional, cujos objetivos sejam o crescimento com distribuição de renda e riqueza, a ampliação da oferta de serviços públicos, o fortalecimento do trabalho formal, a expansão dos direitos sociais, para que sejam verdadeiramente universais. Depende, enfim, de um projeto de profunda transformação social. Um processo dessa magnitude só pode ser conduzido pelo Estado. Ao contrário do que reza a cartilha neoliberal, é preciso retomar o seu protagonismo na economia, suas funções de planejamento, formulação de políticas industriais e de capacitação tecnológica, coordenação dos investimentos e, especialmente, de regulação do mercado de trabalho.

O desenvolvimento brasileiro pode se apoiar nas próprias políticas de redistribuição de renda e riqueza, que fortalecem o mercado interno, e nos investimentos em infraestrutura social, que produzem efeitos dinâmicos na economia, geram emprego e renda e melhoram as condições de vida da população. Um projeto com tais objetivos requer sólido apoio popular. Eleger um governo popular e progressista é uma condição necessária, mas não será suficiente. É fundamental formarmos uma nova maioria política no parlamento e, principalmente, mobilizar intensa e continuamente a população para lutar pelas reformas estruturantes.

 

Leia mais